“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 19 de setembro de 2020

Os deslizes factuais de Os sertões

Obra-prima da literatura brasileira, o livro em que Euclides da Cunha narrou a aniquilação de Canudos passa por uma revisão que evidencia certos exageros

Walnice Nogueira Galvão

               No dia 5 de outubro de 1897 disparou-se o último tiro da Guerra de Canudos, tombando os defensores que restavam. Euclides da Cunha, em Os sertões, registra o fato nas páginas que encerram o livro: "Eram quatro apenas, um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". A imagem, crua e singela, é um bom apanhado do que foi aquela guerra de extermínio, em que um exército equipado com a mais moderna tecnologia bélica massacrou um bando de excluídos, que só dispunham de sua fé e de sua coragem. Testemunha ocular dos combates, Euclides ficaria marcado para sempre pelo que assistira, e ao escrever o que chamou de "livro vingador" extravasou todo o seu horror. Em estilo caracterizado por uma retórica exacerbada e grandiloquente, incorreu algumas vezes em exageros que visavam ao engrandecimento do ocorrido, assim impregnando-o de uma aura de emoções. São portanto antes hipérboles que propriamente distorções propositais da verdade, aqueles deslizes do factual que encontramos em Os sertões.

                    A cobertura da guerra já era controversa à época. Um exame dos jornais - veículo de opiniões infundadas, papéis forjados, cartas falsas, notícias plantadas - mostra que se tratava de uma vasta operação de desinformação. Seu objetivo era convocar os brasileiros para a defesa da jovem República, travestindo Canudos de foco de uma conspiração restauradora da monarquia, com ramificações nacionais e internacionais.

               Logo depois, foram publicados vários livros relatando a campanha, em geral de militares comba-tentes. De lá para cá, a massa de estudos que se acumulou perfaz uma montanha, que continua crescendo. Muito se ganhou e muito se aprendeu com os trabalhos posteriores, sobretudo os que procuraram fugir ao que José Calasans chamou de "gaiola de ouro" de Os sertões. É inestimável o papel desse historiador na renovação de tais estudos, lançando mão da metodologia da história oral e desencavando documentos, quando, a partir dos anos 50, encetou uma série de viagens para entrevistar sobreviventes da guerra. Conseguiu identificar figuras de proa, como por exemplo Pedrão, auxiliar direto de Antônio Conselheiro. Pesquisou aspectos menos conhecidos do episódio, esclarecendo a atitude dos vigários da região, que iam do apoio ao mais violento repúdio; a etimologia da palavra jagunço; os inícios da peregrinação do líder místico; a composição de seu séquito; os caminhos que palmilhou; as trajetórias dos principais canudenses; a poesia popular que se originou daqueles eventos; e inúmeros outros. A partir de sua atuação, não é de surpreender que a Guerra de Canudos tenha passado por um rigoroso processo de revisão.

 A brecha no cerco

               Valeria a pena examinar mais de perto a afirmação, constante das últimas páginas de Os sertões, de que "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo". Sabe-se que muitos moradores, e mesmo alguns cabecilhas, fugiram do arraial cercado. O assédio que o estrangulava nunca seria completado, ficando aberta a estrada de Uauá por ordem do comando militar, deixando uma brecha para quem desejasse fugir. Foi assim que escaparam, por exemplo, os irmãos Vilanova.

               O abastado Antônio Vilanova era o principal comerciante do lugar. Ele e João Abade, homens de confiança do Conselheiro, estavam acima de todos os demais. O poder por assim dizer civil pertencia ao primeiro, enquanto o militar cabia ao segundo, que era o "chefe do povo" e o "comandante da rua". Era este quem liderava a Guarda Católica, ou Companhia do Bom Jesus, uma falange de doze apóstolos uniformizados que constituía o estado-maior de Antônio Conselheiro. João Abade pereceria nos últimos dias da luta. O outro irmão Vilanova, Honório, décadas mais tarde prestaria depoimento que é uma das melhores fontes para um ponto de vista interno ao arraial. Pedrão, outro membro da Guarda Católica, também escapou, e regressaria muito depois, inválido das pernas ao fim de uma vida de lutas. Consciente de seu valor, ao ser entrevistado por Calasans, declarou: "Faz pena um homem como eu morrer sentado".

