Na primeira década do século XX, o governo federal enviou à força cerca
de duas mil pessoas para o Acre.
Só por ter
roubado um prato de comida em Cruzeiro do Sul, no Acre, Saul Ovídio teve que
responder a um inquérito policial em 1905. Já Lycurgo Álvaro de Carvalho foi
preso na cidade de Xapuri, em março de 1910, acusado de ter sido coautor de um
assassinato. Delphina Rodrigues da Silva, em 1913, foi arrolada em um processo
criminal como ré e pivô de uma briga de bar na vila de Santo Antônio do
Madeira, de onde o soldado José Rodrigues saiu ferido a golpes de navalha.
Francisco Pereira foi preso após ter sido baleado pela polícia por ter “causado
confusão” em uma festa alusiva ao Dia do Trabalho, em 1916, na vila de
Presidente Marques, próxima à de Santo Antônio. O comandante da polícia, réu no
processo, se defendeu acusando Francisco de criminoso contumaz e irrecuperável.
Todas essas pessoas faziam parte de um
grupo que foi expurgado do Rio de Janeiro para as chamadas “regiões do Acre” em
1904 e 1910. Se Saul e Lycurgo faziam parte da primeira leva, Delphina e
Francisco foram expulsos na segunda. Cerca de dois mil cidadãos foram punidos
pelo governo federal da mesma maneira, por conta do seu envolvimento nas
Revoltas da Vacina (1904) e dos Marinheiros (1910), e após a vigência dos
estados de sítio que foram decretados depois dessas rebeliões. Todos foram
desterrados como criminosos políticos, e não como condenados pela Justiça.
Durante o período imperial e nos primeiros
anos da República, muitos daqueles que cometiam delitos e acabavam sendo
condenados eram enviados para a Ilha de Fernando de Noronha, para que pudessem
ser mantidos longe dos centros urbanos e em um lugar de difícil regresso. O
Acre também era, simbolicamente, uma região insular. Um arquipélago de
clareiras no meio da floresta, onde os caminhos mais usuais eram as trilhas e
os rios que ligavam seringais, aldeias, cidades e vilas, e que podiam levar
dias para serem percorridos.
Por ser considerado distante, vasto,
isolado e “vazio”, o território era visto como um local adequado para receber
os revoltosos. Tudo isso era feito em nome de uma nova ordem que tentava se
impor no país. A pouca urbanização na região e sua natureza considerada hostil
ao ser humano faziam com que a imprensa a comparasse à Sibéria. Essa alusão não
era gratuita, pois era para lá que os russos, a partir do início do século XIX,
enviavam os opositores para exílios forçados. Como afirmou certa vez o
historiador Mark Bassin – autor de Imperial visions: nationalist
imagination and geographical expansion in the russian far east 1840-1865(1999)
–, o nome Sibéria não tardou a se tornar sinônimo de degredo e servidão penal,
independentemente de se referir a um lugar dentro ou fora dos limites da
Rússia.
E foi para a “Sibéria tropical” que cerca
de dois mil indivíduos embarcaram à força em navios fretados pelo Estado
brasileiro na primeira década do século XX. Antes das duas revoltas, muitos
deles já vinham atemorizando e preocupando – de modo infundado ou não – as
autoridades metropolitanas. Muitos eram classificados como pertencentes às
classes perigosas, e boa parte dos desterrados era formada por prisioneiros da
Casa de Detenção. Um enorme contingente, que ficava em torno de 1.500 pessoas,
saiu do Rio no final de 1904 e no começo do ano seguinte em três navios – Itaipava, Itapacy e Itaperuna –,
fazendo escalas em Belém e Manaus. Na capital do Amazonas, elas foram
transferidas para outras embarcações com destino ao Acre. Seis anos depois, uma
única leva de 436 condenados foi enviada para a região, a bordo do Satéllite,
seguindo o mesmo roteiro da viagem anterior, mas parando definitivamente em
Santo Antônio do Madeira, onde hoje fica a cidade de Porto Velho (RO). Mesmo
assim, não se pode afirmar que foram colocados em prisões ou em colônias
penais, até porque estas não existiam.
