Tradicionais entre os índios da América portuguesa, especialmente os tupinambás, os rituais regados a cauim chocavam e preocupavam o colonizador europeu.
João Azevedo Fernandes
De repente, um velho que estava
afastado se aproxima, um tanto trôpego, e começa a discursar. Fala de seu
parentesco e afinidade com o morto, de quem era tio e cunhado. Conta que já
havia matado, e comido, muitos daqueles inimigos, e que eles não eram grandes
guerreiros, sendo mais afeitos às emboscadas do que ao combate direto. Os
homens, e muitas mulheres, respondem ao discurso com risos e gritos altos. As
cuias esvaziam-se em um ritmo cada vez mais rápido, e agora muitos estão
dançando e discursando sobre lutas e sonhos. Alguns gritam e pedem mais cauim
às mulheres, mas a bebida daquela maloca já está esgotada. Cambaleantes, mas ainda
bastante dispostos a continuar a bebedeira, os homens levantam-se e vão para a
maloca seguinte, onde os esperam vários potes cheios, e a promessa de uma
grande noite de cantos e danças e de um dia de vitória e cabeças inimigas
esmagadas.
A
colonização europeia do Brasil foi marcada pelo choque entre culturas e pela
luta dos recém chegados contra vários costumes dos povos nativos. Entre esses
costumes estavam as cauinagens, festas em que se consumiam bebidas feitas de
mandioca, milho e frutas. Os índios, especialmente os tupinambás, se
relacionavam com as bebidas alcoólicas de uma forma bastante diferente da que
os europeus estavam acostumados no Velho Mundo. Aos olhos dos recém-chegados,
os tupinambás produziam e consumiam suas bebidas fermentadas de uma maneira
nauseante, pecaminosa e profundamente perigosa.
Durante e após essas cerimônias,
os europeus viam suas nascentes estruturas de poder, e seus instáveis
mecanismos de controle, serem desafiados por nativos que pareciam "possuídos"
por uma força demoníaca, que aparentemente fruía das jarras nas quais suas
estranhas bebidas espumavam. Grande parte dos esforços dos colonizadores,
especialmente dos missionários, foi dirigida à extinção das práticas etílicas
dos índios, vistas como uma ameaça à colonização de seus corpos e mentes.
Durante essa luta contra o beber
indígena, defrontaram-se lógicas mentais e práticas sociais bastante distintas,
construindo-se identidades étnicas e estereótipos que permitiram a elaboração
de discursos que legitimavam o domínio dos "civilizados". A visão do
"índio bêbado", ainda bem presente nos dias de hoje, foi construída
com base nas primeiras experiências dos europeus com as festas dos tupinambás.
Contudo, para compreendermos o
significado cultural das cauinagens, é necessário abandonar um olhar sobre os
prazeres etílicos que vê as bebidas unicamente a partir de um ponto de vista
"patológico", como uma fonte de problemas sociais, ou mesmo como algo
apenas recreativo. No mundo pré-industrial, e mais ainda naquelas sociedades
chamadas de "primitivas", as bebidas fermentadas eram parte
integrante da dieta e uma importante fonte de nutrientes essenciais. Além
disso, até o advento da era moderna, não se conheciam as bebidas destiladas,
que são a principal fonte dos problemas relacionados ao abuso do álcool.
Desconhecer esses fatos, e
lançar para o passado as nossas preocupações contemporâneas, pode levar-nos a
equívocos, como o de considerar que o álcool representou um simples instrumento
do domínio europeu sobre os povos indígenas, como se estes fossem vítimas
passivas de um processo que estava além de seu controle.
Na verdade, os índios tinham
ideais bastante firmes a respeito do que seria uma boa bebida, e deixaram esse
ponto bem claro ao recusar o vinho que lhes foi oferecido pelos portugueses da
armada de Pedro Álvares Cabral. Nas palavras do escrivão da frota, Pero Vaz de
Caminha, “trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca, não gostaram
nada, nem quiseram mais”. Alguns dias depois, mesmo que os nativos estivessem
mais à vontade entre os portugueses, continuavam resistindo ao vinho: o capitão
Sancho de Tovar levou, ao seu navio, “dous mancebos, despostos”, que comeram tudo
que lhes foi oferecido (inclusive presunto), mas não receberam vinho “por
Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem”.
