Enfrentando riscos, assumindo responsabilidades próprias dos homens e lutando pelos seus direitos, as mulheres participam da construção do Brasil desde os tempos da Colônia.
Eni Mesquita Samara
Processos datados dos séculos
XVIII e XIX mostram que as mulheres, enfrentando preconceitos e muitas vezes a
truculência dos próprios maridos, sabiam muito bem como lutar para libertar-se
de um casamento infeliz. Curiosamente, as ações de divórcio eram, na maioria,
movidas por mulheres e aceitas pelo tribunal eclesiástico, especialmente nos
casos de adultérios e de maus-tratos. Cabe esclarecer que desde a Colônia até o
final do Império, os pedidos de separação e de anulação de matrimônio eram
julgados pelo tribunal eclesiástico, pois tratava-se de assunto da alçada da
Igreja, que embora aceitasse legalmente os pedidos de divórcio, exigindo a
separação de corpos e bens, não permitia que os cônjuges contraíssem novas
núpcias. O processo podia ser amigável ou litigioso e era concedido sob duas
formas: anulação do casamento (permitida caso este não tivesse sido consumado
por relações sexuais) e separação de corpos. Só era concedido a partir de
alegações consideradas graves na época: adultério, abandono de lar, eventuais
questões religiosas, maus-tratos, doenças infecciosas ou injúrias.
Diferente daquele solicitado sob alegação de sevícias, o divórcio por adultério possuía natureza perpétua, incluindo o "toro" (camas separadas) e a separação dos consortes, que passavam a habitar, por decisão do tribunal, casas diferentes. Já no caso da prática de maus-tratos denunciada pela mulher, a separação era concedida de forma temporária, de modo que o marido pudesse ter tempo de abrandar o gênio e vir a assinar depois um "auto de composição", no qual propunha-se a mudar o comportamento e tratar a mulher de modo moderado. Caso isso não acontecesse, a cônjuge descontente podia retomar o processo.
A mulher, que se diz
"matrona grave, honesta e de reconhecida probidade", justifica o seu
pedido de divórcio alegando viver "o dito marido" concubinado com uma
"Francisca de Tal", desta mesma cidade (São Paulo) e de, além disso,
estar contagiado pela "morféa", nome que se dava à hanseníase. Por
esse motivo, ela "se não tem resolvido a ter ajuntamento carnal com o
sobredito marido". Jesuína informa que, antes de casar-se, não tinha
conhecimento de que o esposo estava infeccionado e que ignorava o fato do mesmo
viver concubinado, pois "que se tal soubesse certamente não se casava com
ele".
Em outro processo, de 1855, este movido por
um homem contra uma mulher, um italiano naturalizado brasileiro, casado com uma
italiana e residente em São Paulo, ausentou-se do Brasil por prescrição médica,
indo à Itália tratar da saúde. Ele deixou aos cuidados da esposa a
administração de todos os bens do casal, incluindo uma casa de pensão e um
hotel. Para sua surpresa, ao retornar, em 1856, a mulher havia vendido o hotel
e passara para o nome do amante a casa de pensão, além de continuar vivendo
como adúltera.
Como se pode perceber, homens e
mulheres viveram situações de conflito no casamento que resultaram em traições
de ambos os lados. No entanto, em função da legislação que vigorava na época,
havia diferenças nos julgamentos dessas ações "pecaminosas". Para os
maridos, era necessário provar-se a existência de uma concubina "teúda e
manteúda". Para as mulheres, um simples desvio bastava para incriminá-las.
Por isso, quando as esposas alegavam adultério, frequentemente os maridos
tentavam acusá-las do mesmo crime. Se conseguissem prová-lo, o processo estaria
encerrado, pois afinal uma fornicação fora paga com outra.
As desigualdades também
persistiam ao longo dos julgamentos, pois, para assegurar que obteria a
separação, a suplicante deveria, no tempo em que estivesse correndo o processo,
manter uma conduta idônea, sem nem mesmo poder sair de casa. Caso fosse vista
perambulando pela cidade, o marido podia requerer, exigindo que ficasse
"depositada" em casa honesta. Uma forma de as esposas garantirem o
ganho da causa era sempre colocar-se diante do júri conforme os padrões aceitos
pela sociedade. Deviam apresentar-se como mulheres honestas, obedientes e
recatadas. O ideal era conseguir provas de que o marido não cumpria seu papel
de provedor e protetor.
