Quando a Lei
Áurea foi assinada, 95% dos descendentes de africanos já eram livres, alguns
faziam parte da elite intelectual e das lutas abolicionistas, e muitos fugiam,
na maior ação de desobediência civil do país.
Hebe Maria
Mattos
"Fui ver pretos na cidade / que
quisessem se alugar./ Falei com esta humildade / - Negros, querem trabalhar? /
Olharam-me de soslaio, / E um deles, feio, cambaio, / Respondeu-me arfando o
peito: / - Negro, não há mais não./ Nós tudo hoje é cidadão. / O branco que vá
pro eito."
(O Monitor Campista, 28/3/1888)
Às vésperas da Abolição, versos como esses,
publicados no município fluminense de Campos, em março de 1888, tornaram-se
comuns nos jornais das cidades onde se concentravam os últimos escravos. Eles
dão bem a medida do movimento de fugas em massa que antecedeu a Lei Áurea,
assinada em 13 de maio. A poesia revela também que os cativos eram
depreciativamente chamados de "negros", embora cerca de 95% dos
descendentes de africanos do país já fossem livres. Era regra de etiqueta
silenciar sobre a cor dessas pessoas quando em situação formal de igualdade.
Esse racismo "à brasileira" tornou pouco nítido, para a posteridade,
a importância da população afro-brasileira livre antes mesmo da Abolição, além
de não realçar os esforços dos últimos cativos na conquista de sua liberdade.
Na última década da escravidão, eles apelaram para fugas em massa por quase
toda a Região Sudeste, no maior movimento de desobediência civil de nossa
história.
Desde
a Independência, os ideais do liberalismo político, inscritos na Constituição
de 1824, passaram a afirmar a igualdade de todos os cidadãos brasileiros
perante a lei. Apesar disso, a escravidão já instituída foi mantida legalmente
no país, em nome do direito de propriedade.
Mas ao final do período colonial, pretos e
pardos livres somavam praticamente 1/3 da população brasileira (complementada
por 1/3 de escravos e 1/3 de brancos). E muitos eram até mesmo pequenos
senhores de escravos - uma aspiração generalizada entre a população livre, no
período, independentemente da cor. Por outro lado, enfrentavam pesadas
restrições legais para o acesso a qualquer cargo público na sociedade colonial.
Em função disso, apesar do amplo consenso em torno do "direito de
propriedade" relativo aos escravos, foi exatamente a dimensão antirracista
do liberalismo que mais mobilizou a participação popular nas lutas políticas da
época da Independência, exigindo "igualdade entre todas as cores"
pelas ruas do Rio de Janeiro, Recife ou Salvador.
Os políticos e publicistas (escritor ou
jornalista político) que veiculavam este antirracismo liberal, como o advogado
Antonio Rebouças, reconheciam o direito de propriedade sobre os escravos, mas
lutavam pelo predomínio do talento para o acesso a cargos públicos e pela
extinção do tráfico negreiro. Contavam para isso com um aliado poderoso, a
Inglaterra, que desde 1810 pressiona pela abolição do tráfico e depois
condiciona o reconhecimento da Independência brasileira à repressão daquele
"infame comércio". Além disso, defendiam políticas de incentivo à
alforria através da autocompra, aliadas à garantia de plenos direitos de
cidadania aos ex-escravos. No Brasil "não há mais que escravos ou
cidadãos", publicavam alguns jornais liberais como O cabrito e O mulato ou O homem de cor.