Muitos homens da Europa, e seus
descendentes nascidos no Brasil, adoravam as bebidas indígenas: no Tratado
descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa
chamava a atenção para os portugueses e “mestiços” que bebiam os cauins “muito
valentemente”. O missionário francês Claude d’Abbeville, que esteve no Maranhão
em 1612, provou a bebida feita de milho e achou-a “ótima, saborosa, com um
gosto picante nada desagradável”. Outro francês, o padre Yves d’Evreux, que
também esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou que a cerveja de milho era
“muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo calor, do que o vinho e
a aguardente”.
Não nos enganemos, contudo, com
essas opiniões favoráveis. O processo de elaboração do cauim causava asco aos
europeus, e isso por uma razão bem simples: a massa, de mandioca ou milho, era
mastigada pelas mulheres e cuspida nos vasos, onde era deixada a fermentar. O
jesuíta José de Anchieta, grande inimigo das cauinagens, descreveu desta forma,
em 1584, a fabricação do cauim: “este vinho fazem as mulheres, e depois de
cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais
gosto e o fazem ferver mais”.
Claude d’Abbeville chegou a
afirmar que muitos dos seus compatriotas, se vissem a fabricação do cauim,
diriam “que os índios são pouco asseados” e que “prefeririam morrer de sede a
experimentar essa bebida mastigada pelas mulheres indígenas”. Mas Jean de Léry
(missionário protestante que participou da fracassada experiência colonial
francesa na baía de Guanabara, entre 1555 e 1560) mostrou que o nojo dos
europeus era bem infundado, ao comparar, de forma irônica, as práticas nativas
com a técnica do Velho Mundo, na qual os vinhateiros, com seus “lindos pés, às
vezes calçados de sapatões”, pisavam as uvas, processo no qual se passavam
“muitas coisas talvez menos aprazíveis do que a mastigação das mulheres
americanas”.
Mais assustadora que a saliva
das índias, porém, era a embriaguez provocada pelo cauim. No mundo católico
europeu, de onde vinha a maior parte dos colonizadores do Brasil, a embriaguez
era vista como um pecado, e grave, na medida em que demonstrava uma falta de
controle sobre os impulsos e desejos que permitia, e incentivava, pecados
piores, como a luxúria e a antropofagia. A temperança, por outro lado, era
encarada como uma grande virtude, que sinalizava o domínio sobre atos e emoções
que formava a base do comportamento de um verdadeiro cristão.
Além disso, os povos
mediterrâneos, como portugueses e franceses, tendiam a usar as bebidas como
parte das refeições: vinho, azeite e trigo formavam a base da alimentação
mediterrânea desde a antiguidade greco-romana. Beber fora das refeições e beber
com o objetivo de se embriagar eram atos vistos como sinônimos de barbárie e
selvageria.
Nada mais diferente desse padrão do
que o modo de beber dos índios. Para começar, os tupinambás (assim como muitos
povos indígenas atuais) separavam radicalmente o comer do beber: quando se
comia não se bebia, e vice-versa. Não é à toa que uma das afirmações mais
comuns da documentação colonial, a respeito dos índios, é a de que “eles não
bebem quando comem”, o que marca nitidamente o espanto dos colonizadores com
uma atitude tão contrária aos seus pontos de vista.
Os nativos bebiam,
cotidianamente, suas tiquaras (água com um pouco de farinha) e mingaus, mas
reservavam suas cervejas e vinhos para as ocasiões especiais, como nos
casamentos e funerais, na recepção a convidados e visitantes, nas deliberações
sobre guerras e alianças e, sobretudo, naquela que era a principal festividade
dos tupinambás: a morte e devoração dos inimigos em seus rituais
antropofágicos.
Nas cauinagens, homens e
mulheres se misturavam e se revezavam nas quedas e vômitos, mas também nos
discursos, feitos em altos brados, relembrando os grandes feitos guerreiros de
cada grupo em particular (“os vinhos são os memoriais e crônicas de suas
façanhas”, disse um jesuíta em 1610). Tais festas representavam uma visão
estarrecedora para muitos dos europeus, especialmente os missionários. O padre
jesuíta Fernão Cardim, que viveu no Brasil entre 1583 até sua morte, em 1625, pareceu
ficar mais horrorizado com a embriaguez do que com o canibalismo dos índios, ao
descrever as festas que cercavam o sacrifício ritual do inimigo preso.
