José Murilo de Carvalho
Com suas políticas de saneamento,
Oswaldo Cruz mexeu com a vida de todo mundo, sobretudo dos pobres. Em junho de
1904, o governo propôs uma lei que tornou obrigatória a vacinação, motivando
petições contrárias assinadas por cerca de 15 mil pessoas. A lei foi aprovada
em 31 de outubro; no dia 9 de novembro, Oswaldo Cruz propôs uma drástica
regulamentação, exigindo comprovantes de vacinação para matrículas em escolas,
empregos, viagens, hospedagens e casamento. Estava até previsto o pagamento de
multas para quem resistisse. A proposta vazou para a imprensa e, indignado, o
povo do Rio disse não, na maior revolta urbana já vista na capital. O motim
começou no Largo de São Francisco, em torno da estátua de José Bonifácio.
Estudantes protestavam contra a vacina, quando um delegado de polícia prendeu
um deles, levando-o para a Praça Tiradentes, onde ficava a Secretaria de
Justiça. Houve confrontos entre os manifestantes e a cavalaria. Foi então que
se ouviram os primeiros gritos de "Morra a polícia!", "Abaixo a
vacina!". Isso, já no dia 10, uma quinta-feira, quando a regulamentação de
Oswaldo Cruz sequer havia sido aprovada. No dia 11, repetiram-se os protestos.
No dia 12, segundo o Correio da Manhã, 4 mil pessoas, "de todas as classes
sociais", concentraram-se no Centro das Classes Operárias, na Rua do
Espírito Santo - atual Rua Pedro I -, próximo à Praça Tiradentes, para fundar
uma Liga Contra a Vacina Obrigatória. Depois, a multidão seguiu rumo ao Palácio
do Catete, já fortemente guardado, trocando tiros com a polícia no caminho. O
Exército entrou em prontidão.
No dia 13, um domingo, a revolta se
generalizou. A Praça Tiradentes virou campo de batalha. Partindo de lá, a luta
se estendeu por toda a região entre o Largo de São Francisco e a Praça da
República. Ouviam-se descargas de revólver e carabina, bondes começaram a ser
queimados, barricadas foram erguidas na Avenida Passos. Na Rua de São Jorge, as
prostitutas aderiram à luta. A população assaltou delegacias, quartéis, casas de
armas. A essa altura, o conflito atingia a região portuária da Saúde e da
Gamboa, seguindo para Laranjeiras e Botafogo, hoje Zona Sul do Rio, e também
para a Tijuca, Rio Comprido e Engenho Novo, na Zona Norte. Na Rua Larga de São
Joaquim, atual Avenida Marechal Floriano, as colunas dos lampiões de gás foram
quebradas e enormes chamas lambiam os ares.
No Sacramento, combatia-se na rua a
revólver e a porrete, enquanto dos sobrados os moradores jogavam latas,
garrafas, pedaços de madeira e o que mais estivesse à mão. Na Saúde, os
revoltosos assumiram o controle da delegacia de polícia e, segundo cálculos do Jornal do Commercio, duas mil pessoas
construíram barricadas na Praça da Harmonia e ao longo da rua de mesmo nome. O
clima era de tensão. O governo dividiu, então, o controle da cidade entre
polícia, Exército e Marinha. As autoridades estavam tão inseguras que
convocaram tropas do Exército de Niterói, Lorena (São Paulo) e São João dei Rei
(Minas Gerais).
Na esteira da rebelião popular contra
a invasão de privacidade e a obrigatoriedade da vacina, surgiram outras
reivindicações, de grupos sociais distintos. Declarações do presidente do
Centro das Classes Operárias e líder da revolta, Vicente de Souza, atestam
isso. Ele dizia que o levante contra a vacinação fora uma reação popular, que
elementos belicosos da "classe temerosa" souberam aproveitar.
Na Escola Preparatória e de Tática do
Realengo, comandada pelo general Hermes da Fonseca, futuro presidente da
República, houve uma tentativa de levante. Um dos revoltosos entrou na Escola
gritando: "Prende o general! Mata o general!" O golpe falhou, mas o clima de sublevação se instalou na Escola
Militar da Praia Vermelha. Cerca de trezentos cadetes, sob o comando do general
Silvestre Travassos, se puseram em marcha para o Palácio do Catete. Eram 10
horas da noite e Botafogo estava às escuras, porque os lampiões tinham sido
destruídos. O governo fortificou o palácio e mandou tropa para enfrentar os
cadetes. Os dois grupos se enfrentaram na Rua da Passagem e trocaram tiros no
escuro. O general Travassos caiu ferido. Sem saber o que acontecia do outro
lado, as duas tropas debandaram. Ao Catete chegou, de início, a notícia de que
os soldados do governo tinham fugido. Houve pânico e sugeriu-se a Rodrigues
Alves que se refugiasse num navio de guerra para de lá organizar a resistência.