Ao alegarem maus-tratos por
parte dos cônjuges, elas conseguiam mais facilmente ganhar a causa, já que as
sevícias constituíam uma ameaça à integridade física e à preservação de suas
vidas. Essa acusação sempre tinha mais peso do que supostas relações
extramatrimoniais do marido. Se este fosse acusado apenas de traição, caberia à
esposa o ônus da prova, e ela podia também ser acusada de adultério, o que
dificultaria o ganho da ação.
A atuação das mulheres não se
resumia, entretanto, a disputas jurídicas com os seus maridos. Desde a Colônia
é possível perceber sua marcante presença nos setores de serviços e de
abastecimento. Eram costureiras, doceiras, tecelãs, lavadeiras e quitandeiras.
No campo, trabalhavam na lavoura e também nos ofícios domésticos. Este era um
nicho do mercado frequentemente descartado pelos homens. Portanto as mulheres,
assim como os trabalhadores livres e pobres, tinham no sistema a alternativa
das atividades mais humildes e menos rentáveis.
O movimento constante da
população dos séculos XVII ao XIX, associado à forte migração masculina,
principalmente para as áreas de fronteira, deixou muitas mulheres sozinhas, sem
perspectiva de casamento. E estas tiveram de buscar por conta própria meios que
garantissem sua sobrevivência, a de seus filhos e agregados. O panorama
certamente explica a alta incidência de mulheres chefes de família,
especialmente nas áreas urbanas. Em São Paulo, no ano de 1836, elas estavam
representadas em 35,8% dos domicílios. Em Fortaleza, em 1887, correspondiam a
30%. Um dos índices mais altos é o de Vila Rica de Ouro Preto, em 1804, onde
45% das famílias eram encabeçadas por mulheres. Seja numa economia em
florescimento, como a São Paulo da segunda metade do século XIX, ou numa
situação econômica desfavorável, como a Fortaleza assolada pela seca, as
mulheres chefes de família constituem destaque na organização social, exercendo
profissões consideradas tradicionais, comandando escravos e agregados ou em
outras ocupações surgidas com a diversificação econômica.
Com isso, uma nova gama de profissões
vai-se consolidando. Em 1940, para a população brasileira, elas aparecem em
atividades domésticas não remuneradas (70,74%), serviços domésticos remunerados
(3,99%), como professoras (7,23%), trabalhadoras industriais (2,17%),
agricultoras em geral (9,69%) e atividades extrativistas (0,27%). Estão ainda
nas profissões liberais, em menores porcentagens, aparecendo como médicas,
veterinárias, dentistas, farmacêuticas e profissionais do ensino.
Se no século XIX o ideal burguês
de valorização da família, da mulher dedicada ao lar, sustentada pelo marido e
preservada dos males da rua, foi desejado pela maioria das mulheres, já ao
longo do século XX o mercado de trabalho atraía cada vez mais mulheres. Com a
recente possibilidade de ascensão e independência financeira, começou a
delinear-se o redimensionamento dos papéis de gênero na sociedade. A cidadania,
por sua vez, é uma conquista através do voto feminino concedido no processo
democrático brasileiro em 1933.
Concluindo todo esse percurso da
história das mulheres no Brasil, podemos dizer que se hoje elas desfrutam da
cidadania, da igualdade de direitos, do acesso à educação e ao mercado de
trabalho, isso foi conquistado com muito esforço. Por outro lado cabe ainda
observar que mesmo no passado as mulheres brasileiras não estiveram apenas
restritas ao âmbito doméstico, como se pensava, mas presentes no processo de
colonização, na formação de vilas, no gerenciamento de negócios e atividades e
nas chefias de domicílio. A sua presença também pode ser constatada na
documentação processual e nas reivindicações pela igualdade, que já aparecem
por volta de 1850, com as primeiras vozes feministas. Ao ser resgatada, a
história da participação das mulheres na sociedade brasileira nos mostra que,
apesar das diferenças de classe e etnias, elas souberam desde cedo
organizar-se, em contextos quase sempre desfavoráveis, para reivindicar
direitos e oportunidades.
Fonte: Revista Nossa História – Ano
2 - nº 17 - março 2005
Saiba mais - Bibliografia
DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1995. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote:
mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PERROT, Michelle.
Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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