Paixão proibida de d. Pedro I pela marquesa de Santos, com quem teve cinco filhos, foi o escândalo do Primeiro Reinado.
Mary Del Priore
Domitila, Dometília - como foi
batizada - ou Titília como era chamada em casa, última filha do coronel
reformado João de Castro do Canto e Melo (1740- 1826), 1º visconde de Castro, e
de Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas (c.1755-?), nasceu a 27 de dezembro de
1797, na pequena São Paulo. Ao contrário de muitas de suas contemporâneas, foi
alfabetizada. Aos 16 anos, idade normal nestes tempos, se casou com um oficial
do II Esquadrão do Corpo de Dragões de Vila Rica, na antiga capitania das Minas
Gerais, o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça (1789-1833).
Amor? Os enlaces, então,
passavam longe das razões do coração. O noivo pertencia à cavalaria paga que
tinha por objetivo a defesa dos governadores, além de contar com um salário
razoável e de ser membro de família conhecida, razões suficientes para se
tornar companheiro de moça bem-nascida. Vêm ao mundo os dois primeiros filhos
do casal, Francisca e Felício e, quando grávida do terceiro, João, alegando
maus-tratos, Domitila troca Vila Rica por São Paulo.
As várias biografias sobre a vítima
não hesitam em repetir que era maltratada e injuriada, isto é, apanhava do
marido. Um exame do processo de divórcio, um dos muitos solicitados por
mulheres à Justiça Eclesiástica ao longo do século XIX, deixa, contudo, o
historiador com a pulga atrás da orelha. Não passa desapercebida a informação
de que o marido teria feito circular papéis sobre "a sua honra" e
que, depois de tê-la esfaqueado "a ponto de ensopar as mãos em seu
sangue", teve a "animosidade de mostrar a faca toda tinta de
sangue" ao tenente Francisco da Silva, dizendo que acabara de matar a
mulher. Reação de marido traído, poderíamos deduzir pela leitura do documento.
A pequena cidade deve ter
fervido em "murmurações", nome que então se dava aos mexericos. Em
agosto de 1822, vivendo separada do marido, Domitila conhecerá d. Pedro
(1798-1834) quando ele vai a São Paulo abafar a Bernarda, movimento que
representou o primeiro golpe na influência dos Andradas na cidade. Tinha d.
Pedro 24 e Domitila 25 anos. Belíssima? Não exatamente. Um certo pendor para a
gordura, três partos, duas cicatrizes por causa das estocadas, um rosto fino e
comprido, aceso pelo olhar moreno.
As condições do encontro, nesta
mesma época, são cercadas por lendas. Apresentada a d. Pedro por Francisco
Gomes da Silva, por apelido o Chalaça, secretário de Sua Majestade? Pelo
próprio irmão João de Castro do Canto e Melo, que viera na comitiva do jovem
monarca? Amor à primeira vista, quando o príncipe a vira cruzar numa
cadeirinha? Pouco importa. Teve aí início um dos poucos romances que se podem
acompanhar por meio da correspondência entre os amantes. Logo após se tornar
imperador, d. Pedro deixa de lado a discrição, transformando Titília numa
"teúda e manteúda" que apresenta à Corte e instala em casa, atual
Museu do Primeiro Reinado, ao lado do Palácio de São Cristóvão.
Em novembro de 1822, d. Pedro
felicita Domitila por "estar pejada" e anuncia-se "disposto a
sacrifícios" para honrar os compromissos de pai. Mas a criança nasce
morta. Em 1824, vem ao mundo Isabel Maria de Alcântara Brasileira (1824-1898),
apelidada "Belinha". Em 12 de outubro de 1825, d. Pedro, já
imperador, contempla a amante inicialmente com o título de viscondessa, no
mesmo ano em que nasce mais um filho do casal, Pedro de Alcântara Brasileiro
(1825-1826). Em 1826, no dia do imperial aniversário, ela se torna a marquesa
de Santos. Não era ele, no dizer da viajante inglesa e amiga de Leopoldina,
Maria Graham (1785- 1842), "dotado de fortes paixões e grandes qualidades"?
Dá-se então um documentado episódio: tendo os diretores do Teatro da
Constituição recusado a entrada da marquesa numa das representações, sob
pretexto de que sua conduta não era digna da boa sociedade, baixou-se ordem
para que fossem fechadas as portas, e presos os mesmos diretores. O imperador
era um amante zeloso!
Cumprindo o ritual dos
enamorados daqueles tempos, enviava-lhe, como qualquer plebeu, muitos agrados:
"quartos de vaca, botões de rosa, cestinhos de morango, peça de fita, ramo
de flores, metade de um peru, queijos, figos, papel, rosas, caça, lírios
brancos". E cavalos. Um "picaço negro marchador" e outro
"lebruno marchador".