O presidente recusou o conselho e logo veio o alívio com a informação da
debandada também dos cadetes.
No lugar da festa cívica, o dia 15,
aniversário da República, foi de revolta popular. No alto do Morro da Mortona,
na Saúde, foi hasteada uma bandeira vermelha. Um novo foco de rebelião surgiu
no Jardim Botânico, onde seiscentos operários das fábricas de tecido Corcovado
e Carioca, e da fábrica de meias São Carlos, atacaram a delegacia de polícia.
Chegaram nesse dia as tropas de Minas e
de São Paulo; no dia seguinte, o presidente Rodrigues Alves decretou estado de
sítio. O reduto rebelde erguido em barricadas na Saúde era o que mais
preocupava as autoridades. No final da Rua da Harmonia ergueu-se a principal
delas.
Um repórter do Jornal do Commercio assim descreveu a situação no local:
"aquela multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de
armas ao ombro uns, de garruchas e navalha à mostra outros". No comando
dos rebeldes estavam os valentões Manduca Pivete e Prata Preta, o terror da
polícia. Ao ser preso, Prata Preta matou um soldado do Exército e feriu dois
policiais. Estava armado com dois revólveres, uma faca e uma navalha. O reduto
da Harmonia foi atacado por terra e mar, desmobilizando os revoltosos, que não
deram combate e simplesmente desapareceram. Ou, pelo menos, tentaram.
A classificação dos revoltosos
variava. Para a oposição, cuja principal voz era o Correio da Manhã, o povo - estudantes, operários, comerciantes e
militares - é que tinha se rebelado. Para os jornais que apoiavam o presidente,
como O Paiz, para o chefe de polícia,
Cardoso de Castro, e para o governo, a revolta tinha sido obra de desordeiros,
arruaceiros, desocupados. Castro se referiu ao "rebotalho", às
"fezes sociais". A elite intelectual concordava. O poeta Olavo Bilac
atribuía os acontecimentos à "matula desenfreada", à
"turba-multa irresponsável de analfabetos".
Na raiz dos distúrbios estava um
problema sanitário sério. Oswaldo Cruz escolheu três doenças como foco de sua
empreitada: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Combater o mosquito
transmissor da febre era fundamental para conter o avanço da doença. Brigadas
de mata-mosquitos saíam pela cidade invadindo residências, cortiços, casas de
cômodos. Limpavam, desinfetavam, exigiam reformas e interditavam esses
ambientes, removendo os doentes de seus lares. Só no segundo semestre de 1904,
foram 110 mil visitas. Quanto à peste bubônica, o controle da epidemia exigia o
extermínio dos ratos e das pulgas. O governo, acreditando poder assim tornar
mais eficaz o trabalho, decidiu comprar ratos. Não demorou para que o carioca
começasse a criá-los para faturar uns trocados. Um ou outro chegou mesmo a
importar o roedor de Niterói para vendê-lo no Rio. No Carnaval de 1904, a
população cantava a própria desgraça. Caiu na folia dançando a polca - ritmo
originário da antiga Tchecoslováquia - "Rato-rato", da dupla Casemiro
Rocha e Claudino Costa (Clique e ouça).
Exatamente um século depois da Revolta
da Vacina, quais conclusões podem ser tiradas daqueles dias turbulentos de
novembro de 1904? Uma coisa é certa: houve várias revoltas dentro da revolta.
Uma delas foi, sem dúvida, a dos militares. Outra, a dos operários do Centro
das Classes Operárias e das fábricas do Jardim Botânico. E ainda uma terceira,
a do "povão" do Sacramento e da Saúde, reunindo capoeiras,
prostitutas da Rua de São Jorge, portuários e gente com passagens pelas
delegacias de polícia.
A mobilização começou no Centro das
Classes Operárias, dirigido pelo socialista Vicente de Souza hoje, nome de uma
rua em Botafogo. Há informação sobre a ocupação de 10.199 dos 14.812
signatários das petições contra a vacinação obrigatória. Verifica-se que 78
eram militares; os outros, isto é, quase a totalidade, eram operários. A
análise dos documentos e jornais de época revela a presença desproporcional
desse grupo entre as vítimas. Do total de feridos, ele representa 71%. E do
total de mortos, 86%. Esses números ganham proporções ainda mais relevantes se
levarmos em conta que os operários representavam apenas 20% da população
carioca. É por isso que, para entender os motivos da Revolta da Vacina de 1904,
temos de voltar os olhos para os trabalhadores.
