“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A mulher que virou mito

 A personagem Chica da Silva diz muito sobre a escravidão, o machismo e a desigualdade no Brasil

Fabiana Lima

               “Nem Santa Ifigênia, toda em festa acesa, brilha mais que a negra, na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica-que-manda!”. Em ritmo de ciranda, entoam-se os versos de Cecília Meireles, embelezando o mito da escrava negra considerada a mais poderosa do século XVIII.

               As linhas poéticas deixam entrever alguns traços da personagem histórica mitificada: mulher que apostava na ostentação, tinha todos os desejos realizados por seu contratador e exibia personalidade autoritária. Uma trajetória marcada pelo signo da exceção. Francisca da Silva de Oliveira, de origem escrava, rompeu com o que era designado à sua condição. Desenredar esse mito é um grande desafio para professores e estudantes, em aulas de história e de literatura. 

               Discursos historiográficos, literários, cinematográficos e televisivos têm reforçado a versão de que, no decorrer do século XVIII, uma mulher negra escravizada ascendeu socialmente por meio do concubinato com um notável negociante de origem portuguesa. Por um lado, perde-se de vista quem foi a personagem de fato – a companheira não oficial de João Fernandes de Oliveira, fidalgo que havia arrematado o direito de explorar diamantes. Por outro, essas narrativas revelam as contradições, os interesses e as lacunas de uma história maior que a de Chica: a das relações raciais e de gênero no Brasil.

               Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito, estudo publicado pela historiadora Júnia Furtado em 2003, busca liberar a personagem dos estereótipos que lhe foram imputados no decorrer do tempo. Demonstra que Francisca da Silva aparece pela primeira vez como personagem histórica no livro Memórias do Distrito Diamantino (1868), de Joaquim Felício dos Santos, destacando-se por ser a única personagem feminina dessas memórias e por encarnar os estereótipos negativos da mulher negra e da escrava perversa e amedrontadora. Essa imagem se relaciona com o período histórico em que se consolidava, em Minas Gerais, o modelo de família monogâmica, unida pelo matrimônio, sob valores católicos. Faz sentido, portanto, o registro demonizado da união da escrava Francisca com o contratador João Fernandes. Era um discurso normativo, a favor da organização familiar de base cristã. Mulheres negras, escravizadas ou libertas, eram vistas como licenciosas e inadequadas para o estabelecimento de uniões estáveis. 

               A leitura da obra de Joaquim Felício dos Santos resultou em várias interpretações equivocadas. Entre elas a de que Chica mandava no arraial do Tejuco e no próprio João Fernandes. O contratador, por sua vez, foi concebido como um déspota que subjugava a elite local e desafiava as autoridades metropolitanas. Por esta versão, o poderoso Marquês de Pombal, ministro do rei D. José, teria incumbido o conde de Valadares, governador da capitania (1768-1773), de ordenar o retorno de João Fernandes ao reino, preso por irregularidades na exploração dos diamantes. Tendo voltado para Portugal, o ex-contratador morreria só em 1799. 

               Mas outros documentos jurídicos comprovam o falecimento de João Fernandes de Oliveira, então desembargador, em 1779.  Não só ele teria morrido 20 anos antes da data indicada na obra de Joaquim Felício dos Santos, como a causa provável do seu retorno teria sido bem diferente da punição de Pombal: uma disputa com a madrasta pelos bens de seu pai.

               Na década de 1940, a região de Diamantina passou por um processo de revitalização, por ser o local onde nasceu o político Juscelino Kubitschek (que entre 1940 e 1945 foi prefeito de Belo Horizonte). A casa de Chica da Silva foi tombada e alguns estudos sobre a cidade ressaltaram a imagem da ex-escrava sem muita preocupação documental. Destacou-se, nesse período, a versão de Soter Couto presente no livro Vultos e fatos de Diamantina (1954), na qual a ex-escrava é representada como redentora da própria raça, a partir de atitudes vingativas contra os reinóis portugueses.  

               A personagem mítica também é associada a um suposto processo de “branqueamento”, ideia inspirada em teorias como a do médico e antropólogo Nina Rodrigues (1862-1906). Várias abordagens imputam aos negros um desejo de se branquear. As versões que carregam a tinta no traço autoritário de Chica da Silva, por exemplo, supervalorizam um suposto desejo latente de embranquecer, ao mesmo tempo em que silenciam os conflitos raciais da trajetória de uma ex-escrava que ascendeu socialmente.

                A passagem do discurso historiográfico para o discurso ficcional foi importante para o desenvolvimento e a difusão do mito. Desde a menção nos cantos XIII (a) XIX do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles, até a telenovela Xica da Silva, produzida pela TV Manchete em 1996 e 1997, passando pelo balanço da Xica da Silva de Jorge Ben (1976), o mito se massificou. Alternam-se narrativas ora positivas, ora negativas sobre a personagem, mas a maioria das versões remonta – com algumas correções ou pequenas modificações – ao estudo de Joaquim Felício dos Santos. Seu sobrinho-neto, João Felício dos Santos, publicou em 1976 o romance Xica da Silva, que serviu de base tanto para o roteiro do filme de Cacá Diegues (do mesmo ano) quanto para o texto da telenovela, escrita por Walcyr Carrasco. O livro constrói a imagem de uma Chica sensualizada, ou seja, mulher negra cujos atributos sexuais conseguiram atrair o mais poderoso homem daquela região. O filme massificou a imagem de uma ex-escrava autoritária e gratuitamente perversa. A telenovela levou ao extremo a erotização e o descompromisso com a realidade histórica do século XVIII. 

               Júnia Furtado constatou que a trajetória de ascensão social de Chica da Silva, baseada no relacionamento não oficial com um homem branco da elite e no branqueamento cultural, não foi exceção entre as mulheres forras da região mineradora. De forma geral, as principais estratégias de ascensão social daquelas mulheres eram o concubinato, a prostituição, o apadrinhamento ou a ocultação (quando possível) do passado escravo. É importante refletir sobre como o tipo de sistema colonial português, baseado na mistura entre colonizador e colonizado, produziu a subjugação da mulher negra – escravizada ou liberta – ao homem branco. 

               Enquanto é descrita como lasciva e dominadora, opressora ou redentora dos negros escravizados,  esvai-se, nas brumas da imaginação, a Francisca que viveu no século XVIII. Esta ficou grávida pelo menos 13 vezes em 17 anos daquele relacionamento. Além disso, documentos de instituições de ensino atestam o cuidado de Francisca e João Fernandes com a educação formal dos filhos. Por outro lado, percebe-se a desigualdade daquele relacionamento, por exemplo, nas certidões de batismo dos filhos de Francisca, em que constam nomes de padrinhos pouco notáveis socialmente para a elite da época, ou em documentos importantes para dar destino à herança do ex-contratador, que omitem o nome de Francisca no intuito de apagar a ascendência africana dos filhos do casal. 