Cardim observou os muitos “potes
de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa grande” e a barafunda de
pessoas que se aglomeravam em torno deles. Quando começavam a beber, era “um
labirinto ou inferno vê-los e ouvi-los”, pois seus gritos e bailes duravam
vários dias, enquanto restasse bebida nos potes. Lançando um olhar profundamente
crítico aos modos dos nativos (“a cada passo urinam [...] todos fallão a quem
mais alto, afora outros estrondos...”), o padre apontou a íntima ligação entre
a festa do cauim e o canibalismo: as bebedeiras eram “a própria festa das
matanças”.
Os jesuítas foram rápidos em perceber que as
cauinagens representavam o pontapé inicial para as guerras e para os ritos
canibais. Perceberam, também, que as festas formavam o arcabouço sobre o qual
se construíam as relações políticas baseadas na hospitalidade entre os grandes
chefes, chamados pelos cronistas de principais. Mais do que lutar contra “maus
hábitos”, interessava aos jesuítas, e a outros colonizadores, romper as bases
do sistema cultural dos índios, atacando ritos como a antropofagia, proibindo
instituições como o casamento poligâmico e combatendo as cauinagens, por serem
ocasiões em que toda a cultura indígena se expressava de forma entusiástica e,
aos olhos dos colonizadores, incontrolável.
Não é de espantar, portanto, que
o abandono do “beber supérfluo” (isto é, beber para se embriagar) representasse
uma condição sine qua non para a aceitação de determinado grupo no
grêmio da Igreja. Em 1560, o padre Luis da Grã, delegado da Companhia de Jesus
no Brasil, informou a alguns principais que queriam estabelecer boas relações
com os padres que, entre “os pontos mais essentiais que avião de goardar”,
estavam: “[...] que ninguem avya de ter mais [de huma molher], e outro que não
avião de beber até se embebedar como custumavão, [...] e que não avião de matar
nem comer carne humana”.
Nessa difícil luta contra as
bebidas, os padres tiveram a ajuda inestimável das mulheres nativas. Essa era
uma estratégia importante, já que todo o processo de realização de uma
cauinagem estava relacionado às mulheres. Além de produzir a saliva que
fermentava as bebidas, eram elas que plantavam a mandioca e o milho, e que
colhiam as frutas que seriam transformadas nos cauins.
Às mulheres estava reservada a
importante tarefa de fazer as igaçabas, grandes recipientes de cerâmica em que
as bebidas eram fermentadas, e as cuias onde eram consumidas. No momento das
festas, eram as mulheres que serviam os bebedores, e eram também as mulheres
que procuravam impedir (nem sempre com sucesso) que as bebedeiras descambassem
para a violência, escondendo armas e retirando maridos e filhos de situações de
conflito. As índias cristianizadas ajudavam os padres, quebrando as talhas onde
as bebidas espumavam e discursando sem trégua contra as bebedeiras.
Outra estratégia era a de
“cortar o mal pela raiz”. Desde cedo, os meninos nativos eram ensinados a
evitar as cauinagens, ajudando as mulheres cristãs a quebrar potes e
ridicularizar os bebedores. Contudo, o lugar cultural central das festas do
cauim fica claro quando sabemos que os mesmos meninos, que destruíam as bebidas
quando crianças, bebiam a mais não poder quando chegavam à idade adulta,
“fazendo-se tão rudes e ruins” como seus congêneres pagãos, e fazendo das
bebidas “o pecado mais difícil de ser extirpado”, como disseram vários
jesuítas.
Com todas essas dificuldades, os colonizadores acabaram por vencer as cauinagens. Espoliados de suas terras, impedidos de fazer suas guerras, e de comer seus inimigos, os tupinambás abandonaram suas antigas festas. As bebidas tradicionais perderam seu lugar central como espaço de congraçamento e hospitalidade, sendo substituídas por uma legítima invenção do Brasil colonial: a cachaça. Mas esta é uma outra história.
João Azevedo Fernandes é autor de “De cunhã a mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil”. João Pessoa: Ed. UFPB, 2003.Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005
Saiba mais - Bibliografia
CAMARA
CASCUDO. Luís da. História da alimentação no brasil. São Paulo: Global,
2004.
EVREUX.
Yves d'. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614. São
Paulo: Siciliano, 2002. FERNANDES, Florestan. A organização social dos
Tupinambá. São Paulo: Hucitec/Brasília: Edunb, 1989 (1948).
Saiba Mais: Filmes
Como era gostoso o meu francês. Direção Nelson
Pereira dos Santos. Brasil/1970.
Hans Staden. Direção Luís Alberto Pereira.
Brasil/1999.
Saiba Mais: Link
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