Naquele momento, outros grupos se
aproveitaram da revolta dos pobres. Os militares e políticos da oposição
queriam derrubar o governo, queriam acabar com o que chamavam de república
prostituída dos fazendeiros e restaurar a pureza que viam em Floriano Peixoto e
Benjamin Constant. Para o "povão" do Sacramento e da Saúde, talvez a
intervenção sanitária de Oswaldo Cruz não fosse exatamente o principal motivo
das manifestações. É possível que tenha aproveitado a revolta para bater em seu
tradicional inimigo, a polícia. Mas, e os operários e os que poderíamos chamar
de pobres honestos, por que se rebelaram?
Resta indagar se os motivos da
revolta foram, no final das contas, as campanhas de combate às epidemias e a
vacinação obrigatória. Todas as evidências indicam que sim. Para mencionar uma
só, Oswaldo Cruz foi massacrado, acusado - pela sociedade de alto a baixo - de
despótico e arbitrário, quando não de irresponsável. Políticos, Rui Barbosa
entre eles, qualificavam as medidas adotadas de violação dos direitos civis e
da Constituição.
Para entender por que a intervenção
sanitária revoltou a todos, é preciso ter em mente os valores e os costumes do
início do século XX. O líder dos operários, o socialista Vicente de Souza,
argumentava que era uma ofensa à honra do chefe de família ter seu lar, em sua
ausência, invadido por um desconhecido. E, muito pior, saber que diante dele
sua mulher e filhas seriam obrigadas a desvendar seus corpos. Em que
consistiria tal desvendamento?
A vacinação era feita no braço, nos
postos médicos ou em casa, com o auxílio de uma lanceta, instrumento cirúrgico
de dois gumes. O deputado oposicionista Barbosa Lima admitiu a possibilidade de
aplicação na coxa. Nos comícios, oradores inflamados deslocaram o local para as
virilhas. O escritor José Vieira nos conta, no romance O bota-abaixo, que, no Largo de São Francisco, eles radicalizaram,
dizendo que "cafajestes de esmeralda" (referiam-se à pedra que
representava a profissão de médico) invadiriam os lares para "inocular o
veneno sacrílego nas nádegas das esposas e das filhas". O impacto de tais
argumentos foi devastador. A vacinação e a revacinação se reduziram de 23 mil
em julho para pouco mais de mil em outubro. Na Saúde, só 14 pessoas se
vacinaram em outubro e apenas 18 tomaram uma segunda dose.
A Revolta da Vacina se distinguiu de
protestos anteriores por sua amplitude e intensidade. O que lhe deu esta
característica foi a força da justificação moral. Houve um trágico desencontro
de boas intenções, as de Oswaldo Cruz e as da população. Mas em nenhum momento
podemos acusar o povo de falta de clareza sobre o que acontecia à sua volta.
Embora não se interessasse por política, embora não votasse, ele tinha noção
clara dos limites da ação do Estado. Seu lar e sua honra não eram negociáveis.
A revolta deixou entre os participantes um forte sentimento de autoestima,
indispensável para formar um cidadão. Um repórter de A Tribuna ouviu de um
negro acapoeirado frases que atestam esse sentimento. Chamando sintomaticamente
o jornalista de cidadão, o negro afirmou que a sublevação se fizera para
"não andarem dizendo que o povo é carneiro". O importante -
acrescentou - era "mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do
povo".
JOSÉ MURILO DE CARVALHO é
professor titular de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, e autor de Os bestializados. O Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 2 - nº 13 -
Novembro 2004
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Tropicais
No início do século XX chegam ao Rio
de Janeiro, no mesmo navio Esther, uma jovem polonesa com a promessa de se
casar e iniciar uma nova vida, e Oswaldo Cruz, que retorna de Paris cheio de
sonhos em transformar a saúde pública do país. Esther, uma jovem judia vinda da
Polônia com a promessa de se casar, mas quando chega ao Rio de Janeiro é obrigada
a trabalhar como prostituta em um bordel da Lapa. Esse tipo de situação era
comum no inicio do século XX, pobres ou fugidas do antissemitismo acabavam se
tornando prostitutas, ou por serem obrigadas ou por falta de opção, eram as
chamadas “Polacas” ou “Escravas Brancas” - essa pratica só começa a decair após
a década de 40. Já Oswaldo Cruz, foi nomeado chefe do departamento de Saúde
Pública responsável por eliminar as várias doenças - peste bubônica, febre
amarela e a varíola - que assolavam a população da cidade. Anos de insatisfação
popular e forte oposição política explodem a "Revolta da Vacina".
Direção: André Sturm
Gostei muito da informação.
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