Mães devoravam filhos mortos, viúvas comiam os maridos, filhos banqueteavam-se com os pais. Nem sempre a antropofagia originava-se da luta entre rivais, poderia ser cerimônia fúnebre.
Ronald Raminelli
Com frequência, os relatos de
canibalismo vinculam a ingestão de carne humana à violência. Essa regra, porém,
nem sempre é válida para todas as etnias americanas. Radicados entre o litoral
dos atuais estados do Maranhão e São Paulo, os índios tupis do século XVI
devoravam os inimigos depois de capturados em combates. Seus guerreiros
travavam infindáveis batalhas para vingar antepassados mortos em guerras ou em
rituais antropofágicos. Os homens enfeitavam suas cabeças e armas com penas de
aves tropicais e muniam-se de tacapes, arcos e flechas, partindo em busca da
desforra. A captura do oponente era, portanto, a conciliação com o passado, com
os entes mortos nos campos de batalha. Depois do confronto, os vencedores
retornavam à aldeia, trazendo os corpos, vivos ou mortos, de seus inimigos. Os
nativos, assim, iniciavam um rito destinado a consumir a carne do oponente e
renovar o ciclo da vida para essas comunidades. Na cerimônia, a memória da
vingança perpetuava-se criando elos entre passado e futuro, sendo a única
tradição transmitida para a posteridade. A obsessão da desforra permanecia como
vínculo entre as gerações.
Mas esse não era o único motivo
da antropofagia. Entre os tapuias era o amor o responsável pela ingestão de
carne humana. Tapuia era a denominação tupi para as demais etnias, que não se
restringiam ao litoral como os tupis. Estavam em grande parte no interior, com
ampla dispersão geográfica. Entre os séculos XVI e XVII, vagavam nos sertões do
Nordeste ou, como os goitacás, botocudos e aimorés, na atual área entre o norte
fluminense e o estado do Espírito Santo. Ao comparar registros escritos e
visuais das práticas canibalescas tapuias e tupis, percebe-se que as últimas
são mais conhecidas, fartamente difundidas e imortalizadas nas gravuras do
holandês Theodore de Bry (1528- 1598) e no filme Como era gostoso o meu
francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de pouco explorado, o
canibalismo dos tarairius (tapuias do sertão nordestino) presta-se a muitas
controvérsias e à admiração por não ser o ódio o responsável pela morte e
ingestão de carne humana. Entre esses tapuias, antropofagia era um ato de amor.
Para nós seria impossível pensar que o sentimento maternal levaria uma mãe a
consumir um filho morto. A relação entre amor e canibalismo também intrigou os
colonos holandeses e luso-brasileiros, que ouviram e registraram histórias e
imagens sobre os tarairius.
Integrante da missão artística
do príncipe João Maurício de Nassau, o pintor Albert Eckhout (1612- 1665)
representou os índios tarairius em várias obras: Dança dos tarairius, índio
tarairiu e índia tarairiu (c.1641 e 1643). Nesses quadros, o artista pintou
o grupo sem os vestígios da colonização, sem roupas e instrumentos de trabalho.
Seus corpos nus simbolizam a condição de bárbaros, de seres desprovidos de
regras e vergonha. A nudez e a fidelidade da expressão facial marcavam a
fronteira entre o selvagem e o cristão, ou entre o selvagem e o índio submetido
à colonização. Para além da nudez, o índio tarairiu apresenta-se com as marcas
de sua cultura, enfeitando-se de penas coloridas sobre a cabeça, de corda presa
à cintura e de frágeis sandálias. No rosto estão duas hastes perfurando a pele
nas extremidades da boca e, talvez, uma pedra verde incrustada no lábio
inferior. Nas mãos segura um tacape, flechas e uma lançadeira, demonstrando as
suas potencialidades de guerreiro. Sem dúvida, as feições do ameríndio são o
detalhe mais original do mestre. No entanto, a fidelidade da representação
afasta-o dos padrões de humanidade aceitos pelos europeus do tempo de Eckhout.
Um índio que apresentasse os traços da beleza clássica pareceria menos estranho
aos olhos da Europa.
Esse afastamento dos padrões
europeus torna-se ainda evidente nas paisagens que servem de fundo dos quadros.
Enquanto os tupis de Eckhout foram pintados próximo à casa-grande ou às
plantações, os tarairius encontram-se junto à natureza selvagem. A vegetação em
torno do índio reforça, mais uma vez, o distanciamento, pois a representação
não enfatiza os vínculos de subserviência aos europeus. Os arbustos, as folhas
e as pequenas frutas constituem uma natureza selvagem, sem interesse comercial.