               Ao minimizar ou desconsiderar completamente a desigualdade hierárquica no relacionamento entre uma ex-escravizada e um negociante português, as narrativas ficcionais sobre Chica da Silva silenciam tensões raciais – que envolviam tanto a inserção da própria Francisca na elite mineira, quanto os prejuízos sociais vividos pelos filhos do casal.  

               É nessas brechas, inerentes às relações de poder coloniais e pós-coloniais no Brasil, que surgem as reconstruções míticas da personagem histórica Francisca da Silva de Oliveira. O trabalho pedagógico com as diferentes versões do mito, mais do que discriminar o real do fictício, precisa lidar com os silêncios e as sombras criados pelo poder da imaginação. Lidar com esses silêncios possibilita entender um pouco mais o longo processo de submissão do corpo da mulher negra aos desejos e preconceitos de uma elite masculina branca, reprodutora de relações hierárquicas de poder. Algumas persistentes ainda hoje.

Fabiana Lima é professora do Colégio Pedro II e autora de Literatura afro-brasileira (FFCH/UFBA, 2013).

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

Saiba mais - Bibliografia

BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray & BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2007.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. 

FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”. In: ___. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.

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Chica, a verdadeira

Ajoelhou, tem que rezar

O Brasil de todos os pecados

A Febre do ouro

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Último desejo

No leito de morte, Leopoldina recebeu a visita da amante de seu marido. Ainda assim, teve forças para atacá-la.

Mary del Priore

               Não houve festa no primeiro ano de aniversário do futuro D. Pedro II. Em vez disso, no dia 2 de dezembro de 1826, boletins médicos davam conta da grave situação em que se encontrava sua mãe, a imperatriz Leopoldina. No dia 3, eles anunciavam febre, evacuações biliosas, pouco sono, “tosse gutural teimosa”, “algum tremor de mãos” e “meteorismo” (acúmulo de gases). Na noite do dia 4, Leopoldina teve pesadelos e “assaltos espasmódicos”. Chamou os criados da família imperial e pediu-lhes perdão se estivessem ressentidos com algo que ela não soubesse. Na madrugada do dia 5, ela sofreu “treze evacuações biliosas com mau cheiro”. No sexto dia, Leopoldina começou a se desfazer em líquidos. No dia seguinte, resolveram os médicos aderir a outro tipo de medicação: cânfora, éter, vinho quinado e “vesicatórios na nuca”.

                Nesse dia, a Irmandade de Nossa Senhora da Glória organizou procissão e o esquadrão de cavalaria de Minas Gerais uniu-se aos moradores em preces, em Mata-Porcos. Chovia no Rio de Janeiro, e os súditos, com vestes ensopadas, choravam. No oitavo dia, Leopoldina começou a suspeitar dos remédios que lhe davam. Delirava, amaldiçoando a amante do marido. Atribuía-lhe poderes de feitiçaria negra. Reagia com gritos ao vê-la. Os sentimentos da submissa imperatriz, contidos por tanto tempo, explodiam. Foram anos em que dividira a cena com a paulista, escondendo sob uma capa de cordialidade o ódio e o desprezo que sentia.

                No dia 9, mencionou-se a expulsão dos restos de placenta. Piorava de hora em hora. Na tarde do dia 10, o capelão foi chamado para ministrar-lhe a extrema-unção. O barão de Mareschal, ministro diplomático da Áustria e um dos que podiam ficar no quarto da imperatriz, acrescentou que, “quando o Bispo começou a recitar a prece dos agonizantes, Sua majestade se encontrava em estado convulsivo, o abatimento aumentando a cada instante, o que somente lhe permitia gemer fracamente”.

               O boletim do 17º dia trouxe a notícia: “pela maior das desgraças se faz público, que a enfermidade de Sua majestade e a imperatriz resistiu a todas as diligências médicas empregadas com todo o cuidado por todos os médicos da imperial Câmara. Foi Deus Servido chamá-la a Si pelas dez horas e um quarto”. Nenhuma palavra oficial sobre o aborto de um feto do sexo masculino de três meses. 

                Não se sabe ao certo quando, acamada, Leopoldina ditou uma última carta endereçada à sua irmã mais velha, Louison. Traçou-a a marquesa de Aguiar, sua camareira. “Minha adorada mana, reduzida ao mais deplorável estado de saúde e chegada ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam em minha alma, minha mana. Não vos tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que vos amava, que vos adorava! Pois, já que não posso ter essa tão inocente satisfação, igual a outras muitas que permitidas me não são, ouvi o grito de uma vítima que vos reclama não vingança, mas piedade e socorro do fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar em poder de si mesmos ou das pessoas que foram os autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho”.

                Ela, que sempre fora resignada e muda, mergulhada numa tristeza que a deixava à beira da loucura, não tinha só a preocupação de alertar a família para os riscos que corriam os filhos – sua única fonte de alegria e razão política do casamento. Aos 29 anos, mãe de cinco filhos vivos, a moribunda acusava: “Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, por amor de um monstro sedutor, me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-vos, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte”.

               Pela última vez confessava a solidão e o abandono a que fora relegada pelo marido e pela própria família. Se publicamente não reagira ao escândalo, usava a privacidade de uma carta para acusar o companheiro e sua amante. O lamento de Leopoldina registrava então sua luta por um amor unilateral, em que tudo virara armadilha. Nas últimas correspondências, dizia-se arrependida de ter casado.

               Contou Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, que D. Pedro, seu amigo, sentiu o golpe. Apesar de atarefado em meio a mapas, tropas e projetos de campanha no sul do país, recebeu a notícia com “profunda mágoa”, “tremeu e arrancou os cabelos”. A comitiva que o acompanhava reuniu-se. Em sua correspondência, o Conselho de ministros foi mais específico. Depois de apresentar pêsames, confessava-se no dever de comunicar que a jovem imperatriz, em seus delírios, deixara perceber as causas de seu mal. Eram de ordem moral: desgostos e ressentimentos. A opinião pública também já tinha conhecimento desses fúnebres queixumes ditos no momento de sua despedida. Para piorar, os inimigos republicanos de D. Pedro aproveitaram para lançar uma campanha difamatória e retomar a cena política. No dia 4 de janeiro, a nau D. Pedro I largava de Santa Catarina, trazendo a bordo o viúvo. 

               Não se sabe o que deu na amante, Domitila, mas, no auge da crise, ela quis entrar na câmara da doente. “A concubina deu provas de imprudência e loucura”, registrou Mareschal. “Seus ares imperiais ao atravessar os cômodos, como se estivesse tomando posse, e o tom arrogante e escandaloso de seus lamentos fizeram com que a dama de companhia incumbida, segundo os costumes, de presidir a consulta dos médicos, não a recebesse”. Conseguiram barrar-lhe a passagem, mas Titília, por sua vez, impediu que a jovem mãe, em agonia, visse seus filhos. 

