“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

O Legado do Império: governo oligárquico e aspirações democráticas

Entre os aspectos importantes para a compreensão da história do Império o mais significativo e de longa duração, porque ainda persiste em nossos dias, sob várias formas, é o sistema de patronagem e clientela.
Emília Viotti da Costa 
                    O Império tem sido sempre uma referência nos momentos de crise política. Diante de perturbações da ordem pública, golpes militares, fraude eleitoral ou outras formas de corrupção, aparecem sempre saudosistas a louvar o passado e denegrir o presente. A idealização da monarquia não é fato novo. Teve início logo após a Proclamação da República (1889), quando monarquistas e alguns republicanos, desiludidos com o rumo que os acontecimentos tomavam, se associaram na construção de uma imagem idealizada do Império. Argumentavam que o regime monárquico dera ao país setenta anos de paz interna e externa, garantira a unidade nacional, o progresso, a segurança individual, a liberdade e o prestígio internacional, sob a direção sábia de um imperador digno, ilustrado e generoso. Consideravam que, alheia à vontade do povo, a Proclamação da República não passara de um levante de militares indisciplinados, instigados pelos republicanos que contaram com o apoio de fazendeiros descontentes com a Abolição. A República restringira as liberdades individuais, fora incapaz de garantir a segurança e a ordem ou de promover o equilíbrio econômico e financeiro.
                    Com o passar dos anos a versão monarquista se tornou mais complexa, embora continuasse a ignorar os problemas que o Império teve de enfrentar, nem sempre com o sucesso que seus adeptos alardeavam: as constantes insurreições que tumultuaram o Primeiro Reinado e o período regencial, tais como a Confederação do Equador e a Praieira no Nordeste, Farrapos, no Sul, levantes em São Paulo e Minas em 1842, e Cabanos e Balaios no norte do país. Também ficaram esquecidos os protestos populares durante o Segundo Reinado, a revolta dos imigrantes nas fazendas, as agitações do proletariado incipiente, as lutas dos escravos no campo e na cidade. Olvidada também foi a repressão violenta contra escravos e rebeldes, os abusos da Guarda Nacional, o injusto recrutamento militar, a corrupção da justiça, a fraude eleitoral, o nepotismo endémico, o apadrinhamento nas concessões de monopólios, as desastrosas guerras contra a Cisplatina, Rosas, e o Paraguai, o precário estado em que se encontrava o Exército, o analfabetismo beirando os 80% da população, as constantes epidemias de varíola, cólera, malária e febre amarela que assolavam periodicamente as populações, a dependência em relação aos mercados externos e às potências estrangeiras, os onerosos empréstimos realizados no exterior, a permanência da escravidão até praticamente o fim do Império, uma política de terras que permitiu sua concentração nas mãos de uma minoria, o elitismo e a exclusão política da grande maioria do povo brasileiro.
                    A República também teve seus defensores. Estes projetavam uma imagem oposta. A República sempre fora uma aspiração nacional, desde os tempos da colónia. A Monarquia era uma instituição alheia à América, onde só existiam Repúblicas. Baseando-se nas críticas feitas durante o Império, pelos próprios monarquistas ao imperador e ao Poder Moderador, que aquele exercia juntamente com o Poder Executivo, os republicanos afirmavam que as liberdades tinham sido cerceadas com grande prejuízo para a nação. Criticavam as deficiências do imperador como estadista. Condenavam a excessiva centralização do governo monárquico. Repudiavam a vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado que impediam a sua renovação. Denunciavam a fraude eleitoral, que permitia ao governo vencer sempre as eleições.
                    Na avaliação da Monarquia ignoravam suas realizações: o patrocínio das artes e das letras, a multiplicação das escolas primárias, os subsídios concedidos aos interessados em promover uma política imigratória ou a construção de ferrovias e o desenvolvimento de indústrias. A manutenção do território nacional, sem dúvida uma das realizações mais importantes da Monarquia que conseguiu evitar seu esfacelamento, também não foi valorizada. De fato, ao contrário das províncias espanholas envolvidas em lutas fratricidas que romperam a unidade do antigo império espanhol, o Brasil conseguiria não só manter intacto seu território como evitar o caudilhismo que imperava nos países vizinhos.
                    Baseadas nos testemunhos dos contemporâneos, ambas as versões, a do vencedor e a dos vencidos, a republicana e a monarquista, igualmente parciais, superficiais e incompletas, forjadas no calor das lutas políticas do Império, estabeleceram os parâmetros da historiografia que vigoraria por muito tempo depois da implantação da República. Contribuíram para obscurecer aspectos importantes para a compreensão da história do Império que vieram a marcar profundamente a cultura política do brasileiro. São alguns desses aspectos que queremos focalizar. O mais significativo e de longa duração, porque ainda persiste em nossos dias, sob várias formas, é o sistema de patronagem e clientela, cujas raízes remontam ao período colonial, embora se tenham desenvolvido e adquirido real importância durante o Império. Foi este talvez seu mais importante legado.