Bandeira branca

               Se muitos canudenses fugiram do arraial pela estrada de Uauá, outros engrossaram as fileiras de uma rendição coletiva. Três dias antes da guerra terminar, Antônio Beatinho e mais dois companheiros apareceram no acampamento do exército para negociar a rendição. Após combinarem os termos, regressaram à cidadela e de lá escoltaram um triste cortejo de trezentas pessoas, mulheres, crianças e velhos, reduzidos a esqueletos. Entre elas, nenhum homem válido. Em represália, os generais mandaram degolar os negociadores. O cortejo rendeu a melhor e mais famosa foto de Flávio de Barros, autor da cobertura visual da última expedição.  

O heresiarca

               Assim como não pretendia ser d. Sebastião, o Conselheiro tampouco era heresiarca, o que Euclides também poderia ter conferido no livro de sermões. Ao contrário, mantinha-se dentro da mais estrita ortodoxia, tanto é que se recusava a ministrar os sacramentos - batismo, confissão, casamento, eucaristia, extrema-unção - por não ser sacerdote ordenado. Seus sermões veneravam Jesus Cristo e a Virgem Maria, além de referirem temas da doutrina católica ou passagens significativas da Bíblia, como a história do dilúvio, a travessia do Mar Vermelho, etc.

               Como ninguém ignora, o Brasil é o maior país católico do mundo, mas o catolicismo não é sua religião oficial desde que a República, destronando a realeza, separou Estado e Igreja, assim criando um dissídio que seria uma das motivações da Guerra de Canudos. Antônio Conselheiro, e não só ele, desaprovou a medida. O sacramento do matrimônio, até então monopólio da Igreja, perdeu o caráter sagrado, tornando-se civil e profano; os cemitérios também foram retirados da alçada da Igreja. O governante deixou de ser um imperador de direito divino, e passou a ser qualquer um que fosse eleito. Tudo isso desgostou o Conselheiro e seus prosélitos, como se pode constatar nos sermões, nos quais ataca tanto a República quanto os ateus, os protestantes, os maçons e os judeus, por serem inimigos da Igreja.

D. Sebastião no Belo Monte

               Consideremos o diagnóstico de Os sertões de que em Canudos havia influência do sebastianismo, a forma própria que assumiu em Portugal o fenômeno universal do messianismo, dali emigrando para o Brasil. Quando, em 1578, o rei português d. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, Portugal ficou sob o jugo da Espanha por sessenta anos. Só em 1640 a Coroa portuguesa se restabeleceria. A catástrofe daria origem à lenda de que d. Sebastião, cujo cadáver nunca foi encontrado, sobrevivera, para um dia reaparecer, restaurando a grandeza da nação. Logo surgiriam, sucessivamente, vários impostores, depois desmascarados, pretendendo ser d. Sebastião.

               No Brasil, afora manifestações menores, um surto de sebastianismo deu-se no episódio de Pedra Bonita, no interior de Pernambuco, quando um grupo de crentes entregou-se à penitência para fazer d. Sebastião surgir de dentro de uma laje, à custa de sacrifícios humanos. O surto só seria debelado mediante a intervenção das forças armadas, em 1838.

               A presença do sebastianismo em Canudos é mais discutível. Embora Euclides o afirme, não chegou a examinar os sermões de Antônio Conselheiro. À vista deles, certamente verificaria que o beato não aspirava a tal papel. Dois manuscritos contendo sermões, cópias de textos da Bíblia e resumos foram cobiçados como troféus pelos vencedores, e deixam claro que o líder jamais tentou assumir a personalidade do rei português. Mas boa parte de sua congregação nele via d. Sebastião. Euclides fala dos folhetos e papéis dos canudenses com versinhos e profecias, em muitos dos quais d. Sebastião está presente. O que é confirmado por outros autores e pelos jornais da época.

