“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O pecado original da República

Como a exclusão do povo marcou a vida política do país do início do período republicano até os dias de hoje
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
               Ano de 1889: centenário da Revolução Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava ser essa a ocasião ideal para a proclamação de nossa República, que deveria, segundo ela, ser feita revolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal porta-voz dessa corrente, Silva Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde d'Eu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde um nobre francês, seu eventual fuzilamento daria à revolução brasileira um sabor especial, pois lembraria a morte na guilhotina do rei Luís XVI.
               Um ponto central da propaganda republicana era a ideia de autogoverno, do povo governando a si mesmo, do país se autodirigindo, sem necessidade de uma família real de origem europeia e de um imperador hereditário. Das três correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribuía maior protagonismo ao povo.
               A corrente mais forte era a liberal-federalista, de derivação anglo-americana. O liberalismo vinha do lado anglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norte-americano. O liberalismo predominou no Manifesto Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto de constituição dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por sua ascendência liberal, oriunda dos liberais do Império, ela admitia participação popular, embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, não havia muita simpatia pelo povo. Interessava-lhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.
               A terceira corrente era a positivista, também de filiação francesa, não da Revolução, mas do filósofo Augusto Comte. Os positivistas eram os únicos que não previam papel ativo para o povo na República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os próprios positivistas, no campo material, os empresários. Os positivistas não admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores, era trabalhar, o dever dos empresários e o do Estado era cuidar do bem-estar do povo. 
               Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia política, a incorporação do povo, foi posta em prática pelo novo regime. A primeira década republicana foi marcada pela presença de militares no governo, por agitações, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presença durante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participação jacobina atingiu o ponto máximo na tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A partir do próximo presidente, Campos Sales, a corrente liberal-federalista, sob a hegemonia de São Paulo, passou a predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.
               Até 1930, pode-se dividir o povo da República em três partes. Imaginemos um grande círculo que representa o total da população do país; as fatias dividem essa população de acordo com sua participação política. Assim, a fatia grande representa o povo excluído formalmente da participação via direito do voto. Já a fatia menor representa o povo político, isto é a parcela da população que tinha o direito de voto de acordo com a Constituição de 1891; essa pequena fatia contém uma subdivisão que representa o povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que realmente votava.
               De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma população total, representada pelo círculo maior, de 30,6 milhões. Este é o povo do censo que, pelo menos em tese, possuía direitos civis. Mas quantos desses cidadãos civis eram também cidadãos políticos, quantos pertenciam ao corpo político da nação? Para calcular esse número, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O analfabetismo, na época, atingia 75,5% da população. Feito o cálculo, restam 7,5 milhões. Depois, é preciso descontar as mulheres. Embora a lei não lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradição não votavam. Ficamos com 4,5 milhões. Os estrangeiros também não tinham o direito do voto. Nosso número cai para 3,9 milhões. Finalmente, os homens menores de 21 anos também não votavam. Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema político por meio do voto. Ficam fora do sistema, excluídos, 28,2 milhões, 92% da população.
               Se eram poucos os que podiam votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleições presidenciais de 1910, uma das poucas em que houve competição, disputando Rui Barbosa contra o marechal Hermes da Fonseca, a abstenção foi de 40%. Os votantes representaram apenas 2,7% da população. No Rio de Janeiro, capital da República, onde 20% da população estava apta a votar, compareceu às urnas menos de 1%. Votar na capital era até mesmo perigoso devido à ação dos capangas a serviço dos candidatos. Quem tinha juízo ficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua República dos Bruzundangas: "[Os políticos] tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador - o voto". A eliminação do voto completava-se com a fraude. Ninguém podia ter certeza de que seu voto seria contado a favor do candidato certo.
               Significa isso que o povo da Primeira República não passava da carneirada dos currais eleitorais e da massa apática dos excluídos? Seguramente que não. Por fora do sistema legal de representação, havia ação política, muitas vezes violenta. Entre os poucos que votavam, os que escolhiam não votar e os muitos que não podiam votar, havia o que chamo de povo da rua, isto é, a parcela da população que agia politicamente, mas à margem do sistema político, e às vezes contra ele. É difícil calcular o tamanho desse povo. Podemos apenas surpreendê-lo em suas manifestações. E podemos também dizer que ele existia tanto nas cidades como no campo.