               A notícia correu sobre um rastilho de pólvora. A aparência do povo não era mais desordenada, curiosa, inquieta. Queria vingança contra aquela que era considerada a causa da morte da querida imperatriz. Circulava que a concubina se mancomunara com o cirurgião-mor para envenenar a imperatriz; que o verdadeiro príncipe tinha sido trocado pelo bastardo. Cartas anônimas agora eram endereçadas aos ministros. Estes reagiram, falando em afastar Titília da corte. Dois tiros foram disparados contra um dos cunhados da marquesa de Santos, o coronel Oliva. Em fúria, a multidão dirigiu-se a São Cristóvão. A casa da marquesa foi cercada e apedrejada. Chamaram-se reforços. Vieram patrulhas de cavalaria proteger os muros e as portas do palacete. 

                Por carta, a favorita não perdeu tempo em contar ao amante que fora destratada e barrada à entrada do quarto de Leopoldina. O imperador não perdeu tempo em consolá-la: “Minha querida filha de meu coração e minha amiga. (...) Eu tomo nojo [luto] por oito dias, e esta é a única razão que faz com que eu não vá logo. (...) Pedro I que é teu verdadeiro amigo saberá vingar-te de todas as afrontas que te fizeram ainda que sua vida lhe custe. É ao mesmo tempo com todo o gosto, e verdade que tenho o prazer de poder dizer com toda a franqueza e contentamento que sou o teu mesmo amante, filho e amigo fiel constante, desvelado, agradecido e verdadeiro, digo outra vez, amante fiel”.

               Se, por um lado, o povo culpava Domitila, por outro, santificava Leopoldina. Os jornais cobriam-na de adjetivos: virtuosa, bondosa, gentil. Enterrava-se a imagem da dona de convicções hereditárias: monarquia absoluta, autoridade real e obediência dos súditos eram princípios sacrossantos que a Habsburgo levou embora consigo. Do sobrado à senzala, do comércio ao zungu, onde se reuniam escravos, das ruas às estradas, o povo chorava. Silenciavam as ruas, sem os gritos das “vendeiras” e dos cativos prestadores de serviços, sem o peditório de mendigos e de irmãos de confrarias, sem o canto dos presos que carregavam água ou dos escravos carregadores de café.

               No curto espaço de tempo que foi de março de 1826 à sua morte, D. Leopoldina foi, além de imperatriz do Brasil, rainha de Portugal. Entre seu casamento e a Independência do Brasil, encontrou-se princesa do Reino Unido. Nenhum dos títulos lhe trouxe alegrias.

           Civilidade, educação, compostura, importados de uma das mais refinadas cortes europeias, iam-se para debaixo da terra com o corpo sofrido de Leopoldina. Certa maneira de ser, baseada na contenção dos sentimentos e no autocontrole em curso na vida burguesa que se forjava além-mar, consumia-se. Sob o sol dos trópicos, os hábitos eram outros. 

 Mary Del Priore é professora da Universidade Salgado de Oliveira e autora de A carne e o sangue (Rocco, 2012).

 Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 107 - agosto de 2014

 Saiba mais - Bibliografia

LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I, um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

REZZUTI, Paulo. Titília e o Demonão – Cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

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Fidelidade, acima de tudo, à monarquia

Palavras de imperatriz

Retrato de um rei

Adeus, Europa

O Brasil do outro lado do espelho 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Palavras de imperatriz

Cartas de Leopoldina no Museu Imperial destacam sua importância como protagonista política

Déborah Araujo

                “Com a maior impaciência, esperei este momento em que me é permitido exprimir a Vossa Majestade todos os sentimentos que me invadiram quando o Imperador, meu Augusto Pai, me anunciou que Vossa Majestade me concedia a honra de pedir minha mão para o Príncipe do Brasil, seu querido filho”. Assim começa a carta escrita pela então arquiduquesa Leopoldina, do Império Austro-húngaro, ao seu futuro sogro, D. João VI, em 16 de abril de 1817. Esta é apenas uma das mais de 200 correspondências referentes à imperatriz, que hoje estão no acervo do Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro.

                Há mais de 50 arquivos e coleções no Museu Imperial com documentos que fazem referência à imperatriz, de acordo com Thais Martins Lepesteur, pesquisadora do setor de Arquivo Histórico. São cartas escritas por D. Leopoldina para parentes, clérigos, naturalistas, políticos, entre outras personalidades de sua época, bem como correspondências endereçadas a ela e a seu marido, D. Pedro I. Além desses manuscritos, a lista de itens do rico acervo inclui documentos oficiais de Estado, diários de viagens, cadernos de pesquisas em ciências naturais – tanto da imperatriz quanto de seu marido – e notas sobre aquisições de bens e sobre a herança da monarca. “Não foi elaborado um catálogo definitivo da documentação sobre D. Leopoldina, e sim uma listagem preliminar que ainda passará por revisão”, ressalta Thais. Ainda assim, a museóloga garante que a documentação tem sido frequentemente consultada ao longo dos 70 anos da instituição.

                Segundo Viviane Tessitore, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), o estudo das cartas relacionadas à D. Leopoldina permitem a visualização de traços da personalidade da imperatriz, aspectos de seu cotidiano e da Corte em parte do período joanino e do Primeiro Reinado, bem como sua relação com o marido, familiares e amigos. “Podemos visualizar também algo do significado político de seu casamento com D. Pedro I e muito do seu protagonismo no cenário político da Independência e do primeiro Reinado”, ressalta a pesquisadora. Seus textos demonstram o grande carinho e parceria na relação com seu marido. 

                Em carta a Dom Pedro I, de 19 de agosto de 1822 (São Cristóvão, Rio de Janeiro), D. Leopoldina escreveu: “Meu querido e prezado esposo. Mesmo sendo privada de notícias suas, que é muito custoso a meu coração, acho meu dever e único meio de aliviar as minhas saudades escrever-lhe. (...) Chegou um navio de Nantes [França], que trouxe a notícia de que o exército francês forte de 1.000.000 de homens passou os Pirineus; que os austríacos e os prussianos são na Itália fortes de 2.000.000 de soldados, para fazer guerra à Península, e que o Marechal Beresford [militar inglês, comandante-chefe do exército português na luta contra os franceses] saiu da Inglaterra com 20 navios”.

               As palavras articuladas e as informações detalhadas redigidas pela imperatriz eram fruto da disciplinada e apurada educação que ela e os irmãos receberam na infância. Além do alemão, seu idioma materno, D. Leopoldina falava e escrevia em italiano e francês, “língua usada nas relações internacionais da época, ocupando o mesmo lugar hoje ocupado pelo inglês”, destaca Viviane Tessitore. Quanto ao português, “ela aprendeu por ocasião de seu casamento com D. Pedro, então Príncipe Herdeiro do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”. “Também tinha conhecimentos de inglês”, ressalta a historiadora.

