Arrancados de suas famílias e levados para outras
regiões do Brasil, os escravos resistiram e, por meio de fugas maciças e
insubordinação, criaram um ambiente favorável à Abolição.
Richard Graham
Quem aboliu a escravidão? Não
foi a princesa Isabel, que apenas sancionou a lei aprovada pelo Congresso. Mas
por que o Congresso aprovou tal lei? Porque, por mais estranho que possa
parecer, os próprios donos de escravos assim o reivindicaram quando se sentiram
esmagados pela resistência dos cativos nas províncias de São Paulo e do Rio de
Janeiro. Em 1887 e primórdios de 1888, uma fuga maciça de escravos tomou as
autoridades de surpresa, pois foram incapazes de conter o grande fluxo de fugitivos.
Inicialmente, os escravos fugiam às escondidas, mas logo começaram a fazê-lo às
claras e chegaram algumas vezes a enfrentar as autoridades com armas de fogo. E
até a incendiar canaviais nas redondezas de Campos dos Goytacazes (RJ). Quando
o exército foi chamado para ajudar a manter a ordem, seus líderes com desprezo
declararam que não desejavam se encarregar "da captura de pobres negros
que fogem da escravidão".
Diante de um fato consumado, o
Congresso, precipitado, votou a lei que aboliu a escravidão em maio de 1888.
Como explicou um deputado, esta lei "era ato que as circunstâncias
impunham, ditado ao governo pelos... próprios lavradores, que não podendo
conter a indisciplina nas fazendas nem os escravos que se insubordinavam, iam
adiante da propaganda [abolicionista], concedendo ampla e plena liberdade aos
seus escravos". O barão de Cotegipe, a favor da escravidão, exclamou
indignado: "Para que uma Lei da Abolição? De fato está feita - e
revolucionariamente".
Apesar do enorme número de
escravos que viviam na Bahia e em Pernambuco, lá não ocorreu uma fuga em massa.
Este contraste indica uma importante diferença na natureza da população
escrava: boa parte dos cativos que vivia no Sul tinha sido trazida do Nordeste
após 1850 e especialmente na década de 1870. O alto nível de resistência desses
cativos arrancados de suas famílias enfraqueceu a autoridade dos proprietários
e encorajou os escravos a procurar sua própria liberdade através de uma ação
direta.
O tráfico de escravos entre as
províncias é um tema crucial se quisermos entender o processo que levou à
Abolição. Nas décadas de 1850 e 1860, depois do término do tráfico com a
África, o número de cativos que vieram do Nordeste para as plantações do Sul
atingiu 5 a 6 mil por ano. Este número dobrou na década seguinte, quando os
preços do algodão e do açúcar caíram precipitadamente e o do café disparou. O
historiador Robert Slenes (em Brasil: história econômica e demográfica,
organizado por Iraci del Nero da Costa, 1986) concluiu que quase 200 mil
cativos foram transferidos de uma província para outra de 1850 em diante.
Sabemos que na Bahia a maior
parte dos escravos assim exportados não pertencia a senhores de engenho mas a
pequenos lavradores de cana, plantadores de mandioca e habitantes da cidade de
Salvador. Ao final da década de 1870, uma terrível seca assolou o interior de
algumas províncias do Nordeste. O resultado foi tanto uma invasão de migrantes
livres na zona costeira, onde poderiam ser empregados pelos produtores de
açúcar a baixo custo, quanto uma venda generalizada de escravos oriundos das
regiões da seca. A província do Ceará, devastada pela estiagem, enviou milhares
em direção ao Sul.
No final, até mesmo os
agricultores do Sudeste ficaram preocupados com o fluxo de escravos para suas
províncias. Em 1880, São Paulo aprovou uma lei impondo uma pesada taxa em sua
importação, mais do que dobrando o preço de um escravo. Embora necessitassem de
trabalhadores numa economia em expansão, o medo de uma rebelião levou-os, em
efeito, a suspender a importação de mais cativos. Influentes fazendeiros de
Campinas diretamente pressionaram a favor desta medida. As províncias de Minas
Gerais e do Rio de Janeiro logo fizeram o mesmo. Mas já era tarde, como os
proprietários de escravos logo iriam descobrir.
As experiências dos cativos
envolvidos no tráfico interno nunca foram boas. Muitos caminharam longas
distâncias até os portos do Nordeste para serem embarcados para o Sul. Depois,
marchavam do Rio de Janeiro ou de Santos para as fazendas de café. Eles eram
muito maltratados pelos negociantes que os recebiam. A historiadora Sandra
Lauderdale Graham (em Proteção e obediência, 1992) relata que um oficial do
governo criticou o maior traficante do Rio por amontoá-los num espaço pequeno,
de tal forma que muitos acabavam doentes. E comentou que, embora esta empresa
não fosse tão dura como outras, ainda "deixava muito a desejar".
Outro traficante afirmou que os escravos que importara do Nordeste "eram
vestidos, alimentados, alojados e tratados do melhor modo possível" -
ainda que dos 38 que recebera de uma remessa da província do Ceará, em 1879, 22
morressem enquanto estavam sob seus cuidados. A venda quase sempre caracterizava
um momento de separação violenta e grande dor. Como um progressista colocou, em
1877: "o que se fazia com os índios, faz-se hoje com os escravos, assim
desumana e barbaramente arrancados ao lugar do seu nascimento, de suas
afeições, e às famílias". Um caso extremo é relatado pela historiadora
Hebe Mattos: A escrava Justina, além de cuidar de seus três filhos, também
cuidava dos filhos de uma outra mulher que tinha sido vendida. Quando percebeu
que poderia ter o mesmo destino, afogou seus filhos e tentou o suicídio (em Das
cores do silêncio, 1995). O significado do tráfico interno para os 200 mil ou
mais escravos que foram arrancados do ambiente familiar, transportados para
longe e coagidos por senhores ou capatazes estranhos a realizar novas tarefas
não pode ser totalmente conhecido através das fontes disponíveis; mas devemos
tentar.