Toda uma geração intelectual de
"homens de cor" formou-se a partir desse ideal. Alguns se destacaram
nas guerras de independência, como Antonio Rebouças e seus irmãos. Outros
obtiveram reconhecimento público na Corte, como o editor Francisco de Paula
Brito e seu ex-tipógrafo, Machado de Assis. Ao buscarem a "igualdade entre
todas as cores" num ambiente ainda escravista, esses descendentes de
escravos metiam-se, entretanto, num beco sem saída, pois a linguagem racial
permanecia, na prática, como elemento de desconfiança, hierarquia ou
subordinação. Embora alguns intelectuais se afirmassem como "pardos"
ou como "homens de cor" em seus jornais e discursos, levantes
populares no Nordeste foram feitos sob a alegação de que o simples registro de
categorias raciais para efeito de recenseamento poderia ser usado para
escravizar a "gente de cor". O resultado desses embates, bem claro a
partir de 1840, foi o silêncio sobre as cores da população livre nos documentos
oficiais e nas relações sociais. Para os liberais radicais da geração da
Independência, a cor não deveria importar, mas a dificuldade de se falar dela
tornava evidente que a vitória permanecia limitada, já que não se conseguia
dissociar "o homem de cor" da memória da escravidão de seus
antepassados.
Enquanto as lutas políticas da geração da
Independência convergiam para resultados conservadores, crescia o número de
escravos africanos. E quando a marinha inglesa passou, na década de 1840, a
atacar os navios negreiros em águas territoriais brasileiras, o apoio ao
tráfico clandestino assumiu então ares de "causa nacional". A
estimativa é que um milhão de escravos entrou no Brasil durante os vinte anos
de comércio já ilegal - depois da aprovação, em 1831, da primeira lei de
extinção do tráfico. Os escravos africanos estavam, portanto, em todos os
cantos da vida econômica e social, e representavam até 90% das populações das
fazendas de café que se expandiam nas províncias do Vale do Paraíba (Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo). Paralelamente ao crescimento do acesso à
alforria na segunda e terceira geração de escravizados - pagas, na maioria dos
casos, pelos próprios escravos com pecúlios obtidos com a autorização do senhor
-, o intenso tráfico clandestino de africanos nos anos 1830 e 1840 iria formar
a base da última geração de cativos.
As fazendas repletas de escravos, o
endividamento de alguns fazendeiros com o comércio negreiro, o isolamento
político brasileiro no panorama internacional, diante da pressão inglesa, e o
temor gerado por repetidas rebeliões de escravos africanos na Bahia, como a
famosa Revolta dos Malês, em 1835, tornaram iminente a decisão política de pôr
um fim ao comércio ilegal de escravos, finalmente tomada em 1850. Contra o voto
das províncias do Vale do Paraíba, onde se expandia a plantation cafeeira,
principal produto de exportação, uma nova lei de extinção do tráfico foi
aprovada, em quatro de setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós). A prisão
exemplar de alguns eminentes fazendeiros e a dura repressão aos capitães das
embarcações convenceram a maioria dos grandes senhores que dessa vez era para
valer.
Essas restrições provocaram, nas décadas
de 50 e 60 do século XIX, o aumento do preço dos escravos e uma concentração
social da propriedade de cativos: os pequenos senhores vendiam para os grandes,
as cidades para o campo, e o Nordeste para o Sudeste. Restaram poucos e ricos
senhores concentrados nas áreas de exportação, especialmente no Sudeste. Os
escravos nascidos no Brasil, comercializados nesse novo tráfico interno
estabeleciam com rapidez alianças e reivindicações antes inacessíveis aos
africanos. E quando permaneciam nas regiões em que haviam nascido, tendiam a
ampliar a pressão pela alforria. As aspirações da última geração de cativos se
fizeram assim presentes no dia-a-dia das cidades, das fazendas, e dos tribunais
- com reclamações sobre o direito de pecúlio e ações jurídicas questionando as
escravizações ilegais.
Ao mesmo
tempo, o fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, em 1865, acentuava o
isolamento brasileiro em termos internacionais. O impacto do recrutamento de
libertos na Guerra do Paraguai (1864-1870) sobre uma opinião pública cada vez
menos ligada aos interesses escravistas contribuiu para que o governo decidisse
empreender reformas que acelerassem o fim da escravidão. Não foi pequena,
porém, a batalha parlamentar da Lei do Ventre Livre, aprovada em 1871, que dava
liberdade para as crianças nascidas de mãe escrava a partir daquela data, mas que
previa indenização aos senhores pela criação delas até os oito anos. Essa
indenização podia ser paga em serviços das próprias crianças, prestados até os
21 anos, ou em dinheiro, pelo Estado. Os últimos senhores perceberam então que
não nasceriam mais escravos no Brasil.