                Os conhecimentos da imperatriz eram valiosos para D. Pedro I e para a política externa e interna do Brasil. “Ela desempenhou papel importante na cena política da época, intermediando a vinda de colonos e soldados germânicos e servindo de intérprete na chegada dos mesmos, além de se empenhar junto ao pai, o imperador Francisco I, pelo reconhecimento da Independência e proclamação do Império do Brasil”, declara a pesquisadora Maria de Lourdes Viana Lyra, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A pesquisadora também chama a atenção para a importância documental das centenas de cartas escritas por D. Leopoldina encontradas em arquivos da Áustria e de Portugal, “por ressaltar o perfil de agente atuante e plenamente consciente do papel assumido com o casamento que lhe cabia desempenhar em prol do fortalecimento da forma de governo monárquica instalada no Novo Mundo desde 1808”.  

                 Entre as cartas do acervo do Museu Imperial de Petrópolis, destacam-se muitas notas de condolências enviadas ao imperador em decorrência da enfermidade, e posterior falecimento, de D. Leopoldina, após sofrer o aborto de sua nova gravidez, em dezembro de 1826. Um número imensurável de pessoas lamentou a morte da primeira imperatriz do Brasil, “que morreu no exercício do cargo de Regente do Império e cujo papel de protagonista no contexto das relações e dos interesses estabelecidos em prol da consolidação do Brasil monárquico e imperial era então reconhecido e pranteado”, argumenta Maria de Lourdes. Para ela, isso mostra a necessidade de “urgente revisão do perfil da D. Leopoldina, usualmente retratada como personagem secundária e sem a devida importância em muitos trabalhos historiográficos”. 

 Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 107 - agosto de 2014

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Fidelidade, acima de tudo, à monarquia

Retrato de um rei

Adeus, Europa

O Brasil do outro lado do espelho

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Fidelidade, acima de tudo, à monarquia

Leopoldina passou por sacrifícios para conservar o poder e teve papel fundamental na Independência

Andréa Slemian

               Ainda hoje predomina no senso comum uma visão de D. Leopoldina como esposa dedicada a D. Pedro, que teria sofrido por não ser correspondida, constantemente traída pelo jovem imperador, obscurecida pela marquesa de Santos. Ao mesmo tempo, ela é vista como uma das principais responsáveis pela Independência, que teria apoiado o movimento devido ao amor que nutria pelo Brasil e por seus habitantes. Como se poderia explicar o papel de esposa abnegada a partir do afinco com que a imperatriz atuou politicamente nos idos de 1822 no Rio de Janeiro?    

               Sob o título de arquiduquesa, D. Carolina Josefa Leopoldina nasceu em 1797, filha de Francisco II e de D. Maria Teresa, da casa de Habsburgo, uma das mais tradicionais da Europa. Destacavam-se pela defesa do ideal monárquico absolutista, contra a Revolução Francesa de 1789 e a ascensão de Napoleão Bonaparte – fantasmas permanentes que aterrorizavam a ordem conservadora.

           A jovem Leopoldina, educada com esmero no ambiente ilustrado da Corte de Viena, demonstrava compreender o lugar que lhe fora destinado. Princesas como ela desempenhavam um papel importante na política de casamentos entre as famílias reais, o que assegurava acordos e pactos de alianças entre os Estados e a própria reprodução monárquica. O destino dos jovens príncipes e princesas já estava traçado desde muito cedo em função dos acertos políticos. A arquiduquesa sabia muito bem disso e, na época, esperava que chegasse a sua vez.  

           Antes de Leopoldina completar 19 anos, idade já considerada tardia para os matrimônios das princesas, o imperador Francisco escolhera para seu cônjuge o herdeiro da Coroa portuguesa que, junto com toda a Corte, cruzara os mares em 1807 e 1808, instalando-se no Rio de Janeiro. A escolha não foi por acaso: a Coroa portuguesa também era afeita aos ideais monárquicos absolutistas defendidos pelo governo da Áustria.

           Ainda que Leopoldina pudesse alimentar a expectativa de amar seu futuro esposo, a vontade de cumprir seu papel político de princesa acabaria falando alto. Ambos os sentimentos eram faces da mesma moeda. Ela sabia que, ficando solteira, continuaria a viver na Corte de Viena, e nunca sairia de sua condição de arquiduquesa. Na América, poderia vir a se tornar rainha, sonho de qualquer uma da sua condição. Foi por isso que mais tarde, já no novo continente, escreveria: “por mais difícil que seja a separação de minha família, meu destino é o Brasil e o cumprirei com prazer o mais rápido possível”. Como alento para a grande viagem que a esperava, havia a promessa de que a família real portuguesa ainda regressaria à Europa.

           Logo após a sua chegada em 1817, no entanto, as condições lhe pareceram muito adversas e a vida na nova terra, decepcionante. O clima, a dificuldade em encontrar livros e entretenimentos que fossem comparáveis aos teatros, concertos e saraus vienenses, aliados à dificuldade em achar interlocutores à altura de sua cultura, além de um desapontamento em relação a algumas pessoas da família real, seriam frequentemente notados por ela.

           Leopoldina logo encarou uma de suas obrigações como princesa: a de ter filhos, e assim servir como prolongadora da dinastia. Já em meados de 1818 ela engravidou da primeira filha, Maria da Glória, que nasceu no ano seguinte. Depois, vieram mais cinco rebentos, praticamente um por ano: D. João Carlos, o príncipe da Beira, em 1821 (morto no ano seguinte); D. Januária, em 1822; D. Paula Mariana, em 1823; D. Francisca Carolina, em 1824; e D. Pedro (futuro D. Pedro II do Brasil), em 1825.

           A atuação política de Leopoldina ganhou mais importância na Corte portuguesa no início da década de 1820. Isto porque ela tinha clareza analítica da realidade e consciência de sua obrigação em defender os interesses da Áustria e dos Habsburgo diante do futuro da América. Era parte de suas funções tecer relações políticas, o que muitas vezes fazia de forma bem ostensiva. No melhor sentido do termo, Leopoldina também foi estadista.

           O momento político era conturbado e favorecia a sua participação nos negócios da Corte. Em agosto de 1820, um movimento na cidade do Porto, em Portugal, adquiriu forma revolucionária e voltou-se contra a monarquia absolutista. No começo de 1821, instalou-se uma assembleia de eleição popular – chamada de Cortes – que iniciou seus trabalhos com o principal intuito de elaborar uma Constituição em moldes liberais. Contestava-se a permanência do monarca na América, exigindo sua volta e o fim do destaque dado ao Brasil no conjunto da política imperial. As Cortes tiveram ampla adesão no Império, forçando D. João VI, que se encontrava no Rio de Janeiro, a reconhecer o movimento constitucional em fevereiro de 1821. 

