Fernanda
Paula Sousa Maia
“Amputado
da sua continuação além-atlântico (que outra coisa não era então o Brasil)".
Na ressaca da Independência do Brasil, era assim, mutilado, que Portugal se
percebia, na análise perspicaz do ensaísta lusitano Eduardo Lourenço. Para os
liberais portugueses de 1800, na qualidade de intelectuais e de políticos, o
desafio era justamente explicar essa perda, além de tentar resolver a
insegurança sentida por um país que apenas encontrava justificativa, como
nação, nos seus prolongamentos ultramarinos. E não estavam em questão apenas as
consequências econômicas da separação, mas a superação da crise de identidade
nacional que a Independência gerou em Portugal.
Para lançar um pouco de luz sobre as
relações Portugal-Brasil nesse período, vale a pena enfocar o papel exercido
pelos deputados eleitos de Portugal, entre 1826 e 1852: até que ponto a atuação
parlamentar esteve na origem do pensamento político e do discurso oficial sobre
o Brasil? Embora se encontrassem num momento de definição do seu papel na vida
política nacional - com o fim do regime absolutista em Portugal -, pouco a
pouco os deputados foram aprendendo a intervir em assuntos até então reservados
aos governos e aos chefes supremos do Estado. Ao mesmo tempo, partilhavam suas
ideias com uma opinião pública urbana cada vez mais consciente e que seguia
atentamente, pelos jornais e nas galerias da Assembleia, os longos debates
parlamentares. Conscientes dessa vigilância, e pressionados pelos interesses
políticos e econômicos que representavam, os parlamentares acabariam por
produzir um discurso compatível com o que podia ser politicamente dito.
Foi assim
que desfilaram na Câmara Legislativa os principais temas sobre as relações Portugal-Brasil,
permitindo estabelecer algumas constantes. Como: por exemplo, aspectos
políticos e diplomáticos resultantes da aplicação do Tratado de 1825 (ver box), as relações econômicas entre os dois
países, e a emigração para o Brasil.
Considerado em Portugal um "mau
tratado", a sua aplicação, no entanto, motivou grande parte dos debates na
Assembleia Legislativa portuguesa. E uma das questões mais delicadas viria a
ser a aplicação do artigo 9º do tratado, que estabelecia o pagamento, pelo
Brasil, de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, para compensar
as perdas sofridas por Portugal com a separação. O anúncio do pagamento dessa
quantia em um ano, após a ratificação do tratado, fazia prever uma rápida
conclusão da pendência.
O relacionamento comercial entre os dois
países também provocou uma participação mais ativa na Assembleia, apesar de os
deputados ainda não estarem preparados para ver o Brasil como um parceiro
comercial igual a qualquer outro. Como advertiu, logo em 1827, o deputado
liberal Mouzinho da Silveira, ao chamar a atenção para as consequências
negativas de "chamar nosso ao Brasil e não saímos disto; olha-se para ele
como os filhos que, tendo um espelho na mão, espreitam se ainda têm vivo o pai,
que expirou". Os políticos continuavam a acreditar que "por mais que
se diga, ainda por muito tempo os portugueses cuidarão que têm no Brasil uma
segunda pátria".
Não espanta, por isso, a persistência da
Assembleia Legislativa portuguesa, durante quase toda a primeira metade do
século XIX, na conclusão do tratado, desejo "muito geral, e parece quase
nacional". Essa seria a visão predominante entre os parlamentares, que em
várias ocasiões insistiram na necessidade de retomar a ligação comercial com o
Brasil nos termos de um benefício que consideravam essencial, a que julgavam
ter direito, e que se recusavam a dispensar. Sustentados nos laços familiares e
históricos seculares, os deputados pretenderam desenvolver uma argumentação de
cunho sentimental que não era mais viável no ambiente pós-Independência. Como
os parlamentares Mouzinho da Silveira, Almeida Garrett ou José Estêvão tentaram
realçar sem sucesso. Contra todas as evidências, a maioria optou pela cômoda
visão de um inevitável entendimento com o Brasil, recorrendo às relações paternais:
o Brasil seria o filho pródigo que apenas aguardava o melhor momento para
regressar à casa paterna.
Para
reduzir a carga dramática que a perda da colônia tinha provocado, muitos
deputados insistiam em ver o Brasil ligado a Portugal através de um acordo
comercial baseado em cláusula de favores especiais. Na Câmara dos Deputados,
intervenções frequentes sublinhavam a urgência de um tratado com o Brasil como
uma das poucas saídas para a persistente crise econômica. Daí a forma cautelosa
com que as questões comerciais foram debatidas pela Assembleia, preocupada em
não suscitar quaisquer dúvidas que pudessem entravar o entendimento futuro
entre os dois países. Por isso, a rejeição do parlamento brasileiro ao Tratado
de Comércio de 1836 representou um verdadeiro golpe para Portugal, o que ajuda
a entender o pesado e significativo silêncio que sobre ele desceu. Bem
revelador, aliás, do atordoamento geral de uma Assembleia em estado de choque.
O elevado número de emigrantes
portugueses com destino ao Brasil também atraiu a atenção dos parlamentares,
obrigados então a discutir a migração (ver box)
a partir de um enquadramento diferente: o Brasil não mais como uma colônia
portuguesa, mas um território estrangeiro. Testemunhas de um fenômeno novo, foi
com alguma dificuldade que os deputados perceberam essa forma de mobilidade
geográfica com raízes históricas, sobretudo no norte de Portugal.
Mas o processo de assimilação da
Independência estava em curso e só restava aos deputados desenvolver um
discurso que concedesse uma nova razão de ser a Portugal. É nesse ambiente que
o deputado, liberal e conhecido escritor de Viagens na minha terra, entre
muitas obras, João Batista de Almeida Garrett (1799-1854) se destaca, ajudando
a veicular a imagem segundo a qual "podemos tirar mais vantagens do
comércio com uma nação irmã, mas independente, do que nunca tínhamos tirado de
uma colônia sujeita". Assim se entende a razão por que Garrett, na
memorável sessão de 31 de março de 1837, tenha enfatizado que "Portugal
não existe independente senão pelo mar. (...) Segurem-nos o mar, e basta o
patriotismo, e brio português, para nos conservar independentes em terra."
As novas propostas liberais emprestariam um sentido diferente à separação do
Brasil, retirando toda a dimensão de angústia a que estava associada dentro dos
quadros mercantilistas.
Ao mostrar o mar, Garrett fornecia aos
deputados outros fatores de orgulho: os restantes territórios imperiais
portugueses e o desenvolvimento da marinha mercante como as derradeiras
alternativas à perda do Brasil. Aos poucos, procurava-se restaurar a dignidade
nacional, que o futuro iria se encarregar de colocar, predominantemente, na
dimensão mítica de um passado glorioso que ainda hoje sobrevive.
Fernanda
Paula Sousa Maia é professora de História na Universidade Portucalense, do Porto, em
Portugal, e autora da tese O discurso parlamentar português e as relações
Portugal-Brasil: a Câmara dos Deputados (1826-1852), publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2002.
Fonte
- Revista Nossa História - Ano I nº 7 - Maio 2004
Saiba
Mais – Bibliografia
CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826-1889).
Brasília: Editora UnB, 1981.
KEITH, Henri H. "The symbiosis of love
and hate in luso-brasilian relations, 1822-1922." In: Studia. Lisboa, n. 43-44 (jan.-dez.), 1980.
LOURENÇO, Eduardo. "Crise de identidade
ou ressaca imperial?" In: Prelo.
Lisboa, n. 1 (out.-dez.), 1983.
Saiba
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