Nas Olimpíadas de 1968, as atletas tinham que comprovar que eram mulheres
submetendo-se a testes constrangedores.
“Olimpíadas vencem a guerra dos sexos”,
anunciou o Jornal dos Sports no dia 30 de outubro de 1968. O tom da
manchete reflete a empolgação em torno de uma novidade implantada no megaevento
disputado na Cidade do México: o exame científico para confirmar o sexo das
atletas.
O texto da notícia parecia imparcial: “A
presença de indivíduos cujo sexo não pode ser perfeitamente definido nas provas
femininas das Olimpíadas está completamente banida e a prova é que muitos dos
maiores atletas que o mundo já viu ou não chegam ao México ou, lá chegados, se
negaram a submeter-se às provas para comprovação de sexo – disse ontem na
redação do JS o Dr. Aníbal Silva e Costa, presidente da Sociedade Portuguesa de
Medicina Esportiva. 'A obrigatoriedade dos exames de sexo há muito tempo devia
constar dos regulamentos olímpicos para evitar a sobrevivência dos
hermafroditas no esporte. Sempre fui a favor dos exames porque existem mulheres
que competem em tal categoria que na realidade são homens. Com a
obrigatoriedade dos exames, alguns fenômenos esportivos como as irmãs Irina e
Tâmara Press, da União Soviética, não compareceram ao México'”.
Pela primeira vez as mulheres atletas
tinham seus corpos vasculhados, sua sexualidade questionada, seu sexo
verificado cientificamente. Sob a orientação de um comitê médico, os testes de
feminilidade, também divulgados como testes de sexo, garantiam uma “carteira
rosa” às atletas consideradas aptas a competir. Reduzidas à equação XX, através
da contagem dos cromossomos, somente assim elas poderiam participar de Jogos
oficialmente organizados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).
Nos primeiros Jogos Olímpicos da era
moderna, em 1896, as mulheres não podiam competir. Sua inserção nas competições
internacionais foi gradativa. A antiga crença na vulnerabilidade biológica e na
fragilidade inata deixava as mulheres de fora de muitos eventos desportivos. Fragilidade,
vulnerabilidade e passividade foram consideradas características totalmente
desfavoráveis à exigência de desempenho atlético. Durante todo o século XIX, na
Europa, essa ideologia da natureza feminina foi fundamentada “cientificamente”:
buscava-se provar que a mulher é fisicamente inferior ao homem, inclusive pela
capacidade de engravidar. As disciplinas requisitadas para defender tais argumentos
eram a obstetrícia, a biologia, a sociologia, a psicologia, a antropologia e a
ginecologia. Esta última consolidou a imagem da mulher como um ser submetido ao
império de seus órgãos genitais – que determinariam sua natureza nervosa,
frágil e inconstante e sua predisposição a doenças e perturbações mentais,
moldando assim suas capacidades sociais.
Alguns biólogos e médicos, como Cesare
Lombroso (1836-1909), reforçaram naquele século que o cérebro da mulher era
menor que o do homem e que o ovário e o útero exigiam muita energia e repouso
para funcionar apropriadamente. Em consequência, as meninas deveriam ser
mantidas longe de escolas e faculdades a partir do momento em que começassem a
menstruar. Sem esse tipo de precaução, seus úteros e ovários poderiam se
atrofiar e a raça humana se extinguir.
A mesma análise não se estendia às
mulheres pobres, obrigadas a trabalhar duramente e censuradas por se
reproduzirem demais. Na verdade, justamente por conseguirem trabalhar tanto e
ainda assim gerar muitos filhos, elas eram consideradas mais próximas dos
animais e menos evoluídas do que as mulheres das classes altas.