           Leopoldina reagiu a esses acontecimentos com extrema preocupação. Era claro que sua ação política sempre se voltou para manter a fidelidade à tradicional legitimidade monárquica, tão bem representada pelos Habsburgo na Europa, e que rejeitava qualquer tipo de movimento constitucional. O que mais a preocupava era o comportamento do marido que, na sua visão, simpatizava demais com as exigências liberais dos revolucionários. 

           A adesão às Cortes gerou um clima de instabilidade na cidade, principalmente por causa da falta de acordo acerca da residência real. Naqueles dias também se cogitava que o príncipe D. Pedro pudesse ir para a Europa, permanecendo o monarca no Rio de Janeiro. Leopoldina, que se encontrava em vias de ter seu segundo filho, fez manobras para que ela e o marido pudessem voltar ao velho continente. Chegou mesmo a escrever para o pai pedindo que intercedesse neste sentido. No entanto, em abril de 1821, D. João VI e sua esposa partiram para Lisboa, deixando D. Pedro como Regente no Brasil.

           A partida do rei reforçou as disputas entre os grupos que lutavam por maior espaço de poder na Corte, e que chegaram a causar violentos distúrbios urbanos. A princesa, que se encontrava no olho deste furacão, mesmo considerando arriscadíssima a medida de continuar na América por tempo indeterminado, concebeu que poderia ser esta a solução em nome da ordem monárquica no novo continente.  Dessa forma, desde meados de 1821, a princesa via como positiva a permanência de seu esposo no Brasil, demonstrando que, como conservadora que era, não abandonaria a defesa da legitimidade dinástica. 

           A princesa, que temia profundamente qualquer alteração radical na ordem política, foi partidária da Independência do Brasil, desde que ela não cedesse aos excessos liberais. Por isso, aproximou-se de José Bonifácio de Andrada e Silva e de grupos afeitos a ele que, em 1822, atuavam contra as Cortes e qualquer tipo de sublevação social. Foi quando apoiou a permanência do príncipe no Brasil – simbolizado no dia do “Fico” – passando a defender também a Independência, antes mesmo do marido. 

           Do ponto de vista de Leopoldina, a separação de Portugal teve outra incontestável vantagem: a conservação da monarquia. Com o desejo de “afastar o espírito popular das ideias republicanas”, chegou a considerar-se vitoriosa ao se tornar imperatriz do Brasil. Nessa condição, realizou mais uma de suas atribuições políticas: intercedeu diplomaticamente junto ao pai, em 1823, para que a Áustria aceitasse o Brasil como Estado independente e assumisse o papel de seu aliado. 

           É fato que a satisfação que demonstrou nos idos de 1822 nem sempre a acompanhou nos anos seguintes, já que a Independência, encabeçada pelo Centro-Sul do país, também gerou violentas respostas de outras províncias. Apesar disso e da constante reclamação pela falta de interlocutores na cidade, a imperatriz se manteve atenta à movimentação política até seus últimos dias de vida, no ano de 1826. Mesmo afirmando ser o Brasil seu lugar, não deixou de confessar ser um “sacrifício” viver na América, o que nos faz pensar que a tarefa de cumprir os desígnios de sua dinastia seria a única arma capaz de neutralizar o peso do seu sofrimento.

 

Andréa Slemian é professora da Universidade Federal de São Paulo e autora de Sob o império das leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834), (Hucitec, 2009).

 Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 107 - agosto de 2014

 Saiba Mais: Bibliografia

BOJADSEN, Angel (coord.). D. Leopoldina. Cartas de uma imperatriz. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.

JANCSÓ, I. Independência: História e Historiografia. Vol. 1. São Paulo: Hucitec/ Fapesp, 2005. 

LACOMBE, Américo Jacobina (trad.). Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1997.

 Saiba Mais: Links

Retrato de um rei

Adeus, Europa

O Brasil do outro lado do espelho

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ninguém enfrenta o coronel

Incentivados pela Coroa e bem relacionados com a justiça, potentados impunham seu poder nas Minas Gerais com escravos armados.

ANA PAULA PEREIRA COSTA

               Mais de cem escravos arrombaram portas e janelas e invadiram a casa do padre José de Soveral de Miranda, vigário da igreja da freguesia de São Sebastião (atual cidade de Mariana). Segundo seu relato à justiça, depois de matarem “um preto por nome Jereasio a facadas, roubaram 300 oitavas de ouro e várias roupas de seu uso”. Deram-lhe ainda “uma estocada e um tiro que não resultou em morte”. O grupo de escravos pertencia ao coronel Maximiliano de Oliveira Leite e a seu cunhado Caetano Álvares Rodrigues, dois dos homens mais poderosos da localidade. O episódio aconteceu em março de 1726, e ilustra uma prática que se tornou comum na capitania de Minas Gerais durante as primeiras décadas de sua ocupação: o armamento de escravos por parte dos potentados locais, o que lhes proporcionava respeito e vantagens, enquanto fazia aumentar casos de violência e de abusos. 

               A corrida para o território mineiro em busca do metal dourado, sob poderes ainda fragilmente constituídos, criou na região uma atmosfera de tensão, marcada por disputas violentas e crimes de todo tipo praticados por homens e mulheres, livres e escravos, pobres e ricos. Em meio a esse turbulento cenário e preocupados em manter seu poder e autoridade, os poderosos se vigiavam e se atacavam mutuamente, ajudados por tropas de escravos munidos de armas até os dentes.

               As autoridades coloniais acompanhavam a situação com desconfiança. Sabiam que ambos, potentados e escravos, eram úteis para os propósitos de colonização da Coroa portuguesa, ajudando em tarefas de manutenção da ordem, exploração e expansão do território. Por outro lado, percebiam que esses braços armados levavam os poderosos a praticar insolências e audácias. Conter tais atrevimentos era uma questão extremamente delicada. Era preciso encontrar a medida do “bater e soprar” ao lidar com essas figuras: entre perseguir e punir, ou deixar passar.

               Os potentados eram grandes proprietários de terra e de escravos que muitas vezes agiam de forma bastante autônoma em relação à metrópole. Dirigiram-se para Minas Gerais no início do século XVIII para descobrir ouro, e foram conseguindo obter ou ampliar ganhos econômicos e poder de mando. A Coroa portuguesa incentivava a conquista dos sertões com promessas de títulos de nobreza e mercês régias, como cargos públicos. A estas honrarias os potentados adicionavam temor e respeito por meio do comando de escravos armados, em demonstração de força e afirmação pessoal. Assim oscilavam entre colaborar com as políticas coloniais e praticar atos independentes e ilegais – facilitando os descaminhos do ouro, incitando motins, encabeçando violências.