Numância e Massada

               Mesmo se não houvesse fugas e rendições parciais, ainda assim Canudos não seria caso único. Há alguns outros, admiráveis, na História - exemplos que Euclides certamente estudara na Escola Militar. O que chama a atenção é a semelhança da prática tanto de suicídios quanto de incêndios como armas destinadas a frustrar o triunfo do adversário.

               Afonso Arinos, que viria a ser o primeiro a publicar um livro sobre Canudos, o romance Os jagunços, lembrara episódio similar no jornal que dirigia, O Comércio de São Paulo. Em editorial intitulado "Numância", celebrara a intrepidez dos defensores da cidade espanhola que resistira às legiões romanas, em 133 a.C. Ante um assédio que se prolongava, à beira da inanição, mandaram avisar aos atacantes que se entregariam no dia seguinte. Quando estes penetram as muralhas, deparam com uma cidade em chamas, em que todos os cidadãos se jogavam no fogo. Arinos acentua que o caso de Canudos é pior, porque foram soldados compatriotas que atearam fogo ao arraial e assistiram as mães com filhos ao colo se lançarem no incêndio.

               Outro exemplo amplamente conhecido é o da fortaleza de Massada, em Israel. Quem procede ao relato é Flavius Josephus, o historiador judeu tornado cidadão romano, no primeiro século da era cristã. Os rebeldes hebreus, devotos de uma seita religiosa, resistiram por dois anos à ofensiva romana. No fim de suas forças, suicidaram-se e incendiaram o reduto, para não cair vivos nas mãos do inimigo.

               Tanto em Canudos quanto em Numância e Massada, o paralelo se estabelece entre aqueles que exercem sua liberdade preferindo morrer a vergar-se aos grilhões da servidão. Nos três, o impacto reside na imagem de pessoas dando-se a morte e lançando-se ao fogo. Mas, novamente, ao fazer do Belo Monte caso único, Euclides cunha uma hipérbole, um exagero, que força um pouco os limites dos precedentes históricos.

A demografia da cidadela

               Bastante questionadas hoje em dia são as dimensões do arraial e a cifra de seus habitantes. O laudo oficial do exército, que Euclides acata, computou 5.200 casas. Dada a fecundidade das famílias sertanejas e a presença dos parentes mais velhos, a estimativa modesta de cinco pessoas por domicílio daria um total de 26 mil habitantes. O que faria de Canudos a segunda maior cidade da Bahia, logo depois de Salvador; e isso numa época em que mesmo São Paulo mal atingia 200 mil pessoas.

               As dúvidas incidem sobre a possível inflação da contagem, querendo o exército vangloriar-se de uma vitória arduamente conquistada. Nos croquis que Euclides esboçou em sua caderneta de campo, vê-se com clareza uma povoação bem menor. Supõe-se que a mão do engenheiro reproduziria com rigor científico o que tinha diante dos olhos, tal como aprendera a fazer na Escola Militar, onde estudara desenho.

 Cartas de dentro e de fora

               Sabe-se que Canudos se avolumou quando seus habitantes clamaram por socorro, despachando emissários e entregando-se ao proselitismo epistolar. Em verdade, a afluência começa assim que os nômades, ante o recrudescimento da perseguição, se tornam sedentários após vinte anos de perambulação, em 1893. Batem então em retirada, para se isolar e se fortificar no Belo Monte, nome bíblico que dão a Canudos.

               Por isso, as cartas dos canudenses a parentes e amigos se traduzem afinal em recrutamento de correligionários. Disputadas como pilhagem nas cinzas da cidadela arrasada, são transcritas aqui e ali pela imprensa ou pelos livros sobre a guerra. Euclides anotou várias na caderneta de campo. Os missivistas não pediam propriamente socorro, mas alertavam ser aquela a última chance de "salvar a alma", porque o fim do mundo se avizinhava e só se redimiria quem estivesse dentro do perímetro de Canudos. Um escreve que o Belo Monte será "a barquinha de Noé", no Dia do Juízo. Outro convoca voluntários para morrer aos pés do Bom Jesus. Essas são as cartas de dentro.

