Praticado clandestinamente por mais de 1 milhão de mulheres anualmente no Brasil, segundo estimativas, o aborto é combatido há séculos, dividindo a sociedade.
Joana Maria Pedro
Um espanto sem
muita justificativa: o aborto é uma prática muito antiga e era bem frequente na
Europa naquele período. Qualquer mulher que quisesse interromper a gravidez
encontrava na vizinhança a informação desejada. Infusão de arruda, plantas como
sabina e fungos como cravagem de centeio estavam sempre disponíveis. No final
de 1800, por exemplo, cerca de cinquenta abortadeiras profissionais anunciavam
seus serviços nos jornais de Paris. E as mulheres da classe trabalhadora
inglesa usavam pílulas de chumbo ou recorriam a sangrias, banhos quentes e
exercícios violentos para interromper a gravidez.
A reação dos
cronistas em relação ao Brasil talvez se devesse ao fato de, aqui, a prática
ser abertamente divulgada, enquanto na Europa leis punitivas as tornaram
secretas. Aqui, no século XIX, vendedores de arruda - erva abortiva - eram
figuras comuns nas ruas das cidades, chegando a ser retratados por Debret.
Nem é só no
Ocidente que há essa tradição. No subcontinente indiano, o aborto é praticado
com a inserção de um graveto, raiz, ou casca, no colo do útero. E na Tailândia,
Malásia e Filipinas, parteiras especializadas fazem aborto através de
massagens. Mas o que as práticas relatadas pelos cronistas no Brasil e aquelas
da Europa e de outros lugares tinham, e ainda têm, em comum? Tornam a mulher
tão doente que provocam a morte do feto ou de ambos.
Condenado pela
Igreja Católica nos dias de hoje, o aborto já foi permitido ou pelo menos
tolerado pela própria Igreja: até o século XIX, considerava-se que a alma só
passava a existir no feto masculino após quarenta dias da concepção, e no
feminino depois de oitenta dias. Tolerava-se o aborto até a "entrada da
alma".
Os visitadores da
Inquisição no Brasil e os manuais dos confessores desde o século XVI
recomendavam que fossem feitas perguntas sobre os métodos abortivos das
brasileiras: quem as ajudou, o que tomaram etc. Desde a Contrarreforma, a
reação católica ao movimento protestante, a Igreja estava se empenhando em
divulgar o casamento como sacramento. Condenavam, assim, o aborto, dizendo que
era resultado de ligações extraconjugais.
Em relação ao
Estado, a condenação dependia, entre outras coisas, da possibilidade de
identificar o aborto como voluntário ou provocado. Nas leis do reino português,
que começaram a vigorar no Brasil em 1512 e foram mantidas até a Independência,
já havia penalidade para as abortadeiras. O Império criou, em 1830, leis para
sentenciar - com penas de prisão e trabalho forçado, por um a cinco anos - as
pessoas que provocavam o aborto com o consentimento da gestante, mas sem
qualquer punição para a própria mulher que abortasse voluntariamente. Já o
Código Penal da República, de 1890, previa de um a cinco anos de reclusão para
as gestantes, o que poderia ser reduzido a um terço se estivesse ocultando sua
"desonra" - o filho de uma relação extraconjugal. O Código Penal de
1940, ainda vigente [2005], estabelece a detenção de um a três anos para a
gestante, sem qualquer redução da pena.
Em relação aos
casos em que o aborto era permitido, os chamados "permissivos", o
código de 1830 nada informava. Mas o de 1890 considerava aborto legal, ou
necessário, aquele praticado para salvar a vida da gestante. Já o de 1940, em
vigor, define como aborto necessário o que impede a morte da gestante ou a
gravidez resultante de estupro. Este acréscimo nos permissivos foi motivado pelas
preocupações com a degeneração da raça, tão presentes na primeira metade do
século XX, quando acreditava-se que um homem que estuprasse uma mulher estaria
gerando nela um filho que seria, certamente, criminoso.