               Um dos mais conhecidos potentados foi Manuel Nunes Viana, líder dos portugueses na Guerra dos Emboabas, ocorrida em Minas Gerais entre 1708 e 1709.  Nascido em Portugal, foi para a capitania mineira tentar a sorte como tantos homens de sua terra. Enriqueceu como comerciante de mantimentos, negociante de gado, fazendeiro e contrabandista de ouro. Fama, riqueza e poder eram sustentados também por uma milícia de escravos armados, que o ajudava a manter a ordem, proteger territórios e expandir seu domínio entre a Bahia e Minas Gerais.

               Mesmo tendo liderado um conflito que desafiou os representantes da Coroa na região, Nunes Viana ganhou mercês de Sua Majestade por prestar serviços ao rei. Recebeu o título de capitão-mor do São Francisco e o de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua sorte só começaria a mudar em 1717, quando Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o conde de Assumar, chegou para governar a capitania. Ele lançou uma severa perseguição aos potentados que ameaçavam sua autoridade na região, principalmente contra Nunes Viana.

               Na Freguesia de São Sebastião, os coronéis Maximiliano de Oliveira Leite e Caetano Álvares Rodrigues também faziam valer sua autoridade, ora contribuindo com a metrópole na manutenção da ordem pública, ora exercendo pela força uma dominação privada. A invasão de seus escravos à casa do padre José de Soveral de Miranda foi exemplo disso.

               Maximiliano era membro de uma das principais famílias de São Paulo – neto do famoso bandeirante e governador das esmeraldas, Fernão Dias Paes Leme, e sobrinho de Garcia Rodrigues Paes Leme, guarda-mor das Minas e responsável pela abertura do Caminho Novo que encurtou a distância entre o porto do Rio de Janeiro e a região do ouro. Assim como seu avô e seu tio, seguiu para a capitania mineira desbravando matas fechadas, trilhas indígenas pouco conhecidas e conquistando terras para a Coroa portuguesa. Tudo em nome do enriquecimento imediato. Esteve entre os primeiros povoadores de Minas Gerais, fixando-se na freguesia de São Sebastião.

               Já o coronel Caetano Álvares Rodrigues nasceu em Lisboa e iniciou-se na carreira militar muito jovem, embarcando para a Índia no posto de soldado. Depois de ter aí servido por seis anos, destacando-se em várias batalhas de mar e terra, foi para a América portuguesa com aproximadamente 23 anos, em 1710. Na capitania mineira realizou uma série de ações na defesa dos interesses de Sua Majestade, o que lhe traria muitas recompensas, como a patente de coronel das ordenanças (1721) e os títulos de cavaleiro da Ordem de Cristo (1731) e de cavaleiro fidalgo da Casa Real (1746).

               As vidas dos dois coronéis se entrelaçaram em 1716, quando Caetano se casou com a irmã de Maximiliano, Dona Francisca Pais de Oliveira. Tornados vizinhos na freguesia de São Sebastião, passaram a estabelecer seus negócios juntos, atuando com mineração e agricultura. Com todos os seus cargos, títulos, atribuições e considerável riqueza, eram considerados os detentores do maior poder de mando na região da Vila do Carmo, que se tornaria cidade de Mariana em 1745.

               Além de respeitados, eram muito temidos. Valiam-se de escravos armados para formar grupos de capangas que utilizavam a fim de resolver pendências pessoais. Naquele contexto, valentia, crueldade e virilidade eram suportes para a credibilidade. Em diversas circunstâncias procuravam se caracterizar pela agressividade de caráter e por constantes demonstrações de brio em público. Eram claros recados para quem ousasse contrariar suas pretensões.

               Não foi à toa que o padre Soveral passou por momentos angustiantes a mando dos dois coronéis. O desafeto entre eles começou porque o sacerdote não quis atender a uma mulher “que Maximiliano lhe foi pedir confessasse, o que o padre repugnou por saber que andava o sobredito amancebado com ela”. Ao negar à concubina de Maximiliano o direito à confissão, o padre ofendia também o potentado, pois descumprir seu pedido era colocar em questão sua autoridade diante da comunidade.

               Isso o coronel não podia deixar passar. Precisava impor limites sobre a população e evitar possíveis transtornos que pudessem atrapalhar sua autoafirmação e a manutenção de sua integridade pessoal. A violência era a melhor resposta. Ela atestava a valentia e resguardava o “território” de domínio dos potentados, garantindo prestígio, poder local e a posse de mando. Junto com seu cunhado Caetano Álvares

Rodrigues, o coronel Maximiliano ordenou a violenta invasão de escravos armados à casa do vigário.

               O caso foi parar em um tribunal, gerando a abertura de um processo. Mas Maximiliano era muito bem relacionado, inclusive com o juiz ordinário responsável pelo pleito, Belchior da Costa Soares. A sentença foi a condenação de apenas 12 escravos à prisão, “daquele grande número que cometeu as referidas insolências, e isso por amizade de ambos e para tapar a boca ao mundo”, como se queixou o padre Soveral.                 

               Assim se pautavam as relações de dominação e os valores culturais nos tempos iniciais de formação de Minas Gerais. Era um cenário marcado pela violência e por conflitos entre interesses do poder público e do poder privado. Mandavam os que tinham terras e escravos armados. Obedeciam os que tinham juízo.

 ANA PAULA PEREIRA COSTA É PROFESSORA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI E AUTORA DE CORPOS DE ORDENANÇAS E CHEFIAS MILITARES EM MINAS COLONIAL: VILA RICA, 1735-1777 (EDITORA FGV, 2014).

 Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016

 Saiba Mais: Bibliografia

ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados”. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

PAIVA, Eduardo França. “De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII”. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F. (orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.

SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando. Banditismo em Minas Gerais – século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

 Saiba Mais: Link

A Febre do ouro

Chica, a verdadeira      

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O endereço da civilização

A Avenida Central, no Rio de Janeiro, nasceu como símbolo da modernidade e tentativa de "civilizar" os brasileiros usando a arquitetura.

Claudia Thurler Ricci


                   O ano era 1902. Após sucessivos governos malogrados, revoltas populares explodindo por todo o território, levantes militares e resistências por parte dos simpatizantes do regime político deposto, o quinto presidente da República era empossado. Sua missão: consolidar a imagem do triunfante regime republicano, dando forma física a uma realidade política e econômica. Rodrigues Alves (1948-1919) teria quatro anos para construir um Brasil moderno.

               Conhecedor da capital federal - e tendo em vista que o Rio de Janeiro também era, àquela época, principal núcleo econômico do país, seja como centro comercial, seja como escoadouro da produção agrícola do interior -, sabia que esta precisava ser remodelada e saneada. Aliás, estes eram os pontos básicos de seu plano de governo.