               Bem mais abundantes e reveladoras são as cartas de fora. Dão conta de que a região estava se despovoando, com bandos de gente que passava de mudança rumo à cidadela, carregando seus trastes. Fonte preciosa, integram a correspondência passiva do poderoso barão do Império e oligarca republicano, Cícero Dantas Martins, barão de Jeremoabo.

               Além de tudo o que tramou ou nos bastidores ou publicamente no Parlamento, o barão revelou-se um grande publicista ao assumir a missão de inflamar os ânimos com relação ao perigo que Canudos encarnava. Possuindo nada menos do que 59 fazendas na Bahia e duas em Sergipe, deve ter sido o maior proprietário fundiário dos sertões. Pode-se calcular o porte e extensão da rede de relações de parentesco, compadrio e clientela que manejava, com articulações nas esferas municipal, estadual e nacional.

               À luz de sua correspondência, compreende-se como a destruição de Canudos foi sendo passo a passo arquitetada e quanto esforço exigiu o desmantelamento do apoio logístico de que o Conselheiro desfrutava na região. Tal apoio não provinha só de miseráveis, mas incluía fazendeiros, comerciantes e gente de posses.

               Boa parte dessa correspondência dá voz ao alarme dos fazendeiros perante o carisma do líder, que lhes arrebatava os braços da labuta em suas terras. "Seguiu daqui e destas imediações esta semana para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror!!...", escreve um. Outro avisa: "Temos muito breve de ver este sertão confiscado por ele e seu povo; pois está com mais de 16 mil pessoas; povo este miserável tudo que foi escravo, tudo que é criminoso de todas as províncias". O primeiro temor dos fazendeiros era de perder, como de fato estavam perdendo, a mão de obra, que abandonava o trabalho nas fazendas e refluía para o arraial. O segundo temor era de que suas propriedades fossem invadidas pelos canudenses, que assim tomariam a iniciativa de implementar a reforma agrária.

 Instantâneo de Canudos

               A questão da demografia canudense, tão discutida, é por enquanto difícil de decidir. A planta do arraial tampouco ajuda, como constatamos nos croquis de Euclides, aliados aos pareceres de todos aqueles que o tiveram sob os olhos e escreveram suas impressões. Numa alça do leito do rio Vaza-Barris, seco àquela altura, avistava-se um labirinto de vielas e becos dispostos nas colinas de um terreno acidentado, sem que o olhar percebesse um traçado linear, nem calçadas, nem meios-fios. Distinguia-se uma única rua, que passava pela praça das igrejas, curta de extensão, onde ficavam as casas de telha rebocadas e caiadas, que pertenciam aos mais abastados.

                O restante se dispunha em desordem, numa aglomeração de casebres improvisados, ostentando só uma porta e nenhuma janela, edificados às pressas, por gente que para ali acorrera para entregar-se à ascese enquanto aguardava o fim do mundo. De pau a pique ou taipa, o conjunto inteiro tinha a mesma cor da terra de que era feito. Segundo as testemunhas, o Belo Monte desnorteava. Na expressão de Euclides: "...como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos..."   

               Atualmente, as esperanças para elucidar o enigma de suas dimensões estão depositadas na pesquisa arqueológica que vem sendo realizada dentro do projeto do Parque Estadual de Canudos, criado em 1986, sob a responsabilidade da Universidade Estadual da Bahia. Várias escavações já foram feitas, visando ao levantamento de trincheiras, ossadas, utensílios domésticos e material bélico. Resgataram-se a Igreja Velha, a Igreja Nova e a Fazenda Velha. Certamente, um dos pontos de interesse dessas pesquisas será a determinação do número de domicílios do arraial, permitindo um cálculo melhor de sua demografia.

 WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Tem 22 livros publicados sobre Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, crítica literária e cultural.

 Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

 Saiba Mais: Bibliografia

CUNHA, E. da. Os sertões. Ed. crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.

GALVÃO, W. N. No calor da hora - A Guerra de Canudos nos jornais. 3a ed. São Paulo: Ática, 1997.