O território acriano foi oficialmente
boliviano até 1903, embora a maior parte de sua população fosse de brasileiros
que começaram a migrar para lá na segunda metade do século XIX. Era uma região
que estava profundamente identificada com a cultura da borracha natural –
oriunda do látex extraído das árvores de seringa (Hevea brasiliensis).
Essa produção era escoada por via fluvial, seguia para os portos de Belém e
Manaus, e de lá era exportada para o exterior. Por conta dessa característica
econômica, o governo federal chegou a afirmar que os desterrados seriam usados
como mão de obra para a extração da borracha nos vastos seringais do Acre.
Naquela época, acreditava-se que este trabalho poderia ser feito por qualquer
indivíduo. Os jornais cariocas e os documentos oficiais sustentavam que não era
preciso qualquer qualificação profissional para quem se
embrenhava nas matas amazônicas com esse objetivo.
Do ponto de vista geopolítico, o
território do Acre era uma região de fronteira internacional, constantemente
ameaçada pelos conflitos armados travados entre os seringueiros brasileiros –
arregimentados como soldados pelos patrões seringalistas – e as forças
militares bolivianas e peruanas. As questões fronteiriças com o Peru foram
resolvidas somente em 1909. Mas o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a
Bolívia após o fim da chamada Revolução Acreana (1899-1903), outorgou ao
Brasil uma nova unidade federativa – onde a presença do Estado era
completamente ausente ou, no máximo, deficiente nas primeiras décadas de
administração da União. Demograficamente, as “regiões do Acre” eram de baixa
densidade. E, juridicamente, formavam o único Território Federal brasileiro, e
por isso eram administradas diretamente pela União. Estes aspectos certamente
foram levados em consideração quando o governo decidiu desterrar cidadãos que,
em 1904 e 1910, eram vistos como indesejados. Seria muito mais problemático
negociar com os governadores e com as oligarquias de outros estados da
federação a acolhida de tantos rejeitados.
Para as autoridades do Distrito Federal –
e talvez para os próprios desterrados –, a expulsão do Rio de Janeiro para o
Acre representava, na prática, uma ida sem volta daqueles que para lá foram
enviados contra suas vontades. Havia um consenso – por parte das autoridades,
do discurso médico e jurídico em voga – em relação à imagem desses homens e
mulheres: seriam criminosos irrecuperáveis e perigosos. Aos olhos das
autoridades, eles eram invariavelmente tidos como prostitutas, rufiões,
charlatães, capoeiras e malandros de toda espécie. Faziam parte da escória
social e das chamadas “classes perigosas”. Por isso o governo federal quis
isolá-los e condená-los ao desaparecimento.
Os desterrados de 1904 acabaram se
estabelecendo em cidades como Vila Empresa (atual Rio Branco), Xapuri e
Cruzeiro do Sul. A maior parte desse contingente foi aproveitada em obras da
prefeitura, mas muitos acabaram trabalhando como capangas dos chefes políticos
locais. Já os de 1910 ficaram em Santo Antônio do Madeira, a maioria
trabalhando nas obras da estrada de ferro Madeira-Mamoré (1907-1912) e nas
Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMA) da
Comissão Rondon (1907-1915). Mas a má fama de alguns era tão grande que eles
não tiveram qualquer tipo de acolhida: ficaram livres, ao Deus dará.
As autoridades do Acre, por sua vez, não
pareciam muito preocupadas com a “regeneração” dos desterrados. O delegado que
cuidou do caso de Saul Ovídio, por exemplo, pediu uma punição rigorosa para que
o desterrado pudesse servir de exemplo à “chusma de vagabundos para aqui
deportados”. Muitos dos que se tornavam inoportunos e indóceis eram fuzilados
imediatamente. Outros tantos sumiram sem deixar rastros. Mas não se pode dizer
que Ovídio, Francisco Pereira, Lycurgo de Carvalho e Delphina Rodrigues foram
condenados somente pelas autoridades republicanas. Quem os sentenciou e puniu,
acima de tudo, foi a nova ordem moral e política que as elites brasileiras
queriam impor ao país no início do século republicano.
Francisco Bento da Silva é professor da Universidade Federal do
Acre e autor da tese “Acre, a pátria dos proscritos: prisões e desterros para
as regiões do Acre em 1904 e 1910” (UFPR, 2010).
Saiba Mais - Bibliografia
BENCHIMOL, Jaime
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