               O escolhido para levar adiante a empreitada foi Francisco Pereira Passos (1836-1913), nomeado prefeito do Distrito Federal em 1902. Assumiu o governo com poderes ditatoriais: podia legislar por decreto, dispor do aparelho administrativo como quisesse e realizar operações de crédito sem interferência do Legislativo. Aos 66 anos, o engenheiro já possuía longa folha de serviços prestados à administração pública. Presente em Paris nas décadas de 1860 e 1870 - onde estudou engenharia -, testemunhou a reformulação da capital francesa pelo barão Georges-Eugène Haussmann entre 1863 e 1870, com a abertura de monumentais bulevares. Participou, nos anos 1870, da comissão que elaborou amplo projeto para reformulação da capital imperial, já assolada pelas dificuldades de circulação e pelas endemias. Seus objetivos, ao assumir a prefeitura em 1902, eram realizar as reformas de âmbito municipal e garantir as propostas pelo governo federal.

               As obras abrangiam a modernização do porto, até então um cais mal-ajambrado, raso, de traçado recortado, incapaz de comportar equipamentos modernos, receber grandes navios e impossibilitado de escoar a produção que ali chegava; a criação de amplas, retas e arejadas avenidas que ligassem o porto às demais regiões da cidade; o saneamento, iluminação e abastecimento de água nas vias públicas, criando condições de vida e comércio dignas de uma metrópole civilizada.

               Nesta ampla reforma, estava incluída a ideia de construir uma avenida que cortasse o centro da cidade e interligasse o porto ao núcleo comercial, facilitando o fluxo de mercadorias e de pessoas. Assim, o presidente nomeia, em novembro de 1903, como chefe da Comissão Construtora da Avenida Central, o engenheiro Paulo de Frontin (1860-1933), glória da engenharia nacional, responsável pela solução do problema de abastecimento de água na cidade nos últimos dias do Império - um dos motivos de sua escolha para o cargo.

               Caberia à comissão chefiada por Frontin o projeto da nova avenida, a desapropriação e o reloteamento da área, a demolição dos prédios, desmonte de parte dos morros do Castelo e São Bento, remoção do entulho e construção da via, além de julgar e fiscalizar os projetos dos edifícios a serem construídos.

               Logo após sua nomeação, Frontin convocou os proprietários dos prédios a serem demolidos - chamados por alguns, na época, de "usinas de tuberculose" - para negociar as indenizações. No mesmo momento, o Congresso aprovou uma lei que vinculava o valor da indenização ao preço do imóvel informado pelo proprietário para a cobrança do imposto predial. Obviamente, a chiadeira foi generalizada. Mas em vão.

               Três meses depois, apoiado na autoridade do presidente e do prefeito, as demolições começaram. Em 7 de setembro de 1904, após sete meses e mais de seiscentas demolições, chegando ao número de mil operários em turmas que se revezavam dia e noite, inaugurava-se o eixo da avenida, já contando com linha de bonde elétrico. É verdade que, no ato da inauguração, o bonde que levava o presidente - além de ter descarrilado - só percorreu metade dos 1.996 metros da via, já que uma construção não demolida ficava no meio do caminho. Mas isso não ofuscou a façanha de Frontin.

               Segundo o historiador Jaime Benchimol, essa rapidez não era gratuita. O custo social e político da obra era elevadíssimo. Milhares de pessoas foram desabrigadas de uma só vez, e a vida no centro da cidade foi completamente desorganizada. Ao longo do traçado da avenida, inúmeras casas de cômodos e cortiços desapareceram do dia para a noite, assim como vários estabelecimentos comerciais e industriais de pequeno porte. A população desalojada foi obrigada a se deslocar para bairros do subúrbio ou improvisar moradias nos morros próximos ao centro urbano. No decorrer das obras, os políticos e os intelectuais que se opunham a Pereira Passos acusavam o governo de desabrigar os pobres e construir ricos palacetes. A Revolta da Vacina, o maior levante popular urbano do Rio de Janeiro, ocorrido no final de 1904, acontece justamente neste contexto de reforma da cidade e seus "hábitos". A lei da vacinação obrigatória foi, obviamente, o estopim para a explosão do movimento. Mas as medidas arbitrárias tomadas pelo presidente Rodrigues Alves - ou com o seu consentimento - haviam minado a confiança da população pobre no governo. O bota-abaixo, como ficou conhecida a série de demolições durante o governo Pereira Passos, não foi feito com o planejamento necessário. Aliás, as vilas operárias construídas não comportavam a décima parte dos desabrigados. A cidade ficou reservada àqueles que podiam pagar por residências adequadas aos novos padrões de higiene e salubridade.

               Um ano e dois meses depois, no feriado de 15 de novembro de 1905, acontecia a segunda inauguração da Avenida Central. Agora pronta, pavimentada com paralelepípedos de asfalto - após os construtores terem experimentado materiais como madeira e vidro no calçamento das ruas, sem sucesso -, iluminada com eletricidade e gás, arborizada com mudas de pau-brasil e calçada com mosaicos em pedra portuguesa, executados por operários vindos de Lisboa. A esta altura, trinta prédios estavam prontos e 85 em construção, restando apenas quatro lotes para venda.

               Tão logo a avenida se concretiza, seu sentido original é deixado de lado. De eixo de ligação ela passa a funcionar como exemplo de civilização. A via tornou-se aspecto central do plano da elite republicana para a modernização da sociedade brasileira. Era preciso dotar a capital federal de uma nova composição espacial, urbana e arquitetônica, que a organizasse física e simbolicamente. Desta forma, a Avenida Central deveria servir de modelo para as transformações nos hábitos e costumes. Alguns atos do prefeito Pereira Passos, como a proibição de cuspir nas ruas e nos bondes, da criação de porcos no perímetro urbano, da venda de leite levando a vaca de porta em porta, a obrigatoriedade de manter as fachadas dos prédios pintadas, ajudam a compreender o caráter do padrão de civilização a ser implementado no país, partindo-se do Distrito Federal. Diga-se de passagem, as multas fixadas sobre os novos delitos também foram uma forma de a população pobre, arraigada aos velhos costumes, contribuir financeiramente para a modernização da cidade.

               As edificações que compunham a avenida - todas previamente aprovadas pela Comissão Construtora, que promoveu um concurso de fachadas - não tinham como única novidade o seu aspecto exterior, misturando os mais variados estilos da arquitetura. Mais do que um cenário composto por 'belas fachadas', os interiores destas edificações - destinadas a abrigar jornais, bancos, lojas, escritórios e apartamentos -, eram primorosos. Respondiam às necessidades de modernização da capital, ao privilegiar a utilização de novas técnicas, materiais e a implantação de uma infraestrutura capaz de fornecer comodidade a seus usuários - como energia elétrica, esgoto e telefone. A crença no caráter civilizador desta arquitetura, na sua capacidade de modificar os tradicionais hábitos da sociedade - que viveria presa ao passado, simbolizado pelos antigos casarões coloniais, mal arejados e iluminados - se torna um discurso amplamente difundido pela imprensa ilustrada. Naquele momento, foram estas publicações as responsáveis pela construção e divulgação de uma cultura arquitetônica no Brasil, que passou a ser discutida e apresentada em revistas como Kosmos, A Renascença, Fon-Fon! e Selecta.

