A Avenida Central, no Rio de Janeiro, nasceu como símbolo da modernidade e tentativa de "civilizar" os brasileiros usando a arquitetura.
Claudia Thurler Ricci
O ano era 1902. Após sucessivos governos malogrados, revoltas populares explodindo por todo o território, levantes militares e resistências por parte dos simpatizantes do regime político deposto, o quinto presidente da República era empossado. Sua missão: consolidar a imagem do triunfante regime republicano, dando forma física a uma realidade política e econômica. Rodrigues Alves (1948-1919) teria quatro anos para construir um Brasil moderno.
Conhecedor da capital federal -
e tendo em vista que o Rio de Janeiro também era, àquela época, principal
núcleo econômico do país, seja como centro comercial, seja como escoadouro da
produção agrícola do interior -, sabia que esta precisava ser remodelada e
saneada. Aliás, estes eram os pontos básicos de seu plano de governo.
O escolhido para levar adiante a
empreitada foi Francisco Pereira Passos (1836-1913), nomeado prefeito do
Distrito Federal em 1902. Assumiu o governo com poderes ditatoriais: podia
legislar por decreto, dispor do aparelho administrativo como quisesse e realizar
operações de crédito sem interferência do Legislativo. Aos 66 anos, o
engenheiro já possuía longa folha de serviços prestados à administração
pública. Presente em Paris nas décadas de 1860 e 1870 - onde estudou engenharia
-, testemunhou a reformulação da capital francesa pelo barão Georges-Eugène
Haussmann entre 1863 e 1870, com a abertura de monumentais bulevares.
Participou, nos anos 1870, da comissão que elaborou amplo projeto para
reformulação da capital imperial, já assolada pelas dificuldades de circulação
e pelas endemias. Seus objetivos, ao assumir a prefeitura em 1902, eram
realizar as reformas de âmbito municipal e garantir as propostas pelo governo
federal.
As obras abrangiam a
modernização do porto, até então um cais mal-ajambrado, raso, de traçado
recortado, incapaz de comportar equipamentos modernos, receber grandes navios e
impossibilitado de escoar a produção que ali chegava; a criação de amplas,
retas e arejadas avenidas que ligassem o porto às demais regiões da cidade; o saneamento,
iluminação e abastecimento de água nas vias públicas, criando condições de vida
e comércio dignas de uma metrópole civilizada.
Nesta ampla reforma, estava incluída a ideia de construir uma avenida que cortasse o centro da cidade e interligasse o porto ao núcleo comercial, facilitando o fluxo de mercadorias e de pessoas. Assim, o presidente nomeia, em novembro de 1903, como chefe da Comissão Construtora da Avenida Central, o engenheiro Paulo de Frontin (1860-1933), glória da engenharia nacional, responsável pela solução do problema de abastecimento de água na cidade nos últimos dias do Império - um dos motivos de sua escolha para o cargo.
Logo após sua nomeação, Frontin
convocou os proprietários dos prédios a serem demolidos - chamados por alguns,
na época, de "usinas de tuberculose" - para negociar as indenizações.
No mesmo momento, o Congresso aprovou uma lei que vinculava o valor da
indenização ao preço do imóvel informado pelo proprietário para a cobrança do
imposto predial. Obviamente, a chiadeira foi generalizada. Mas em vão.
Três meses depois, apoiado na
autoridade do presidente e do prefeito, as demolições começaram. Em 7 de
setembro de 1904, após sete meses e mais de seiscentas demolições, chegando ao
número de mil operários em turmas que se revezavam dia e noite, inaugurava-se o
eixo da avenida, já contando com linha de bonde elétrico. É verdade que, no ato
da inauguração, o bonde que levava o presidente - além de ter descarrilado - só
percorreu metade dos 1.996 metros da via, já que uma construção não demolida
ficava no meio do caminho. Mas isso não ofuscou a façanha de Frontin.
