“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Revolução francesa e feminina

Mulheres lutaram ao lado dos homens pelos ideais revolucionários, enfrentando também o preconceito.
      “Não fiz a guerra como mulher, fiz a guerra como um bravo!”, declarou Marie-Henriette Xaintrailles em carta ao imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821). Indignada por lhe recusarem pensão de ex-combatente do Exército “porque era mulher”, ela lembrou que, quando fez sete campanhas do Reno como ajudante de campo, o que importava era o cumprimento do dever, e não o sexo de quem o desempenhava.
     Madame Xaintrailles não foi um caso isolado. Em 1792, quando a França declarou guerra à Áustria, voluntárias se alistaram no Exército para lutar ao lado dos homens contra as forças da coalizão austro-prussiana que ameaçavam invadir o país. Muitas se apresentaram com identidades falsas e disfarçadas de homem. Além de conseguirem se alistar, protegiam-se do risco da violência sexual. Quem eram as mulheres-soldados e por que se engajaram no conflito armado? E quais foram os motivos de sua relativa aceitação por parte de líderes revolucionários e companheiros de armas?
     Não se conhece o número exato de mulheres-soldados durante o período revolucionário francês (1789-1799).  Há oitenta casos registrados nos arquivos parlamentares, militares e policiais, e informações biográficas esparsas sobre apenas quarenta e quatro. Entretanto, existem muitas referências em imagens e testemunhos da época. O deputado Grégoire (1750-1831) as elogiou oficialmente: “E vós, generosas cidadãs que participaram da sorte dos combates”. Essas constatações nos permitem supor que elas eram mais numerosas e bem integradas à vida militar do que pode parecer. Quase todas vinham de meios sociais modestos. Eram filhas de pequenos camponeses e artesãos, e tinham apelidos como Felicité Vai-de-bom-coração ou Maria Cabeça-de-pau. A maioria era muito jovem, como Ana Quatro-vinténs, que se alistou aos 13 anos, e aos 16 servia na artilharia montada.
     As irmãs Fernig, com 17 e 22 anos, foram exceções: eram nobres, e combateram vestidas de homem no Exército do general Dumouriez (1739-1823), na fronteira da atual Bélgica. Fora da batalha, passeavam com roupas de mulher e carabina ao ombro. Tornaram-se heroínas nacionais. Quando sua casa foi arrasada pelos “ferozes austríacos”, o governo da Convenção Nacional (1792-1795) propôs que a reconstrução ficasse por conta da República.
     Antes da Revolução, os oficiais da nobreza desprezavam os soldados. Já os líderes revolucionários valorizaram o serviço militar como a forma mais elevada de compromisso do cidadão com o Estado. O discurso da defesa dos homens livres contra os tiranos da Europa atraiu as cidadãs mais destemidas que aliavam o sentimento patriótico ao gosto pela aventura. Era também uma forma de integração oficiosa à cidadania. Reine Chapuy, de 17 anos, declarou que se alistara pelo desejo ardente de combater os tiranos e compartilhar da glória de fulminá-los. Outras foram à guerra para acompanhar os maridos, amantes e irmãos, e acabaram lutando ao lado deles, unindo o sacrifício pela pátria ao devotamento conjugal e familiar. Algumas haviam “nascido na caserna”, e a carreira militar era seu caminho natural. As circunstâncias da Revolução tiveram também um aspecto de liberação. Quando tudo estava em jogo, as mulheres puderam inventar novos papéis para si próprias.
     Há registros da boa acolhida das mulheres-soldados por parte dos companheiros de armas. O capitão Dubois e sua mulher combateram juntos no 7º Batalhão de Paris. Ao ser ferido, sua esposa foi designada vice-capitã pelos outros soldados. Aos 19 anos, Liberté Barreau serviu com o marido no Regimento dos Pirineus Ocidentais. Foi intrépida na batalha: perseguiu os inimigos até sua debandada, e depois voltou para transportar o marido ferido para o hospital militar com a ajuda dos companheiros. Liberté impressionou pela coragem e pela devoção ao esposo. Rose Bouillon não foi menos heroica: continuou lutando na batalha mesmo após a morte do marido. Depois pediu dispensa do Exército para cuidar dos filhos do mesmo modo como havia se dedicado ao marido e à pátria. A Convenção Nacional lhe concedeu uma pensão de 300 libras e mais 150 para cada um de seus filhos em agosto de 1793.