               A cidade e a arquitetura colonial eram associadas ao atraso, ao desleixo e à falta de higiene. Desta forma, a República tomou para si o dever e a autoridade de retirar a cidade e sua produção arquitetônica deste estado em que fora deixada pelo regime anterior, exterminando os "(...) imundos casebres, essas eternas alcovas, antecâmaras da morte, que inundam o coração da cidade", como afirmou à época um conselheiro municipal. Significativo, neste sentido, foi um concurso promovido pela Gazeta de Notícias para a escolha do nome do novo eixo. A denominação mais votada foi Avenida D. Pedro II. O resto da história é conhecido. A avenida continuou a se chamar Central até 1912, quando um grande vulto do regime republicano passou a dar-lhe nome. Um Paranhos. Não o pai, José Maria da Silva Paranhos, importante estadista do segundo reinado, mas o filho, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Juca, que, apesar de ter sido uma das mais populares figuras da República, era ainda reconhecido pelo título que lhe conferiu o último imperador - barão do Rio Branco.

               Para o cronista Gil, em artigo na revista Kosmos em 1904, a abertura da avenida foi um divisor de águas na história do país, sinalizando o término do período colonial, pois mesmo com a Independência de 1822 continuávamos "presos à mesma influência" e, pior ainda, "aos mesmos usos e aos mesmos preconceitos". Jornalistas e literatos, aliás, foram partes importantes na discussão sobre as reformas e, em particular, a avenida. Nomes como Olavo Bilac, João do Rio e Lima Barreto publicaram textos nos quais se pronunciavam sobre aspectos gerais ou pontuais desta grande transformação pela qual passava a cidade do Rio de Janeiro.

               Entretanto, apesar das críticas, o plano do presidente Rodrigues Alves e seu séquito foi levado adiante. Exemplar, neste sentido, foi a atuação da Comissão Construtora da Avenida Central. A ela eram apresentadas, obrigatoriamente, as plantas dos edifícios a serem construídos. Assim, ficava a cargo de Paulo de Frontin e sua equipe requisitar à prefeitura a licença para a construção - fato que só ocorria após minuciosa análise, que conferia detalhadamente as condições de higiene e salubridade das novas construções. Em 1904, em artigo publicado na revista Kosmos, o cronista Alfredo Lisboa comentou esta nova atribuição do governo, assinalando o fato de que na avenida "a construção dos edifícios obedecerá às normas estabelecidas pelas posturas municipais em vigor (...). Prédio algum poderá ser edificado sem que previamente sejam submetidos ao julgamento da Comissão desenhos detalhados concernentes à planta, à fachada e à disposição interna".

               Os concursos arquitetônicos promovidos pelo governo federal e pela municipalidade tinham por objetivo iniciar a população no cultivo do "bom gosto". Amplamente manipulados pelo governo e com grande divulgação na imprensa, visavam seduzir o cidadão, convencendo-o a mudar seus hábitos, principalmente os estéticos. O primeiro e mais importante destes foi o "Concurso para projetos de fachadas da Avenida Central" realizado em 1904, cuja principal finalidade era que as propostas apresentadas servissem de modelo para os proprietários dos terrenos na nova via pública. Em matéria intitulada "O Concurso Arquitetônico", em março daquele ano, o Jornal do Brasil, ao comentar a exposição dos trabalhos, aponta para a vitória alcançada pelo governo em sua campanha pela renovação arquitetônica da cidade, afirmando que "o sucesso da exposição foi muito além do que esperavam os organizadores do concurso (...) Já os capitalistas e o público em geral começam a convencer-se de que os edifícios da avenida devem ter estética e devem dar testemunho público do nosso adiantamento artístico e intelectual".

               O Theatro Municipal pode servir de exemplo para esta nova concepção do espaço aliado a uma nova sociedade urbana. Ao contrário dos edifícios da Escola Nacional de Belas-Artes e da Biblioteca Nacional, cujos projetos eram destinados a outros locais e que só foram construídos ali devido a problemas pontuais, o teatro é resultado de um concurso, aberto em março de 1904, para o terreno que hoje ocupa na avenida. O vencedor foi Oliveira Passos, filho do prefeito Pereira Passos, ficando em segundo lugar o arquiteto francês Albert Guilbert. Este conturbado concurso ocupou as páginas dos jornais, que criticavam a escolha acusando o prefeito de favorecimento de parentes. Embora a fachada do projeto do arquiteto francês fosse realmente mais bela, o projeto de Oliveira Passos possuía maior qualidade técnica, o que dava a este a prerrogativa de escolha. A solução encontrada foi reunir as duas propostas, criando um edifício que era técnica e esteticamente impecável. Ê certo que tanto Oliveira Passos quanto Albert Guilbert seguiam como modelo a Ópera de Paris, projeto feito pelo arquiteto Charles Garnier em 1861.

               Originalmente construído com capacidade para 1.700 espectadores, o Theatro Municipal era apontado como um exemplo de modernidade, pois congregava as inovações espaciais e tecnológicas alcançadas no período. Sua caixa cênica (palco, maquinário e bastidores) foi construída com equipamentos de tecnologia avançada, importados da Inglaterra, permitindo a presença de um palco móvel. Para gerar a energia que alimentava seus mecanismos cênicos, a iluminação do teatro e a refrigeração do auditório - feita através de um sistema que consistia em acoplar toneladas de gelo aos ventiladores - foi construída uma usina em uma edificação nos fundos do prédio.

               Este é apenas um exemplo, ao qual se poderia somar os 119 prédios construídos na avenida segundo os preceitos do ecletismo, aliando sempre a utilização de novos materiais às exigências do público e ao gosto estético que se formava.

               Vitrine de inovações, cenário da modernidade, palco para uma sociedade civilizada. A Avenida Central, assim, torna-se o emblema de um novo Brasil, governado por um novo regime, que acreditava estar construindo ali o seu espelho. Pode-se dizer, portanto, que a Avenida Rio Branco guarda, hoje, resquícios de um projeto de nação que, passados cem anos, ainda é projeto.

CLAUDIA THURLER RICCI é historiadora da arte e autora da tese: Construir o passado e projetar o futuro: a arquitetura eclética e o projeto civilizatório brasileiro, defendida na UFRJ em 2004

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba Mais: Bibliografia

BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992.

FERREZ, Mare. O álbum da Avenida Central. São Paulo: Ex Libris / João Fortes Engenharia, 1982.

PEREIRA, Sônia G. A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade carioca. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1992.

Saiba Mais: Link

Presidentes da 1ª República - Rodrigues Alves

A Sibéria brasileira

Abaixo a vacina!