Segundo o historiador Jaime
Benchimol, essa rapidez não era gratuita. O custo social e político da obra era
elevadíssimo. Milhares de pessoas foram desabrigadas de uma só vez, e a vida no
centro da cidade foi completamente desorganizada. Ao longo do traçado da
avenida, inúmeras casas de cômodos e cortiços desapareceram do dia para a
noite, assim como vários estabelecimentos comerciais e industriais de pequeno
porte. A população desalojada foi obrigada a se deslocar para bairros do
subúrbio ou improvisar moradias nos morros próximos ao centro urbano. No
decorrer das obras, os políticos e os intelectuais que se opunham a Pereira
Passos acusavam o governo de desabrigar os pobres e construir ricos palacetes.
A Revolta da Vacina, o maior levante popular urbano do Rio de Janeiro, ocorrido
no final de 1904, acontece justamente neste contexto de reforma da cidade e
seus "hábitos". A lei da vacinação obrigatória foi, obviamente, o
estopim para a explosão do movimento. Mas as medidas arbitrárias tomadas pelo
presidente Rodrigues Alves - ou com o seu consentimento - haviam minado a
confiança da população pobre no governo. O bota-abaixo, como ficou conhecida a
série de demolições durante o governo Pereira Passos, não foi feito com o
planejamento necessário. Aliás, as vilas operárias construídas não comportavam
a décima parte dos desabrigados. A cidade ficou reservada àqueles que podiam
pagar por residências adequadas aos novos padrões de higiene e salubridade.
Um ano e dois meses depois, no
feriado de 15 de novembro de 1905, acontecia a segunda inauguração da Avenida
Central. Agora pronta, pavimentada com paralelepípedos de asfalto - após os
construtores terem experimentado materiais como madeira e vidro no calçamento
das ruas, sem sucesso -, iluminada com eletricidade e gás, arborizada com mudas
de pau-brasil e calçada com mosaicos em pedra portuguesa, executados por
operários vindos de Lisboa. A esta altura, trinta prédios estavam prontos e 85
em construção, restando apenas quatro lotes para venda.
Tão logo a avenida se concretiza, seu sentido original é deixado de lado. De eixo de ligação ela passa a funcionar como exemplo de civilização. A via tornou-se aspecto central do plano da elite republicana para a modernização da sociedade brasileira. Era preciso dotar a capital federal de uma nova composição espacial, urbana e arquitetônica, que a organizasse física e simbolicamente. Desta forma, a Avenida Central deveria servir de modelo para as transformações nos hábitos e costumes. Alguns atos do prefeito Pereira Passos, como a proibição de cuspir nas ruas e nos bondes, da criação de porcos no perímetro urbano, da venda de leite levando a vaca de porta em porta, a obrigatoriedade de manter as fachadas dos prédios pintadas, ajudam a compreender o caráter do padrão de civilização a ser implementado no país, partindo-se do Distrito Federal. Diga-se de passagem, as multas fixadas sobre os novos delitos também foram uma forma de a população pobre, arraigada aos velhos costumes, contribuir financeiramente para a modernização da cidade.
A cidade e a arquitetura
colonial eram associadas ao atraso, ao desleixo e à falta de higiene. Desta
forma, a República tomou para si o dever e a autoridade de retirar a cidade e
sua produção arquitetônica deste estado em que fora deixada pelo regime
anterior, exterminando os "(...) imundos casebres, essas eternas alcovas,
antecâmaras da morte, que inundam o coração da cidade", como afirmou à
época um conselheiro municipal. Significativo, neste sentido, foi um concurso
promovido pela Gazeta de Notícias para a escolha do nome do novo eixo. A
denominação mais votada foi Avenida D. Pedro II. O resto da história é
conhecido. A avenida continuou a se chamar Central até 1912, quando um grande
vulto do regime republicano passou a dar-lhe nome. Um Paranhos. Não o pai, José
Maria da Silva Paranhos, importante estadista do segundo reinado, mas o filho,
José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Juca, que, apesar de ter sido uma das
mais populares figuras da República, era ainda reconhecido pelo título que lhe
conferiu o último imperador - barão do Rio Branco.
Para o cronista Gil, em artigo
na revista Kosmos em 1904, a abertura da avenida foi um divisor de águas
na história do país, sinalizando o término do período colonial, pois mesmo com
a Independência de 1822 continuávamos "presos à mesma influência" e,
pior ainda, "aos mesmos usos e aos mesmos preconceitos". Jornalistas
e literatos, aliás, foram partes importantes na discussão sobre as reformas e,
em particular, a avenida. Nomes como Olavo Bilac, João do Rio e Lima Barreto
publicaram textos nos quais se pronunciavam sobre aspectos gerais ou pontuais
desta grande transformação pela qual passava a cidade do Rio de Janeiro.