                    Originando-se no período colonial, nos monopólios e privilégios conferidos pelo poder real a alguns colonos e negados a grande maioria da população; reforçado pela economia de exportação baseada na grande propriedade e no braço escravo, e consagrado pelos preconceitos e pela lei, que criaram uma sociedade de profundos contrastes entre poderosos e os sem poder, entre ricos e pobres, brancos e negros, letrados e analfabetos, o sistema de patronagem e clientela floresceu durante o Império.
                    A persistência das estruturas económicas e sociais e a organização política e institucional do país independente criaram condições ideais para a formação de um regime oligárquico. De fato, qualquer que seja a opinião que se tenha do imperador é preciso reconhecer que quem de fato assumiu o poder foram as oligarquias e seus asseclas. O sistema de patronagem e a "ética do favor" foram ao lado do Exército e da Guarda Nacional, os instrumentos utilizados por elas para se manterem e se reproduzirem no poder. Embora a composição social das oligarquias tenha se alterado ao longo do tempo, especialmente à medida que grupos novos surgiram na sociedade nas últimas décadas do Império, as oligarquias se reconstituíram em bases novas e sobreviveram à Proclamação da República.
                    O sistema político instituído depois da Independência era altamente centralizado, deixando pouca autonomia às províncias. O Ato Adicional (1834) e a reforma do Código de Processo Criminal (1841) foram as únicas medidas que tentaram minimizar um pouco essa situação. No entanto, até mesmo essas concessões, nascidas no período turbulento da Regência, foram reduzidas pela lei de 1840 que interpretou o Ato Adicional. D. Pedro II governou com a assistência da Câmara, do Senado e do Conselho de Estado. Nas duas últimas instituições os cargos eram vitalícios. Os membros do Conselho eram nomeados pelo imperador, os demais eram eleitos. Apenas a Câmara se renovava periodicamente, através de eleições, mas o sistema de eleições indiretas, baseado na renda pessoal, excluindo os assalariados (com algumas exceções), as mulheres e os escravos, reduzia o eleitorado a uma mínima parcela da população. Durante o Império, a despeito das várias reformas eleitorais, o número de eleitores variou entre um e meio e dois por cento da população.
                    Conselheiros, senadores e deputados do Império e das províncias constituíram um grupo poderoso. Alguns chegaram a receber títulos de nobreza. Ocuparam posições de ministros, foram nomeados presidentes de província. Usaram de suas posições para exercer influência na imprensa, junto aos bancos, nas concessões de terras e subsídios a empreendimentos vários, no preenchimento dos cargos públicos, na Justiça, e na legislação. Os políticos intervinham no Exército, na Guarda Nacional, na Igreja. Constituíram uma verdadeira oligarquia que governava em nome do povo e da nação. O político era eleito através de uma rede de clientela e quando no governo esperava-se que servisse aos interesses de seus eleitores. Não é de espantar, portanto, que o político não fosse visto como representante do povo, mas como seu benfeitor. Nessas condições, os direitos constitucionais do cidadão passavam a ser vistos como concessões das elites políticas. A troca de favores governava todas as relações. Sem patrono, político não fazia carreira, magistrado não permanecia no cargo, funcionário público não conseguia emprego, escritor não ficava famoso, empresário não conseguia criar empresa, banco não obtinha permissão para funcionar. Essa situação ficou bem caracterizada no ditado popular: "Quem não tem padrinho morre pagão".
                    Os grupos que assumiram o poder representavam os interesses da grande lavoura e do comércio ao qual estavam ligados por laços de família ou de amizade. Liberais e conservadores embora divergissem quanto a sua plataforma, na realidade se revezaram no poder sem exibir diferenças fundamentais. Abolição da vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado, sufrágio universal, separação da Igreja do Estado, por exemplo, reformas que constavam do programa liberal, não chegaram a ser concretizadas durante o Império. A emancipação gradual dos escravos que já fora proposta por José Bonifácio e outros, na época da Independência, somente começou a ser realizada cinquenta anos mais tarde com a Lei do Ventre Livre. A abolição definitiva somente ocorreu quando a libertação dos escravos já era praticamente fato consumado. A política do Império foi basicamente conservadora. Conciliar a ordem com o progresso, a modernização com a tradição, o liberalismo com a patronagem foram seus objetivos.