_____ Império do Belo Monte - Vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

GALVÃO W. N. e PERES F. da R. (Orgs.). Breviário de Antônio Conselheiro. Salvador: Editora da UFBA, 2002.

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Misticismo e sangue

Especial – Canudos - Viver e morrer em Belo Monte

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Especial - Canudos - A mídia em campanha

terça-feira, 8 de setembro de 2020

De braços dados e cruzados

Antes mesmo dos direitos trabalhistas, o movimento libertário esteve no centro da organização das primeiras grandes greves do país.
CARLOS AUGUSTO ADDOR
               No Brasil da Primeira República (1889-1930), os trabalhadores urbanos viviam num verdadeiro "inferno social". Homens, mulheres e crianças passavam 12, 14 ou até mesmo 16 horas diárias, ao longo de seis dias por semana, no interior de fábricas insalubres e perigosas. Álvaro Corrêa, antigo operário têxtil e gráfico em fábricas do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora nas primeiras décadas do século XX, contou ter visto "moças serem esbofeteadas e saírem chorando sem um protesto para não perder o emprego". As mulheres eram também vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças eram espancadas por quaisquer deslizes no trabalho. No interior da Fábrica de Tecidos Penteado, na capital paulista, um caso ocorrido em 1922 é exemplar e assustador. Um menino chamado Daniel, exausto após longa jornada de trabalho, adormeceu e perdeu o horário de saída. A segurança do prédio era feita, à noite, por um vigia acompanhado de cães ferozes. Daniel foi dilacerado pelas feras, morrendo no hospital depois de longa e dolorosa agonia.
               Embora em 1919 tivesse sido promulgada no Brasil uma primeira lei sobre acidentes de trabalho, ao longo da Primeira República essa lei, na prática, permaneceu letra morta. O Estado não se propunha a intervir de forma normativa sobre o mundo do trabalho, garantindo aos empresários a possibilidade de superexplorar os trabalhadores. Junte a isso o fato de que nas três primeiras décadas da República chegaram ao Brasil cerca de 4 milhões de europeus, em sua maioria italianos, espanhóis e portugueses. Isso criou uma situação boa para os patrões, péssima para os operários. Sobrava mão de obra, aumentava o desemprego.
               Esses imigrantes, ao lado dos brasileiros, teriam papel decisivo no processo de formação da classe operária. Num primeiro momento, afloraram rivalidades, disputas e conflitos interétnicos. Entretanto, ao longo do tempo, o partilhar do duro e sofrido cotidiano fabril levou os trabalhadores a minimizarem suas diferenças e a priorizarem interesses comuns. Aos poucos, forma-se uma identidade (e uma consciência) de classe.
               As ideias anarquistas vieram com os imigrantes, o que levou setores do patronato e membros do aparelho de Estado a formularem a imagem da "planta exótica": uma ideologia estrangeira que não encontraria terreno fértil para se desenvolver no Brasil. Essa imagem seria usada de forma recorrente para tentar desqualificar o anarquismo, à medida que ele conquistava adesão crescente. Também era utilizada para justificar processos de deportação de trabalhadores estrangeiros que "perturbassem a ordem pública ou a paz social", ou seja, que participassem de greves, comícios e outras manifestações públicas. A Lei Adolfo Gordo, promulgada em 1904 e regulamentada em 1907, fundamentou juridicamente o processo de expulsão de centenas de militantes estrangeiros e brasileiros, enviados para rincões remotos como os seringais do Acre e, nos anos 1920, para a colônia penal de Clevelândia, no Amapá.
               Apesar da perseguição, o anarquismo ampliava sua presença nos sindicatos operários e no debate político e intelectual, denunciando, através de uma imprensa bastante vigorosa, as condições de vida impostas aos trabalhadores. Em 1903, no Rio de Janeiro, e em 1907, em São Paulo, duas greves mobilizaram trabalhadores de vários setores, cujas principais reivindicações eram "os três oitos" - jornada de oito horas de trabalho, propiciando oito horas de repouso e oito horas livres. Ao fim das greves, algumas categorias profissionais com maior poder de barganha conseguiram a redução da jornada, se não para oito, ao menos para nove horas.