               Nas cidades, sobretudo nas maiores, a tradição de protesto vinha de longe e manifestava-se o mais das vezes nos quebra-quebras. Ela se intensificou a partir da proclamação da República, atingindo o ponto máximo no protesto contra a vacinação obrigatória em 1904. A novidade republicana ficou por conta do movimento operário em fase de organização. Foram inúmeras as greves que atingiram a capital da República e São Paulo, além de outras capitais. Seu auge verificou-se durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos que a seguiram. Calculou-se que 236 greves foram feitas na capital e no estado de São Paulo entre 1917 e 1920, envolvendo cerca de 300 mil operários. Em torno de 100 mil operários participaram da greve geral de 1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade republicana foi a participação política dos militares, jovens oficiais e praças. A mais conhecida e mais dramática dessas manifestações foi a revolta dos marinheiros contra o uso da chibata, em 1910, em que se destacou o marinheiro João Cândido.
          O efeito político das manifestações urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formais de representação. O próprio movimento operário, na medida em que era orientado pelo anarcossindicalismo, sobretudo em São Paulo, fugia da participação eleitoral e nunca organizou um partido político duradouro até que fosse fundado o Partido Comunista, em 1922.
               No mundo rural, foi igualmente intensa a participação do povo. Aí também havia uma longa tradição que foi intensificada pelas mudanças políticas introduzidas pelo novo regime. As figuras centrais das agitações rurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramático de todos esses movimentos, pelo número de mortos, foi sem dúvida o de Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro agiram politicamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanças nas relações entre Igreja e Estado. Lutando contra a "lei do cão" do novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exército, que contra eles lançou quatro expedições, e deram um exemplo único em nossa história de fidelidade incondicional às crenças adotadas.
               Movimento semelhante ao de Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paraná e Santa Catarina. O monge João Maria dera-lhe início ainda no Império. Proclamada a República, seu sucessor reagiu contra o que chamava de "lei da perversão", o equivalente da "lei do cão" do Conselheiro. A partir de 1911, outro sucessor de João Maria, José Maria, lançou um manifesto monarquista e nomeou imperador um fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e sem comércio. Canudos e Contestado foram combatidos e destruídos com violência pelo Exército, que não hesitou em usar canhões contra sertanejos pobremente armados.
               No Ceará, padre Cícero organizou uma comunidade sertaneja que, à época de sua morte, em 1934, contava 40 mil pessoas. Padre Cícero não contestava o sistema, como o Conselheiro e José Maria. A seu modo, agindo mais como coronel político, fundou uma república paternalista muito próxima da população. Manipulando valores tradicionais e colocando-os a serviço da modernidade, reduziu a distância entre o legal e o real, aproximou da população o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos José Lourenço, Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo do Contestado. Padre Cícero entendeu-se com os poderes da República e foi tolerado. Os três beatos foram massacrados juntamente com seus seguidores.
               Os cangaceiros, frutos do mesmo meio social que gerou os beatos, mantinham, como padre Cícero, contatos estreitos com os poderes da República. Mas fugiam ao controle dos coronéis e dos governos estaduais. Foram também combatidos sem trégua e destruídos. Beatos e cangaceiros representavam formas de organização e de reação construídas à margem do sistema político. Canudos, Contestado, e mesmo o Juazeiro do padre Cícero, eram modelos alternativos de república. Apesar de inviáveis por serem produtos do isolamento geográfico e da imensa distância cultural entre a população e o mundo oficial, essas repúblicas foram destruídas a ferro e fogo e só deixaram traços na memória popular. A exceção foi Canudos, que foi imortalizado por Euclides da Cunha, não por acaso um intelectual estranho no ninho das elites.
               O grosso do povo excluído era mantido sob controle pela própria organização social do mundo rural, baseada na grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptação e manipulação. O povo da rua era quase sempre tratado à bala, nas cidades ou no campo.