Entretanto, apesar das críticas,
o plano do presidente Rodrigues Alves e seu séquito foi levado adiante.
Exemplar, neste sentido, foi a atuação da Comissão Construtora da Avenida
Central. A ela eram apresentadas, obrigatoriamente, as plantas dos edifícios a
serem construídos. Assim, ficava a cargo de Paulo de Frontin e sua equipe
requisitar à prefeitura a licença para a construção - fato que só ocorria após
minuciosa análise, que conferia detalhadamente as condições de higiene e
salubridade das novas construções. Em 1904, em artigo publicado na revista Kosmos,
o cronista Alfredo Lisboa comentou esta nova atribuição do governo, assinalando
o fato de que na avenida "a construção dos edifícios obedecerá às normas
estabelecidas pelas posturas municipais em vigor (...). Prédio algum poderá ser
edificado sem que previamente sejam submetidos ao julgamento da Comissão
desenhos detalhados concernentes à planta, à fachada e à disposição interna".
Os concursos arquitetônicos promovidos pelo governo federal e pela municipalidade tinham por objetivo iniciar a população no cultivo do "bom gosto". Amplamente manipulados pelo governo e com grande divulgação na imprensa, visavam seduzir o cidadão, convencendo-o a mudar seus hábitos, principalmente os estéticos. O primeiro e mais importante destes foi o "Concurso para projetos de fachadas da Avenida Central" realizado em 1904, cuja principal finalidade era que as propostas apresentadas servissem de modelo para os proprietários dos terrenos na nova via pública. Em matéria intitulada "O Concurso Arquitetônico", em março daquele ano, o Jornal do Brasil, ao comentar a exposição dos trabalhos, aponta para a vitória alcançada pelo governo em sua campanha pela renovação arquitetônica da cidade, afirmando que "o sucesso da exposição foi muito além do que esperavam os organizadores do concurso (...) Já os capitalistas e o público em geral começam a convencer-se de que os edifícios da avenida devem ter estética e devem dar testemunho público do nosso adiantamento artístico e intelectual".
Originalmente construído com
capacidade para 1.700 espectadores, o Theatro Municipal era apontado como um
exemplo de modernidade, pois congregava as inovações espaciais e tecnológicas
alcançadas no período. Sua caixa cênica (palco, maquinário e bastidores) foi
construída com equipamentos de tecnologia avançada, importados da Inglaterra,
permitindo a presença de um palco móvel. Para gerar a energia que alimentava
seus mecanismos cênicos, a iluminação do teatro e a refrigeração do auditório -
feita através de um sistema que consistia em acoplar toneladas de gelo aos
ventiladores - foi construída uma usina em uma edificação nos fundos do prédio.
Este é apenas um exemplo, ao
qual se poderia somar os 119 prédios construídos na avenida segundo os
preceitos do ecletismo, aliando sempre a utilização de novos materiais às
exigências do público e ao gosto estético que se formava.
Vitrine de inovações, cenário da
modernidade, palco para uma sociedade civilizada. A Avenida Central, assim,
torna-se o emblema de um novo Brasil, governado por um novo regime, que
acreditava estar construindo ali o seu espelho. Pode-se dizer, portanto, que a
Avenida Rio Branco guarda, hoje, resquícios de um projeto de nação que,
passados cem anos, ainda é projeto.
CLAUDIA THURLER RICCI é historiadora da arte e autora da tese: Construir o passado e projetar o futuro: a arquitetura eclética e o projeto civilizatório brasileiro, defendida na UFRJ em 2004
Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005
Saiba Mais: Bibliografia
BENCHIMOL, Jaime
L. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992.
FERREZ, Mare. O
álbum da Avenida Central. São Paulo: Ex Libris / João Fortes Engenharia,
1982.
PEREIRA, Sônia G.
A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade carioca.
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1992.
Saiba Mais: Link
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