Em 1968, diante da notícia de que haveria
regras taxativas contra o dopping e contra mulheres de “sexo duvidoso”,
a imprensa se mostrou complacente com as versões científicas da comprovação da
inferioridade feminina e de sua inaptidão para os esportes. Naquele momento, a
indeterminação do sexo por um exame “científico” soava como uma ameaça ao
regime social heterossexista. Ao mesmo tempo, a homossexualidade feminina
colocava em risco o regime patriarcal predominante, no qual as mulheres assumem
papéis sociais considerados hierarquicamente inferiores aos dos homens,
tornando-se consciente ou inconscientemente submissas a eles. Mulheres lésbicas
ou com gênero indeterminado eram uma ameaça ao pretenso equilíbrio social. Por
isso o teste de sexualidade das Olimpíadas do México foi tão bem recebido. “O
exame para a comprovação de sexo – masculino ou feminino – é bastante simples e
pode ser feito através de pesquisa de dois materiais: saliva ou sangue. Colhido
o material, os cromossomos são contados. Se atingir um índice X,
morfologicamente a atleta é impedida de competir entre as mulheres, já que
passa a ser considerada uma anomalia”, explicava o Jornal dos Sports.
Em uma seção especial destinada aos Jogos
Olímpicos, o Jornal do Brasil também comentou a novidade: “Sobre a
questão do controle de sexo, exigido pelo regulamento, o secretário geral
Joanes Westterohff disse que a Federação Internacional de Natação foi a única
que não respondeu oficialmente ao convite que lhe fez o presidente da comissão
médica para as nadadoras se submeterem à verificação sexual, apesar de as
nadadoras, em sua petição de inscrição, terem firmado o compromisso de se
submeterem ao controle de sexo e controle sobre o uso de drogas. O presidente
da comissão médica acrescentou que várias atletas femininas inscritas nos Jogos
já haviam aceito voluntariamente as exigências regulamentares”.
“Aceito voluntariamente as exigências” é
uma contradição, pois se é uma exigência jamais será voluntária. Além disso, o
olhar retrospectivo para aqueles acontecimentos desperta dúvidas sobre o
vínculo entre os testes e o dopping. Sobretudo pela recusa das
nadadoras, pois a natação era o esporte com mais casos de uso de substâncias
químicas para melhoria do desempenho em edições anteriores das Olimpíadas.
Talvez fosse mais fácil duvidar da “natureza do sexo” do que assumir que o dopping
era usado em grande escala – algo desaconselhável diante de uma indústria
fármaco-química em franca ascensão mundial.
Os testes de feminilidade duraram oito
edições dos Jogos Olímpicos, de 1968 até 2000. Por que duraram mais de três
décadas mesmo diante das críticas, tanto de associações e entidades médicas e
científicas como da imprensa e das próprias atletas? Essa medida e sua duração
podem ser vistas como barreira à participação feminina e como uma forma de
mascarar o fato de que o dopping assumira proporções incontroláveis com
o advento da indústria fármaco-química.
A imagem de uma mulher forte e atlética
confundia as certezas criadas pela ciência do sexo e do gênero como norma catalogável.
Vale dizer que, antes das Olimpíadas de 1968, o teste de sexo era feito da
seguinte forma: as mulheres expunham seus corpos nus a um comitê de “peritos”,
que julgavam e certificavam se sua morfologia era compatível com a ideia que
tinham de feminilidade. Como tal prática significava uma exposição pública dos
corpos das atletas e vinha ganhando críticas das entidades esportivas, o comitê
resolveu “modernizá-la”.
O parâmetro genético adotado no teste de
cromossomos indicava uma nova realidade: a política tecnológica de
monitoramento e catalogação dos corpos femininos. A “carteira rosa” simbolizava
feminilidade. Era o passaporte das mulheres para o universo idílico de um
feminino universal, naturalizado e definido por uma equipe de peritos composta
por homens.
Patrícia Lessa é professora
da Universidade Estadual de Maringá e autora do relatório de pós-doutorado “A
fabricação dos tecno-bio-corpos e a produção do sexismo na linguagem”, (UFF,
2010).
Saiba mais - bibliografia
DEVIDE, Fabiano Pries. Gênero
e mulheres no esporte: história das mulheres nos jogos olímpicos modernos.
Ijuí: Unijui, 2005.
VOTRE. Sebastião (org.). Gênero e atividade física. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2011.
VOTRE. Sebastião (org.). Gênero e atividade física. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2011.
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