Com a aprovação da lei, as reivindicações
dos cativos nascidos no Brasil passaram a estar, de certa forma, reguladas pelo
Estado monárquico. Além da liberdade do ventre, a lei de 1871 reconhecia o
direito do escravo ao pecúlio próprio e à compra de sua liberdade através de
preço arbitrado pela justiça. E instituía também uma matrícula geral. Até
então, nenhum documento legal atestava a condição livre ou cativa de uma
pessoa. Ou seja, um cidadão "de cor" podia ser confundido com um
escravo e sujeito a práticas ilegais de escravização. A matrícula seria ainda a
base para as alforrias mediante indenização do Estado aos senhores, com
recursos de um fundo de emancipação, também criado pela lei de 1871. Na
prática, o fundo libertou poucos e a maioria dos senhores optou por usufruir os
serviços das crianças nascidas juridicamente livres até os 21 anos, como a lei
lhes permitia. Apesar disso, o impacto simbólico da liberdade do ventre foi
tremendo, para senhores e escravos.
A partir de 1879, o movimento
abolicionista tomaria definitivo impulso nos centros urbanos e a agitação
política dos clubes abolicionistas se articularia com o aumento das fugas. Como
é bem visível no famoso quilombo do Jabaquara, em Santos, ou no quilombo do
Leblon. Mais uma vez "homens de cor" (ver box) formaram a linha de frente da intelectualidade
antiescravista, em seus mais variados matizes: do republicanismo de Luiz Gama
ao monarquismo de André Rebouças, passando pela militância de jornalistas como
José do Patrocínio, entre tantos outros.
A legitimidade da propriedade escrava e o
consequente direito de indenização dos senhores começaram a ser questionados na
segunda metade da década de 1880. Em 1884, a primeira proposta de uma lei dos
sexagenários não previa qualquer forma de indenização aos proprietários, pois
se tratava de libertar os sobreviventes africanos trazidos ilegalmente ao país,
entre 1831 e 1850, todos com a idade aumentada para não configurar a
ilegalidade.
Apesar disso, os senhores restantes ainda
eram poderosos. A Lei dos Sexagenários, aprovada em 1885, previa indenização de
cinco anos de trabalho para libertar escravos, com a idade de sessenta anos ou
mais, importados ilegalmente entre 1830 e 1850. Também um duro regulamento de
repressão ao movimento abolicionista foi aprovado. Não se concederia mais nada,
era o recado.
Mas os últimos senhores foram simplesmente
atropelados pela fuga em massa de seus escravos. O quadro era de desordem
generalizada. Por isso, apenas alguns representantes das províncias do Rio de
Janeiro e de Minas Gerais votaram contra a Abolição, reivindicando indenização
pela propriedade. A Lei Áurea foi aprovada sem indenização aos senhores e sem
medidas de reparação aos ex-escravos.
Festejada por milhares de pessoas, a
Abolição foi um acontecimento ímpar. Pela primeira vez se reconheceu a
igualdade civil de todos os brasileiros. Mesmo que não tenha significado sua
imediata efetivação, marca a invenção de uma cidadania brasileira entendida em
termos universais. Porém, até o surgimento dos movimentos negros do século XX,
a hierarquização racial pouco se modificou. A discussão atual sobre políticas
de reparação e a reivindicação de uma identidade negra recolocam na ordem do
dia a memória da escravidão inscrita na pele de milhões de brasileiros
HEBE MARIA
MATTOS é professora de História na
Universidade Federal Fluminense e autora de Das cores do silêncio:
significados da liberdade no Sudeste escravista. Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa. Rio de janeiro: Arquivo Nacional,
1995 e Nova Fronteira, 1998.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio 2005
Saiba
Mais – Bibliografia
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil.
18S0-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na
década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/EDUSP, 1994.
SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da
escravatura: uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
Saiba
Mais – Links
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