               Mas a República usou também métodos menos violentos para lidar com seus excluídos. Produziu missionários do progresso que se puseram a catequizar os cidadãos incultos e tratar os doentes. Foram missionários do progresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva e Belisário Pena, saneadores dos sertões. O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivista ortodoxo, que dedicou boa parte da vida à proteção dos indígenas. Muito superiores pelos métodos aos que destruíam pela força os movimentos populares, esses missionários não estiveram imunes a uma visão tecnocrática e autoritária. O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida e civilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferença de que não tinham o apoio popular dos messias do sertão.
               A Primeira República, em seus 41 anos de existência, não fez jus às promessas da propaganda de promover a ampliação da participação política, o autogoverno do povo. Não unificou os três povos, não os incorporou. Não transformou em cidadãos o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o áspero sertanejo de Euclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista do movimento operário.
               A ausência de povo, eis o pecado original da República. Esse pecado deixou marcas profundas na vida política do país. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da incapacidade que demonstra até hoje a República de produzir um governo representativo de seus cidadãos?

JOSE MURILO DE CARVALHO E PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE OS BESTIALIZADOS (COMPANHIA DAS LETRAS, 1987) E A CIDADANIA NO BRASIL: O LONGO CAMINHO (CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2001).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 01 - nº 05 – agosto 2005

Saiba Mais: Bibliografia
LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. São Paulo: Vértice: Rio de Janeiro: íuperj, 1988,
SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

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Outros textos do autor

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Sem raízes e sem medo

Arrancados de suas famílias e levados para outras regiões do Brasil, os escravos resistiram e, por meio de fugas maciças e insubordinação, criaram um ambiente favorável à Abolição.
Richard Graham
               Quem aboliu a escravidão? Não foi a princesa Isabel, que apenas sancionou a lei aprovada pelo Congresso. Mas por que o Congresso aprovou tal lei? Porque, por mais estranho que possa parecer, os próprios donos de escravos assim o reivindicaram quando se sentiram esmagados pela resistência dos cativos nas províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 1887 e primórdios de 1888, uma fuga maciça de escravos tomou as autoridades de surpresa, pois foram incapazes de conter o grande fluxo de fugitivos. Inicialmente, os escravos fugiam às escondidas, mas logo começaram a fazê-lo às claras e chegaram algumas vezes a enfrentar as autoridades com armas de fogo. E até a incendiar canaviais nas redondezas de Campos dos Goytacazes (RJ). Quando o exército foi chamado para ajudar a manter a ordem, seus líderes com desprezo declararam que não desejavam se encarregar "da captura de pobres negros que fogem da escravidão".
               Diante de um fato consumado, o Congresso, precipitado, votou a lei que aboliu a escravidão em maio de 1888. Como explicou um deputado, esta lei "era ato que as circunstâncias impunham, ditado ao governo pelos... próprios lavradores, que não podendo conter a indisciplina nas fazendas nem os escravos que se insubordinavam, iam adiante da propaganda [abolicionista], concedendo ampla e plena liberdade aos seus escravos". O barão de Cotegipe, a favor da escravidão, exclamou indignado: "Para que uma Lei da Abolição? De fato está feita - e revolucionariamente".
               Apesar do enorme número de escravos que viviam na Bahia e em Pernambuco, lá não ocorreu uma fuga em massa. Este contraste indica uma importante diferença na natureza da população escrava: boa parte dos cativos que vivia no Sul tinha sido trazida do Nordeste após 1850 e especialmente na década de 1870. O alto nível de resistência desses cativos arrancados de suas famílias enfraqueceu a autoridade dos proprietários e encorajou os escravos a procurar sua própria liberdade através de uma ação direta.
               O tráfico de escravos entre as províncias é um tema crucial se quisermos entender o processo que levou à Abolição. Nas décadas de 1850 e 1860, depois do término do tráfico com a África, o número de cativos que vieram do Nordeste para as plantações do Sul atingiu 5 a 6 mil por ano. Este número dobrou na década seguinte, quando os preços do algodão e do açúcar caíram precipitadamente e o do café disparou. O historiador Robert Slenes (em Brasil: história econômica e demográfica, organizado por Iraci del Nero da Costa, 1986) concluiu que quase 200 mil cativos foram transferidos de uma província para outra de 1850 em diante.