A maior
dificuldade nos processos judiciais instaurados era comprovar a existência ou
não de aborto voluntário. Era muito mais fácil condenar as abortadeiras. Mas a
crescente participação dos conhecimentos médicos permitiu a punição das
gestantes. Este saber, fornecido ao Judiciário pela Medicina, dependeu do
conhecimento que, por volta do século XVIII, os médicos buscaram obter sobre o
corpo feminino e a reprodução, promovendo a expulsão das parteiras dos espaços
de poder, e transformando-as em auxiliares assalariadas dos médicos nos
hospitais.
Várias inovações
na Medicina Legal foram adotadas no Brasil, a partir de 1894. Novos métodos
foram introduzidos, especialmente os exames químico-toxicológicos de aborto, em
que a urina da acusada era injetada numa coelha - se houvesse alterações nos
ovários do animal, o aborto estaria confirmado. Eles permitiram que a justiça
identificasse a diferença entre aborto e infanticídio (assassinato do próprio
filho) - confusão muito comum até o início do século XX. Além disso, permitiram
saber se o aborto havia sido provocado e qual o tempo de gestação do feto.
Mesmo com todo
este aparato, poucas mulheres foram punidas por aborto voluntário. Quando
acusadas, o escândalo as colocava em situação bastante difícil, com a presença
da polícia na casa e depoimentos de parentes e vizinhos, servindo de exemplo
para as moças da época. Acreditava-se que haviam recorrido ao aborto por
estarem envolvidas em casos extraconjugais. E os homens que as engravidaram
sequer eram citados.
Embora fossem
acusadas de relacionamentos sexuais fora do casamento, não é isso que se
constata nas pesquisas. Mulheres casadas com vários filhos narram que tentavam
e tentam, ainda hoje, apesar do aborto ser crime, impedir o crescimento da família
já numerosa e sem condições de sobrevivência digna. Muitas delas narram suas
experiências e citam "receitas" de como "fazer descer as
regras", e lembram chás de diversas ervas: artemijo, cipó milone,
maçanilha, rainha das ervas com noz-moscada e cachaça, cominho, feijão insosso,
casca de romã. São "beberagens" que, em geral, causavam náuseas e
provocariam, através do vômito e da diarreia, o adoecimento da mulher e,
esperava-se, "a saída das regras". Estes métodos, entretanto, nem
sempre são eficientes. Fazem parte de um conhecimento de longa tradição, que
foi sendo perdido pelo mesmo processo que desqualificou a cura popular que as
mulheres, em especial as parteiras, possuíam. Práticas anteriormente
consideradas "coisas de mulher", transmitidas entre gerações, como
parto, aborto e contracepção, tornaram-se parte do conhecimento médico. Assim,
mesmo que muitas mulheres ainda hoje lembrem "receitas" para
"fazer descer as regras", perdeu-se o conhecimento sobre a
quantidade, a qualidade e a forma de fazer que transformavam o
"veneno" em "remédio".
O aborto, descriminalizado em países como Japão, EUA,
Inglaterra, Alemanha, França e Itália, ainda é crime no Brasil [2005]. Mesmo
assim, tem sido praticado de forma clandestina e insegura. Dados do ano 2000,
pesquisados pela ONG norte-americana Instituto Alan Guttmacher, mostram que o
total de abortos pode variar entre 750 mil e 1,4 milhão por ano, no Brasil. São
realizados por mulheres pobres, sem recursos para ampliar a família, recorrendo
a métodos que colocam a vida delas em risco. Muitas dessas mulheres engrossam
as estatísticas de mortalidade no Brasil: o aborto clandestino e inseguro
figura entre as principais causas de morte materna. Dados de 1998 da Rede
Feminista de Saúde, a partir de números do SUS, informam que, no Brasil, morre,
de complicações do aborto, uma mulher a cada três dias.
JOANA MARIA PEDRO é professora de História na Universidade Federal de Santa Catarina e organizadora do livro Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX, Florianópolis: Cidade Futura, 2003
Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005
Saiba mais - Bibliografia
PRIORE, Mary Del.
Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia.
Rio de Janeiro: José Olympio & Edunb, 1993.
RANKE-HEINEMANN,
Uta. Eunucos pelo Remo de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica.
Trad. Paulo Froes. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.
Aborto: o grande tabu no Brasil