O amor adúltero se desenvolvia à
vista de todos, dividindo a Corte. Os irmãos Andrada, e em particular José
Bonifácio, reprovavam a atitude do jovem imperador, que considerava
comprometedora da imagem do novo Império no exterior. Ainda como viscondessa,
Domitila foi elevada a dama camarista de d. Leopoldina e acompanhou o casal
numa viagem de dois meses à Bahia. O secretário da imperatriz escreveu, em
fevereiro de 1826, ao chanceler austríaco Klemens Wenzel von Metternich
(1773-1859) para reprovar a "fatal publicidade da ligação" com a
marquesa de Santos, debitando-a à "resignação e introspecção" da
princesa austríaca.
"A viagem da Corte à Bahia
provocou um grande escândalo, pois o imperador, ao se fazer acompanhar pela
imperatriz, sua filha mais velha e sua amante titular, chocou logicamente todo
mundo", anotou o diplomata a serviço da chancelaria austríaca e confidente
de Leopoldina, barão de Maréchall. Crescem as hostilidades à "Pompadour
tropical", e d. Pedro recebe inúmeras cartas anônimas de protesto. Em
março falece, aos três meses, o pequeno Pedro, outro fruto da união escandalosa.
O fato causou embaraço aos ministros que não sabiam quais formalidades adotar
com o corpo do defuntinho. Ao final, ele recebe exéquias reais. Por outro lado,
Belinha é reconhecida em declaração oficial e elevada ao título de duquesa de
Goiás.
Multiplicavam-se as murmurações
contra a Castro, que reunia em São Cristóvão uma família bastante
característica destes tempos: filhos legítimos e ilegítimos, seus sete irmãos,
sobrinhos e cunhadas, o tio materno Manuel Alves, a tia-avó d. Flávia e as
primas Santana Lopes. O barão de Maréchall anotava em relatório enviado à
Áustria: "A família aflui de todos os cantos; uma avó, uma irmã e uns
primos acabam de chegar".
A morte de d. Leopoldina, no
final de 1826, aos 29 anos, obriga d. Pedro a tomar certos cuidados, pois não
faltaram manifestações acusando Domitila de ter envenenado a imperatriz. A
própria Leopoldina se queixara, em carta ao pai, que o marido a maltratava
"na presença daquela que é causa de todas as minhas desgraças".
Insultos, ameaças, proibições de entrar no palácio e mesmo uma tentativa de
linchamento revelam a reação dos moradores do Rio à presença da concubina.
Assinado, em 1829, o contrato de
casamento com a princesa alemã Amélia de Leutchemberg (1812- 1871), segunda
esposa de d. Pedro, o casal se separaria definitivamente. De volta a São Paulo,
onde nasce a quinta e última filha que teve do imperador, Maria Isabel de
Alcântara Brasileira II (1830-1896), Domitila se instala na casa de seu
concunhado, o conde de Valença. Seus bens passam a ser administrados pelo
coronel Rafael Tobias de Aguiar (1795-1857), com quem se casa em 1842, mesmo
ano da Revolução Liberal, movimento em protesto contra o presidente da
província, barão de Monte Alegre. Ela tem de Aguiar mais quatro filhos. Ao
falecer como brigadeiro, em 1857, ele a deixa com muitas propriedades e
escravos.
Alçada à condição de "dama
de maior prestígio e atividade social de São Paulo", a marquesa mantinha
abertas as portas de seus palacetes do Açu e do Carmo, onde se realizavam
saraus, bailes de máscaras, reuniões dançantes, provavelmente inspirados na
vida que tivera na Corte. Cruzando a cidade numa carruagem fechada com brasão,
leva socorro aos pobres e desvalidos, sendo, também, conhecida por suas
atividades filantrópicas. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), Domitila se
destaca por fazer doações e colocar à disposição das tropas que passavam por
São Paulo suas terras e fazendas. Falece aos setenta anos, em 3 de novembro de
1867, de enterocolite, tendo precisado aos testadores que desejava um funeral
sem ostentação. Seus restos mortais repousam no Cemitério da Consolação, terras
de sua propriedade que, consoante a condição de viúva magnânima a que se
elevara, doou à cidade de São Paulo.
Fonte: Revista Nossa História – Ano 3 - nº 31 - maio 2006
Saiba mais - Bibliografia
Cartas de
d. Pedro I à marquesa de Santos. Notas de
Alberto Rangel. Rio de Janeira: Nova Fronteira, 1984. NEVES, Lúcia Maria Bastos
Pereira das e MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
PINHO, Wanderley.
Salões e damas do II Reinado. São Paulo: Martins Editora, 1942.
RANGEL, Alberto. D.
Pedro I e a marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916.
Nenhum comentário:
Postar um comentário