E assim estavam livres do comércio colonial e dos colonizadores. O espaço dos
tapuias localizava-se além das fronteiras da expansão econômica. Em
compensação, eles lutaram junto aos holandeses nos combates aos
luso-brasileiros, contra os quais adotavam práticas animalescas, pois corriam
como as feras, capturavam-nos e, em seguida, devoravam os seus corpos.
Também representada pelo pintor
Albert Eckhout, a mulher tapuia estaria inteiramente nua, caso não houvesse um
tufo de folhas preso à cintura para lhe cobrir a genitália. A mão direita
segura a mão decepada do inimigo vitimado talvez em combate. Nas costas há um
cesto de palha contendo um pé, que certamente tem a mesma origem da mão. O
rosto é europeu, com um nariz fino e muito diferente das narinas dos
ameríndios. No plano posterior da tela, há índios munidos de lanças e preparados
para uma guerra. Os nativos movimentam os braços para frente, dando dinamismo à
cena. A tela, por conseguinte, seria dividida em duas partes: a primeira seria
uma alegoria da guerra; a segunda, uma representação do canibalismo.
A célebre tapuia pintada por
Eckhout possui traços comuns ao grupo linguístico Jê, como o apego aos cães, as
sandálias confeccionadas com cordas e o corte do cabelo em forma de prato,
comuns aos timbiras atuais. O retrato seria de uma mulher da etnia tarairiu.
Entre esse grupo, segundo os cronistas do século
XVII, ao nascer uma criança, cortava-se o cordão umbilical com um caco afiado e
depois cozinhava-o para que a mãe o comesse juntamente com o pelico (placenta).
Caso uma mulher abortasse, imediatamente o feto era devorado, pois alegavam que
não poderiam dar-lhe melhor túmulo. Por certo, as entranhas de onde veio - o
corpo da mãe - eram preferíveis à cova na terra. Depois da morte de uma
criança, os índios choravam a perda, em seguida, cortavam a cabeça e retalhavam
o corpo, inserindo tudo em uma panela. Muitos parentes eram convidados para o
evento e juntos comiam a falecida. Ao término da refeição, punham-se a gritar e
a chorar.
Os cronistas procuram enfatizar
as fronteiras entre a antropofagia amorosa tapuia e a vingativa tupi. O dado
permite entender a tela de Albert Eckhout de modo diverso. A índia tarairiu
carrega consigo partes do corpo humano e próxima à nativa encontra-se uma cena
de guerra. Em princípio, a mão e o pé decepados, em poder da mulher,
pertenceriam ao inimigo morto no combate. Os relatos sobre a antropofagia
tapuia permitem, porém, traçar outras relações. Assim, as partes do corpo
pertenciam a um parente: irmão, marido ou filho da índia. O campo de guerra é o
local de morte de um guerreiro da tribo e a índia carrega seus restos mortais
para serem consumidos na aldeia em sinal de afeto e fidelidade.
Deste modo, a tela de Albert Eckhout possui duas interpretações possíveis. Em princípio, a índia tarairiu poderia carregar tanto o corpo de um parente morto quanto os restos do inimigo para serem devorados em cerimônia grupal. Mas uma terceira leitura é também plausível. Os registros escritos e visuais europeus, e o pintor em particular, pareciam mais preocupados em constatar a existência da antropofagia do que compreender a sua modalidade ou os motivos capazes de levar nativos a praticá-la. Talvez o artista estivesse mais interessado em compor uma bela imagem, contendo elementos variados da realidade americana, sem se ater à coerência dos estudos étnicos. Devemos admitir que o rigor científico da imagem não era o maior atributo dos artistas seiscentistas, nem mesmo dos holandeses. O historiador Peter Mason comentou que a preocupação com a descrição da realidade, comum entre os holandeses, não pode ser confundida com realismo ou rigor científico. Mesmo sem se ater ao rigor étnico, Albert Eckhout pintou a mulher tarairiu, composição rica em informações que, ao ser comparada às descrições contemporâneas sobre os costumes tapuias, alimentam ainda hoje essa interessante controvérsia.
RONALD RAMINELLI é professor de História Moderna, História da América e do Brasil Colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Imagens da colonização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996
Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005
Saiba mais - Bibliografia
VALLADARES, Clarival
do Prado e MELLO FILHO, Luiz Emygdio de. Albert Eckhout; presença da Holanda
no Brasil. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1998.
Saiba Mais: Link
Saiba mais – Documentário
Histórias
do Brasil a Série
Nenhum comentário:
Postar um comentário