                    Entre liberais e conservadores não havia muita diferença. Martinho de Campos, renomado político do Império, num discurso pronunciado em 1882 ao assumir o cargo de primeiro-ministro, caracterizou bem a relação entre os políticos e os partidos: "Hoje é que se pode dizer, como o finado visconde de Albuquerque - são duas coisas muito parecidas um liberal e um conservador - e podia mesmo acrescentar-se um republicano, porque têm todos os mesmos ares de família", dizia ele, e continuava: "Vivemos às mil maravilhas na mesma canoa e não temos dificuldades quanto as opiniões". Na realidade, a filiação partidária era frequentemente mais uma questão de família e parentesco ou amizade do que de ideologia. Isso não diminuía em nada a intensidade da competição política. Na época das eleições os gabinetes no poder demitiam ou removiam funcionários públicos; criavam distritos eleitorais onde tinham amigos e eliminavam outros onde a oposição era majoritária; utilizavam a Guarda Nacional para perseguir eleitores; roubavam urnas eleitorais que apareciam depois recheadas de votos favoráveis ao partido situacionista e recorriam ao recrutamento militar para aterrorizar a oposição. Enquanto os adversários eram combatidos por todos os meios, os amigos e a parentela eram recompensados com favores de toda espécie. O nepotismo imperava sem qualquer constrangimento numa sociedade em que o público e o privado muitas vezes se confundiam.
                    Nessas condições, os princípios liberais traduzidos de um documento produzido durante a Revolução Francesa intitulado Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e reproduzidos na Carta Constitucional de 1824 (incluídos a partir de então em todas as constituições brasileiras) assumiram um caráter utópico. Os viajantes que passaram pelo país desde os primeiros anos do Brasil independente chocaram-se com a falta de correspondência entre a legislação e a realidade. A Carta Constitucional afirmava a igualdade de todos perante a lei, assim como garantia a liberdade individual. Mas durante o Império houve homens e mulheres escravizados que nem sequer eram considerados cidadãos. A Carta Constitucional garantia o direito de propriedade, mas na época da Independência a grande maioria da população livre vivia em terras alheias, na qualidade de "moradores", sem nenhum direito a elas. A Carta Constitucional assegurava a liberdade de pensamento e de expressão, mas não foram poucos os que pagaram com a própria vida o uso desse direito. A Carta garantia a segurança individual, mas por uns poucos mil-réis podia se mandar matar impunemente um desafeto. O lar era considerado inviolável, mas a polícia, em desrespeito à lei, o invadiu muitas vezes sob os mais variados pretextos. A independência da Justiça era teoricamente garantida pela Carta Constitucional, mas, tanto a administração quanto a Justiça transformaram-se em instrumentos dos poderosos. A Carta abolia as torturas, mas por muitos anos nas senzalas continuava a se usar os troncos, os anjinhos, os açoites e as gargalheiras. O direito de todos a serem admitidos aos cargos públicos, sem outra diferença que a de seus talentos e virtudes, foi assegurado pela Carta Constitucional, mas o critério de amizade e compadrio, típico do sistema de patronagem vigente, continuaria a prevalecer na nomeação de cargos públicos. Em suma, os direitos do homem converteram-se em privilégios de uma minoria e a luta pela sua implementação foi deixada a cargo do povo. A este caberia a tarefa de converter a promessa da Constituição em realidade.
                    Se bem que as classes dominantes do Império tenham nos legado um sistema elitista e antidemocrático e tenham conseguido reprimir projetos alternativos que se esboçaram no passado, não conseguiram, no entanto, sufocar a voz daqueles brancos, mulatos e pretos, que já na época da Independência tinham se reunido na Praça do Comércio para forçar d. João VI a jurar a Constituição portuguesa que ainda seria escrita. Suas vozes chegaram até nós. Também não conseguiram reprimir as aspirações dos homens e mulheres que se levantaram, pelo Brasil afora, em inúmeras revoltas visando a construir um país mais democrático, preconizando o parcelamento da grande propriedade, a igualdade entre brancos e pretos, a eliminação do preconceito racial, o sufrágio universal, a eliminação da fraude eleitoral, a emancipação das mulheres, o desenvolvimento de uma economia nacional. A realização dessas aspirações foi delegada às futuras gerações de brasileiros,

EMÍLIA VIOTTI DA COSTA é historiadora, Livre Docente pela USP e professora emérita da mesma universidade. Atualmente leciona na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Entre outros livros, publicou Da monarquia à república - momentos decisivos. São Paulo: Ed. Unesp, 1977.
                   
Fonte: Revista Nossa História. A Construção do Brasil. Brasil: Ed. Vera Cruz, 2006

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