Incentivados pela Coroa e bem relacionados com a justiça, potentados impunham seu poder nas Minas Gerais com escravos armados.
ANA PAULA PEREIRA COSTA
A corrida para o território
mineiro em busca do metal dourado, sob poderes ainda fragilmente constituídos,
criou na região uma atmosfera de tensão, marcada por disputas violentas e
crimes de todo tipo praticados por homens e mulheres, livres e escravos, pobres
e ricos. Em meio a esse turbulento cenário e preocupados em manter seu poder e
autoridade, os poderosos se vigiavam e se atacavam mutuamente, ajudados por
tropas de escravos munidos de armas até os dentes.
As autoridades coloniais
acompanhavam a situação com desconfiança. Sabiam que ambos, potentados e
escravos, eram úteis para os propósitos de colonização da Coroa portuguesa,
ajudando em tarefas de manutenção da ordem, exploração e expansão do
território. Por outro lado, percebiam que esses braços armados levavam os
poderosos a praticar insolências e audácias. Conter tais atrevimentos era uma
questão extremamente delicada. Era preciso encontrar a medida do “bater e
soprar” ao lidar com essas figuras: entre perseguir e punir, ou deixar passar.
Os potentados eram grandes
proprietários de terra e de escravos que muitas vezes agiam de forma bastante
autônoma em relação à metrópole. Dirigiram-se para Minas Gerais no início do
século XVIII para descobrir ouro, e foram conseguindo obter ou ampliar ganhos
econômicos e poder de mando. A Coroa portuguesa incentivava a conquista dos
sertões com promessas de títulos de nobreza e mercês régias, como cargos
públicos. A estas honrarias os potentados adicionavam temor e respeito por meio
do comando de escravos armados, em demonstração de força e afirmação pessoal.
Assim oscilavam entre colaborar com as políticas coloniais e praticar atos
independentes e ilegais – facilitando os descaminhos do ouro, incitando motins,
encabeçando violências.
Um dos mais conhecidos
potentados foi Manuel Nunes Viana, líder dos portugueses na Guerra dos
Emboabas, ocorrida em Minas Gerais entre 1708 e 1709. Nascido em Portugal, foi para a capitania
mineira tentar a sorte como tantos homens de sua terra. Enriqueceu como
comerciante de mantimentos, negociante de gado, fazendeiro e contrabandista de
ouro. Fama, riqueza e poder eram sustentados também por uma milícia de escravos
armados, que o ajudava a manter a ordem, proteger territórios e expandir seu
domínio entre a Bahia e Minas Gerais.
Mesmo tendo liderado um conflito
que desafiou os representantes da Coroa na região, Nunes Viana ganhou mercês de
Sua Majestade por prestar serviços ao rei. Recebeu o título de capitão-mor do
São Francisco e o de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua sorte só começaria a
mudar em 1717, quando Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o conde
de Assumar, chegou para governar a capitania. Ele lançou uma severa perseguição
aos potentados que ameaçavam sua autoridade na região, principalmente contra
Nunes Viana.
Na Freguesia de São Sebastião,
os coronéis Maximiliano de Oliveira Leite e Caetano Álvares Rodrigues também
faziam valer sua autoridade, ora contribuindo com a metrópole na manutenção da
ordem pública, ora exercendo pela força uma dominação privada. A invasão de
seus escravos à casa do padre José de Soveral de Miranda foi exemplo disso.
Maximiliano era membro de uma
das principais famílias de São Paulo – neto do famoso bandeirante e governador
das esmeraldas, Fernão Dias Paes Leme, e sobrinho de Garcia Rodrigues Paes
Leme, guarda-mor das Minas e responsável pela abertura do Caminho Novo que
encurtou a distância entre o porto do Rio de Janeiro e a região do ouro. Assim
como seu avô e seu tio, seguiu para a capitania mineira desbravando matas
fechadas, trilhas indígenas pouco conhecidas e conquistando terras para a Coroa
portuguesa. Tudo em nome do enriquecimento imediato. Esteve entre os primeiros
povoadores de Minas Gerais, fixando-se na freguesia de São Sebastião.
Já o coronel Caetano Álvares
Rodrigues nasceu em Lisboa e iniciou-se na carreira militar muito jovem,
embarcando para a Índia no posto de soldado. Depois de ter aí servido por seis
anos, destacando-se em várias batalhas de mar e terra, foi para a América
portuguesa com aproximadamente 23 anos, em 1710. Na capitania mineira realizou uma
série de ações na defesa dos interesses de Sua Majestade, o que lhe traria
muitas recompensas, como a patente de coronel das ordenanças (1721) e os
títulos de cavaleiro da Ordem de Cristo (1731) e de cavaleiro fidalgo da Casa
Real (1746).
As vidas dos dois coronéis se entrelaçaram em
1716, quando Caetano se casou com a irmã de Maximiliano, Dona Francisca Pais de
Oliveira. Tornados vizinhos na freguesia de São Sebastião, passaram a
estabelecer seus negócios juntos, atuando com mineração e agricultura. Com
todos os seus cargos, títulos, atribuições e considerável riqueza, eram
considerados os detentores do maior poder de mando na região da Vila do Carmo,
que se tornaria cidade de Mariana em 1745.
Além de respeitados, eram muito
temidos. Valiam-se de escravos armados para formar grupos de capangas que
utilizavam a fim de resolver pendências pessoais. Naquele contexto, valentia,
crueldade e virilidade eram suportes para a credibilidade. Em diversas
circunstâncias procuravam se caracterizar pela agressividade de caráter e por
constantes demonstrações de brio em público. Eram claros recados para quem
ousasse contrariar suas pretensões.
Não foi à toa que o padre
Soveral passou por momentos angustiantes a mando dos dois coronéis. O desafeto
entre eles começou porque o sacerdote não quis atender a uma mulher “que
Maximiliano lhe foi pedir confessasse, o que o padre repugnou por saber que
andava o sobredito amancebado com ela”. Ao negar à concubina de Maximiliano o
direito à confissão, o padre ofendia também o potentado, pois descumprir seu
pedido era colocar em questão sua autoridade diante da comunidade.
Isso o coronel não podia deixar
passar. Precisava impor limites sobre a população e evitar possíveis transtornos
que pudessem atrapalhar sua autoafirmação e a manutenção de sua integridade
pessoal. A violência era a melhor resposta. Ela atestava a valentia e
resguardava o “território” de domínio dos potentados, garantindo prestígio,
poder local e a posse de mando. Junto com seu cunhado Caetano Álvares
Rodrigues,
o coronel Maximiliano ordenou a violenta invasão de escravos armados à casa do
vigário.
O caso foi parar em um tribunal,
gerando a abertura de um processo. Mas Maximiliano era muito bem relacionado,
inclusive com o juiz ordinário responsável pelo pleito, Belchior da Costa
Soares. A sentença foi a condenação de apenas 12 escravos à prisão, “daquele
grande número que cometeu as referidas insolências, e isso por amizade de ambos
e para tapar a boca ao mundo”, como se queixou o padre Soveral.
Assim se pautavam as relações de
dominação e os valores culturais nos tempos iniciais de formação de Minas
Gerais. Era um cenário marcado pela violência e por conflitos entre interesses
do poder público e do poder privado. Mandavam os que tinham terras e escravos
armados. Obedeciam os que tinham juízo.
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