               Em abril de 1906, foi realizado no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso Operário Brasileiro, com clara influência anarquista. Uma de suas resoluções, efetivada em 1908, era a criação da Confederação Operária Brasileira (COB) que, por sua vez, lançou o jornal A Voz do Trabalhador, um dos mais importantes periódicos da imprensa operária na Primeira República, ao lado de A Plebe, Guerra Social, A Terra Livre, Na Barricada, Spartacus, A Voz do Povo e A Lanterna - este último ainda enfatizava o caráter anticlerical do anarquismo.
               A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou o movimento anarquista a reafirmar seu caráter internacionalista, pacifista e antimilitarista. Em São Paulo, o movimento pôs em circulação cartões-postais com a expressão "Papai, não vás à guerra", ecoando o lema "Não mandes teus filhos à guerra", que anarquistas divulgavam na Europa. Intelectuais libertários, como o paulista Edgard Leuenroth (1881-1968) e o baiano Fábio Luz (18641938), escrevem e publicam artigos e manifestos propondo transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária. O jornal libertário paulistano La Propaganda conclama os pacifistas a "declarar guerra à guerra". Em outubro de 1915, a COB organiza no Rio de Janeiro o Congresso Internacional
da Paz, do qual participam delegados de sindicatos e federações operárias do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Dias depois, militantes promovem na sede do COB o Congresso Anarquista Sul-Americano, com a presença de delegados da Argentina e do Uruguai.
               Os efeitos da guerra mundial sobre a economia brasileira são terríveis: redução do comércio externo, retração da atividade fabril, desemprego, carências generalizadas. Mas uma notícia vinda do Oriente anima trabalhadores e militantes anarquistas, socialistas e comunistas: em 1917, pela primeira vez uma revolução que se diz socialista, feita em nome dos operários e dos camponeses russos, chega ao poder. Cria um clima de euforia revolucionária e alimenta expectativas de que o capitalismo estaria agonizante. Durante os anos seguintes, os anarquistas ainda acreditam numa suposta dimensão libertária da Revolução Russa que, por meio da "revolução social", completaria o processo iniciado com a Revolução Francesa (1789), a "revolução política". Os massacres dos marinheiros de Kronstadt e dos camponeses ucranianos liderados pelo anarquista Nestor Makhno, ambos em 1921, enterram essas ilusões.
               Em 1917, grandes greves envolveram dezenas de milhares de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital paulista, onde militantes anarquistas vinham há anos desenvolvendo atividades de propaganda libertária, o assassinato do jovem sapateiro espanhol José Martinez pela polícia, num conflito de rua, transformou uma greve já bem ampla em greve geral, que paralisou a cidade por alguns dias. Durante a greve formou-se o Comitê de Defesa Proletária, composto por cinco militantes anarquistas e um socialista, para negociar um acordo com os patrões. Algumas demandas, como reajustes salariais e redução de jornada de trabalho, foram parcialmente atendidas e o acordo foi ratificado por três grandes comícios públicos. Foi a primeira greve geral parcialmente vitoriosa na história brasileira, contribuindo para a autoestima da classe operária. No entanto, muitos patrões não cumpriram o acordo e as autoridades públicas não honraram sua palavra: vários líderes foram perseguidos e presos, e alguns estrangeiros deportados.