               Sabemos que na Bahia a maior parte dos escravos assim exportados não pertencia a senhores de engenho mas a pequenos lavradores de cana, plantadores de mandioca e habitantes da cidade de Salvador. Ao final da década de 1870, uma terrível seca assolou o interior de algumas províncias do Nordeste. O resultado foi tanto uma invasão de migrantes livres na zona costeira, onde poderiam ser empregados pelos produtores de açúcar a baixo custo, quanto uma venda generalizada de escravos oriundos das regiões da seca. A província do Ceará, devastada pela estiagem, enviou milhares em direção ao Sul.
               No final, até mesmo os agricultores do Sudeste ficaram preocupados com o fluxo de escravos para suas províncias. Em 1880, São Paulo aprovou uma lei impondo uma pesada taxa em sua importação, mais do que dobrando o preço de um escravo. Embora necessitassem de trabalhadores numa economia em expansão, o medo de uma rebelião levou-os, em efeito, a suspender a importação de mais cativos. Influentes fazendeiros de Campinas diretamente pressionaram a favor desta medida. As províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro logo fizeram o mesmo. Mas já era tarde, como os proprietários de escravos logo iriam descobrir.
               As experiências dos cativos envolvidos no tráfico interno nunca foram boas. Muitos caminharam longas distâncias até os portos do Nordeste para serem embarcados para o Sul. Depois, marchavam do Rio de Janeiro ou de Santos para as fazendas de café. Eles eram muito maltratados pelos negociantes que os recebiam. A historiadora Sandra Lauderdale Graham (em Proteção e obediência, 1992) relata que um oficial do governo criticou o maior traficante do Rio por amontoá-los num espaço pequeno, de tal forma que muitos acabavam doentes. E comentou que, embora esta empresa não fosse tão dura como outras, ainda "deixava muito a desejar". Outro traficante afirmou que os escravos que importara do Nordeste "eram vestidos, alimentados, alojados e tratados do melhor modo possível" - ainda que dos 38 que recebera de uma remessa da província do Ceará, em 1879, 22 morressem enquanto estavam sob seus cuidados. A venda quase sempre caracterizava um momento de separação violenta e grande dor. Como um progressista colocou, em 1877: "o que se fazia com os índios, faz-se hoje com os escravos, assim desumana e barbaramente arrancados ao lugar do seu nascimento, de suas afeições, e às famílias". Um caso extremo é relatado pela historiadora Hebe Mattos: A escrava Justina, além de cuidar de seus três filhos, também cuidava dos filhos de uma outra mulher que tinha sido vendida. Quando percebeu que poderia ter o mesmo destino, afogou seus filhos e tentou o suicídio (em Das cores do silêncio, 1995). O significado do tráfico interno para os 200 mil ou mais escravos que foram arrancados do ambiente familiar, transportados para longe e coagidos por senhores ou capatazes estranhos a realizar novas tarefas não pode ser totalmente conhecido através das fontes disponíveis; mas devemos tentar.
               Considere esses dois casos narrados pelo historiador Sidney Chalhoub. Um escravo, o jovem "pardo escuro" Bráulio, deixou Salvador no começo da década de 1870. Sua mãe e irmão foram mandados para o Rio Grande do Sul, mas Bráulio acabou numa fazenda de café em Valença (RJ). Sua teimosia levou seu senhor a colocá-lo à venda uma vez mais. Finalmente ele fugiu para o Rio, onde se passou por homem livre até ser preso pela polícia. Depois de retornar a seu proprietário, Bráulio enterrou uma ferramenta no peito do homem, admitindo que pretendia matá-lo porque ele era extremamente violento e já tinha assassinado dois escravos desobedientes. Bráulio disse que preferia a pena de morte a continuar sujeito a esse homem. Com isso, desafiou não só seu senhor como a própria escravidão.