Considere esses dois casos
narrados pelo historiador Sidney Chalhoub. Um escravo, o jovem "pardo
escuro" Bráulio, deixou Salvador no começo da década de 1870. Sua mãe e
irmão foram mandados para o Rio Grande do Sul, mas Bráulio acabou numa fazenda
de café em Valença (RJ). Sua teimosia levou seu senhor a colocá-lo à venda uma
vez mais. Finalmente ele fugiu para o Rio, onde se passou por homem livre até
ser preso pela polícia. Depois de retornar a seu proprietário, Bráulio enterrou
uma ferramenta no peito do homem, admitindo que pretendia matá-lo porque ele
era extremamente violento e já tinha assassinado dois escravos desobedientes.
Bráulio disse que preferia a pena de morte a continuar sujeito a esse homem.
Com isso, desafiou não só seu senhor como a própria escravidão.
Emergia como um tema comum o
desejo de voltar para o Norte. Aos 27 anos, Serafim, nascido de um casal
africano em Alagoas, partiu para o Sul em 1878. No Rio, se mostrou desordeiro e
insistia em ser mandado de volta. Em vez disso, foi comprado por Domingos Pedro
Robert para trabalhar nos cafezais de Minas. Logo Serafim fugiu de volta para o
Rio de Janeiro, caminhando à noite, sendo alimentado pelos escravos de outras
fazendas. Quando capturado, declarou prontamente que era escravo de Robert. Mas
o fazendeiro preferiu abandoná-lo tornando-o livre - do que gastar dinheiro
para leva-lo de volta, o que julgou exceder o valor do escravo. Quantos outros
senhores perceberam a futilidade de seus esforços para manter a autoridade?
O controle de escravos foi
sempre consequência de uma complexa negociação, embora tácita e continuamente
em jogo. Mas aqueles que foram vendidos para o Sul sabiam que quaisquer
promessas implícitas feitas por seus antigos donos eram uma mera cesta de
mentiras. Os proprietários, feitores e capatazes precisavam conhecer seus
escravos, e estes necessitavam conhecer e até confiar naqueles que lhes davam
ordens. Com o tráfico interno, isto não correspondia mais à verdade.
Jovens, na sua maioria homens,
arrancados de seu lugar de origem, privados das influências moderadoras
exercidas por parentes, os transportados provavelmente estavam cheios de raiva,
prontos a explodir. Homens sozinhos sempre têm menos a perder do que os que têm
esposas e filhos. Os escravos recém-chegados eram mais rebeldes do que os
outros, sendo uma fonte de "desordem e perturbação", como bem colocou
o abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910). Os senhores que compraram tais
escravos sentiam a intranquilidade entre eles. Historiadores como Warren Dean,
Célia Maria Marinho de Azevedo e Lana Lage da Gama Lima demonstraram como os
contemporâneos perceberam esse fato. Em 1878, um deputado paulista protestava
que esses escravos trouxeram "com eles vício, imoralidade,
insubordinação... Aqueles fazendeiros que compram escravos de fora” abrigavam
"assassinos... em suas casas". Em 1881, o presidente da província do
Rio de Janeiro referiu-se aos cativos trazidos para sua província "a cujas
fazendas não trazem a resignação e contentamento de sua sorte, que são
essenciais à boa ordem delas". Ele esperava que a restrição do tráfico
ajudasse a manter "a ordem e tranquilidade dos estabelecimentos rurais".
Um estudo comparado de fazendas
vizinhas próximas a Campinas revela uma maior intranquilidade naquelas em que
havia escravos oriundos do tráfico interno do que naquelas com um grupo já
estabelecido. Os últimos anos da escravidão testemunharam um grande número de
assassinatos de senhores e feitores nas regiões do café. Como consequência, os
proprietários de escravos se tornaram cada vez mais temerosos.
A antiga ordem estava
desmoronando. Quanto mais a propriedade escrava ia se concentrando cada vez
mais num número menor de mãos e em áreas rurais mais do que nos centros
urbanos, o escravismo contava com menos defensores entusiastas. Muitos
moradores no Rio de Janeiro e em São Paulo olhavam com imparcialidade a fuga em
massa de escravos.
As contínuas investidas dos
escravos, em grande e pequena escala, derrubaram o sistema. É verdade que não
temos sólida evidência de que aqueles que participaram das fugas em massa de
1887-1888 foram necessariamente os envolvidos no tráfico interno. Mas o maior
campo de ação foi a província de São Paulo, exatamente a província que tinha
importado o maior número de cativos de outras regiões. O município açucareiro
de Campos, onde os escravos incendiaram os canaviais, foi a única área não-cafeeira
da província do Rio de Janeiro que experimentou um aumento no número de
escravos entre 1873 e 1882.
Viessem da cidade, das roças ou
da pequena plantação, fossem transferidos de longe ou de perto, as terríveis
condições da escravidão se tornaram cada vez mais visíveis, tanto para o
escravo como para o livre. O deslocamento provocado pelo tráfico interno
submeteu o sistema escravocrata a uma perigosa reviravolta.
RICHARD GRAHAM é professor emérito da Universidade
do Texas em Austin (EUA) e autor de Clientelismo e política no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
Fonte: Revista Nossa História – Ano
2 - nº 24 - outubro 2005
Saiba Mais: Bibliografia
AZEVEDO,
Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CHALHOUB,
Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DEAN,
Warren. Rio Claro: A Brazilian Plantation System, 1820-1920. Stanford, CA:
Stanford University
Press,
1976.
LIMA,
Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolição. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
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