     Mas havia vozes discordantes: alguns cidadãos se queixavam abertamente das mulheres promovidas a oficial, alegando que os soldados tinham vergonha de receber suas ordens.  Diminuindo o mérito das combatentes, explicavam aquela coragem como exceção, atribuindo-a ao milagre da Liberdade.  Apesar de seus serviços, as soldadas foram incluídas em decreto governamental que dispensava e excluía do Exército todas as “mulheres inúteis” ao esforço de guerra, isto é, todas que não eram cantineiras nem lavadeiras. Lazare Carnot (1753-1823), membro da Convenção Nacional que organizou o recrutamento em massa de 1793, lamentava o flagelo que destruía os exércitos revolucionários: as mulheres que acompanhavam as tropas. Elas atrapalhavam a marcha dos batalhões, consumiam uma parte necessária dos alimentos, quebravam a disciplina e eram fonte da dissolução dos costumes de todos os militares.
     O decreto nunca foi cumprido: as esposas e companheiras dos soldados continuaram seguindo as tropas, e a maioria das combatentes permaneceu no Exército como se nada tivesse acontecido. O capitão da Sra. Fartier, canhoneira no 10º batalhão dos Federados Nacionais de Paris, autorizou-a por escrito a continuar servindo na companhia em junho de 1793, após a promulgação da lei.   Em 26 de fevereiro de 1794, Ana Quatro-vinténs foi aplaudida no Clube dos Jacobinos, que fizeram uma coleta em seu favor. O Conselho Militar não viu razões para excluir do Exército a cidadã Felicité Vai-de-bom-coração, devido ao seu comportamento irrepreensível. Houve mulheres-soldados até nas guerras napoleônicas (1799-1815).  Um exemplo desse período foi Madame Xaintrailles, que se tornou ajudante de campo do general Menou (1750-1810) com a recomendação do próprio Lazare Carnot em 1795, dois anos depois da lei de exclusão.
     O número expressivo de prêmios e aplausos às soldadas atesta a boa vontade dos chefes militares e até dos governantes em Paris. Mesmo levando-se em conta que elas transgrediam as normas de comportamento feminino, apropriando-se de atributos inerentemente masculinos como as armas e o serviço militar. As mulheres-soldados foram até certo ponto aceitas porque tinham moral elevada, dignidade e bons costumes; eram combatentes, e não libertinas. Embora a violência não seja normalmente associada à mulher, na guerra elas matavam “os escravos dos tiranos”, prestando um serviço à nação. Eram discretas, e muitas vezes seu sexo só era descoberto quando feridas na batalha. Essas qualidades eram importantes numa época em que o presidente do Comitê de Segurança Pública declarou que “sem moral não há República” (outubro de 1793).
     Muitas das guerreiras protagonizaram episódios de coragem incomum, como Marie-Angélique Duchemin-Brulon (1772-1859). Sargento do 42º regimento de Infantaria na Córsega, salvou o Forte Gesco sitiado pelos inimigos conseguindo um suprimento de pólvora no meio da noite, em maio de 1794.  Em agosto de 1851, aos 79 anos de idade, foi a primeira mulher a receber a Legião de Honra e a Medalha de Santa Helena do futuro Napoleão III. Chamam atenção as descrições sempre exaltadas dos feitos marciais das soldadas. A impressão é que elas foram mitificadas para figurar no panteão dos exemplos patrióticos de que a Revolução tanto precisava no dramático ano II – no calendário revolucionário, setembro de 1793 a setembro de 1794. Nesse  período marcado pela radicalização política do terror, a nação também enfrentava a guerra externa, guerra civil, inflação, penúria e revoltas urbanas.  O exemplo das guerreiras podia inspirar os cidadãos.
     De todo modo, as soldadas encarnavam as virtudes republicanas. Não era pouco. Por essa razão, Liberté Barreau e Rose Bouillon figuravam na Coletânea de Ações Heroicas e Cívicas dos Republicanos Franceses, publicada em 30 de dezembro de 1793. Enfrentando a morte, também deram a vida, dedicaram-se com amor aos maridos e filhos. Cuidaram de doentes e feridos com a doçura e o altruísmo associados à imagem feminina. Sacrificaram-se pela pátria sem esquecer as virtudes de seu sexo. Eis aí o grande mérito. Numa República marcada por apelos à moral, as mulheres-soldados contribuíram com um modelo de comportamento feminino positivo.

Tania Machado Morin é autora da dissertação “Práticas e Representações das Mulheres na Revolução Francesa – 1789-1795” (USP, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia
MARAND-FOUQUET, Catherine. A mulher no tempo da revolução.  Lisboa: Inquérito 1993.
BERTAUD, Jean-Paul, «  Les femmes et les armées » IN La vie quotidienne des soldats de la Révolution, Paris Hachette, 1985.
GODINEAU, Dominique, Citoyennes Tricoteuses – Les femmes du peuple à Paris pendant la Révolution Française, Paris, Editions Alinea, Perrin, 2004.

Saiba Mais - Internet
MARTIN, J.C., « Travestissements, impostures et la communauté historienne.  A propos des femmes soldats de la révolution et de l’Empire », Politix 2006/2, no. 74, p. 31-48.
www.cairn.info/article.php?ID

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