               Emergia como um tema comum o desejo de voltar para o Norte. Aos 27 anos, Serafim, nascido de um casal africano em Alagoas, partiu para o Sul em 1878. No Rio, se mostrou desordeiro e insistia em ser mandado de volta. Em vez disso, foi comprado por Domingos Pedro Robert para trabalhar nos cafezais de Minas. Logo Serafim fugiu de volta para o Rio de Janeiro, caminhando à noite, sendo alimentado pelos escravos de outras fazendas. Quando capturado, declarou prontamente que era escravo de Robert. Mas o fazendeiro preferiu abandoná-lo tornando-o livre - do que gastar dinheiro para leva-lo de volta, o que julgou exceder o valor do escravo. Quantos outros senhores perceberam a futilidade de seus esforços para manter a autoridade?
               O controle de escravos foi sempre consequência de uma complexa negociação, embora tácita e continuamente em jogo. Mas aqueles que foram vendidos para o Sul sabiam que quaisquer promessas implícitas feitas por seus antigos donos eram uma mera cesta de mentiras. Os proprietários, feitores e capatazes precisavam conhecer seus escravos, e estes necessitavam conhecer e até confiar naqueles que lhes davam ordens. Com o tráfico interno, isto não correspondia mais à verdade.
               Jovens, na sua maioria homens, arrancados de seu lugar de origem, privados das influências moderadoras exercidas por parentes, os transportados provavelmente estavam cheios de raiva, prontos a explodir. Homens sozinhos sempre têm menos a perder do que os que têm esposas e filhos. Os escravos recém-chegados eram mais rebeldes do que os outros, sendo uma fonte de "desordem e perturbação", como bem colocou o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910). Os senhores que compraram tais escravos sentiam a intranquilidade entre eles. Historiadores como Warren Dean, Célia Maria Marinho de Azevedo e Lana Lage da Gama Lima demonstraram como os contemporâneos perceberam esse fato. Em 1878, um deputado paulista protestava que esses escravos trouxeram "com eles vício, imoralidade, insubordinação... Aqueles fazendeiros que compram escravos de fora” abrigavam "assassinos... em suas casas". Em 1881, o presidente da província do Rio de Janeiro referiu-se aos cativos trazidos para sua província "a cujas fazendas não trazem a resignação e contentamento de sua sorte, que são essenciais à boa ordem delas". Ele esperava que a restrição do tráfico ajudasse a manter "a ordem e tranquilidade dos estabelecimentos rurais".
               Um estudo comparado de fazendas vizinhas próximas a Campinas revela uma maior intranquilidade naquelas em que havia escravos oriundos do tráfico interno do que naquelas com um grupo já estabelecido. Os últimos anos da escravidão testemunharam um grande número de assassinatos de senhores e feitores nas regiões do café. Como consequência, os proprietários de escravos se tornaram cada vez mais temerosos.
               A antiga ordem estava desmoronando. Quanto mais a propriedade escrava ia se concentrando cada vez mais num número menor de mãos e em áreas rurais mais do que nos centros urbanos, o escravismo contava com menos defensores entusiastas. Muitos moradores no Rio de Janeiro e em São Paulo olhavam com imparcialidade a fuga em massa de escravos.
               As contínuas investidas dos escravos, em grande e pequena escala, derrubaram o sistema. É verdade que não temos sólida evidência de que aqueles que participaram das fugas em massa de 1887-1888 foram necessariamente os envolvidos no tráfico interno. Mas o maior campo de ação foi a província de São Paulo, exatamente a província que tinha importado o maior número de cativos de outras regiões. O município açucareiro de Campos, onde os escravos incendiaram os canaviais, foi a única área não-cafeeira da província do Rio de Janeiro que experimentou um aumento no número de escravos entre 1873 e 1882.
               Viessem da cidade, das roças ou da pequena plantação, fossem transferidos de longe ou de perto, as terríveis condições da escravidão se tornaram cada vez mais visíveis, tanto para o escravo como para o livre. O deslocamento provocado pelo tráfico interno submeteu o sistema escravocrata a uma perigosa reviravolta.

RICHARD GRAHAM é professor emérito da Universidade do Texas em Austin (EUA) e autor de Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DEAN, Warren. Rio Claro: A Brazilian Plantation System, 1820-1920. Stanford, CA: Stanford University
Press, 1976.
LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolição. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

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