               No ano seguinte, outras duas greves tiveram grande efeito simbólico. Em agosto, pararam os trabalhadores da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que operava as barcas entre Rio de Janeiro e Niterói e os bondes desta última. O movimento se radicalizou. Num conflito entre operários e policiais na rua da Conceição, em Niterói, alguns soldados do Exército tomaram partido dos grevistas. Um cabo e um soldado morreram no confronto, e ganharam homenagens de delegações operárias. O episódio foi associado à experiência russa de confraternização entre conselhos de operários (sovtets) e soldados, estimulando a imaginação dos libertários brasileiros: sonhavam com a formação do "Soviet do Rio". Em novembro, a greve de dezenas de milhares de tecelões, metalúrgicos e operários da construção civil, no Rio, articula-se com uma tentativa de insurreição planejada por militantes anarquistas - rapidamente delatada e reprimida. Seus principais líderes, José Oiticica, Astrojildo Pereira e Agripino Nazaré, são presos. Oiticica é "deportado" para Alagoas e Agripino para a Bahia. A greve operária, pacífica e até certo ponto independente da atividade dos anarquistas, também foi duramente reprimida pela polícia. Respaldados pelo governo, os patrões endureceram sua posição: não mais reconheceriam a União dos Operários em Fábricas de Tecidos (Uoft), uma das organizadoras do movimento, como entidade representativa dos têxteis, por estar "dominada por elementos anarquistas estranhos à classe".
               Mesmo derrotadas em sua maioria, essas greves colocaram a causa operária, pela primeira vez, em destaque na grande imprensa. Não seria mais possível continuar com o discurso de que não havia razão para greves no Brasil. Contudo, reconhecer a legitimidade de reivindicações operárias não significa aceitar o anarquismo. Em 19 de novembro de 1918, o jornal A Razão, que se dizia um órgão defensor da "causa das classes que trabalham", publica o artigo "O joio e o trigo". O "trigo" seriam os trabalhadores brasileiros, honrados, dóceis, laboriosos. E o "joio", os anarquistas estrangeiros, "apátridas, homens sem Deus, sem honra, sem família, ingratos com a terra que os acolheu, mazorqueiros (desordeiros), arruaceiros que vivem a pregar a subversão social e política, a revolução que lhes entregue o poder". Uma das poucas vozes a sair em defesa do anarquismo é a do escritor Lima Barreto, em especial nas crónicas "Da minha cela" e "Sobre o Maximalismo".
               No início da década de 1920, as divergências entre anarquistas e comunistas se aprofundam. Astrojildo Pereira, ex-anarquista, adere ao bolchevismo e participa da fundação do Partido Comunista do Brasil (1922). Torna-se um dos mais ácidos críticos do anarquismo, segundo ele, uma proposta "utópica", sem condições políticas para elaborar um projeto consistente de revolução socialista. A verdade viria unicamente de Moscou. Essa visão comunista sobre o anarquismo iria se consolidar nas décadas seguintes. José Oiticica e Fábio Luz, entre outros anarquistas, contestam duramente Astrojildo. Para eles, qualquer ditadura, mesmo aquelas que se dizem "de esquerda" ou "do proletariado", deve ser combatida e ter suas arbitrariedades denunciadas. "Como anarquistas revolucionários (...) não podemos concordar que à ditadura do capitalismo, origem de toda a tirania, se oponha a ditadura de outra classe, embora essa classe seja o proletariado", afirma o jornal A Plebe em 1922.
               O estado de sítio promulgado em 1922 para auxiliar o governo no combate aos primeiros levantes militares que marcarão toda a década incide fortemente sobre o movimento operário: sindicatos são fechados, lideranças presas e deportadas, jornais empastelados. Além de uma repressão mais dura, o governo republicano começa a cooptar ou assimilar setores da classe trabalhadora através da elaboração de leis, como a das férias, um código para o trabalho infantil e um projeto de aposentadoria e pensões. É um período de transição entre o liberalismo ortodoxo vigente nas primeiras décadas do século e a construção, ao longo das décadas de 1930 e 1940, do Estado autoritário e centralista, do qual o sindicalismo corporativista será peça estratégica. Fechavam-se os espaços ao anarquismo na vida operária do Brasil.

CARLOS AUGUSTO ADDOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE UM HOMEM VALE UM HOMEM: MEMÓRIA. HISTÓRIA E ANARQUISMO NA OBRA DE EDGAR RODRIGUES (ACHIAMÉ, 2012).

Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL - ano 08 - nº 95 – agosto 2013

Saiba Mais: Bibliografia
RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2000,
REIS, Daniel Aarão & DEMICINIS, Rafael (orgs.). História do Anarquismo no Brasil Vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad X / Eduff, 2006.


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