“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Fidelidade, acima de tudo, à monarquia

Leopoldina passou por sacrifícios para conservar o poder e teve papel fundamental na Independência

Andréa Slemian

               Ainda hoje predomina no senso comum uma visão de D. Leopoldina como esposa dedicada a D. Pedro, que teria sofrido por não ser correspondida, constantemente traída pelo jovem imperador, obscurecida pela marquesa de Santos. Ao mesmo tempo, ela é vista como uma das principais responsáveis pela Independência, que teria apoiado o movimento devido ao amor que nutria pelo Brasil e por seus habitantes. Como se poderia explicar o papel de esposa abnegada a partir do afinco com que a imperatriz atuou politicamente nos idos de 1822 no Rio de Janeiro?    

               Sob o título de arquiduquesa, D. Carolina Josefa Leopoldina nasceu em 1797, filha de Francisco II e de D. Maria Teresa, da casa de Habsburgo, uma das mais tradicionais da Europa. Destacavam-se pela defesa do ideal monárquico absolutista, contra a Revolução Francesa de 1789 e a ascensão de Napoleão Bonaparte – fantasmas permanentes que aterrorizavam a ordem conservadora.

           A jovem Leopoldina, educada com esmero no ambiente ilustrado da Corte de Viena, demonstrava compreender o lugar que lhe fora destinado. Princesas como ela desempenhavam um papel importante na política de casamentos entre as famílias reais, o que assegurava acordos e pactos de alianças entre os Estados e a própria reprodução monárquica. O destino dos jovens príncipes e princesas já estava traçado desde muito cedo em função dos acertos políticos. A arquiduquesa sabia muito bem disso e, na época, esperava que chegasse a sua vez.  

           Antes de Leopoldina completar 19 anos, idade já considerada tardia para os matrimônios das princesas, o imperador Francisco escolhera para seu cônjuge o herdeiro da Coroa portuguesa que, junto com toda a Corte, cruzara os mares em 1807 e 1808, instalando-se no Rio de Janeiro. A escolha não foi por acaso: a Coroa portuguesa também era afeita aos ideais monárquicos absolutistas defendidos pelo governo da Áustria.

           Ainda que Leopoldina pudesse alimentar a expectativa de amar seu futuro esposo, a vontade de cumprir seu papel político de princesa acabaria falando alto. Ambos os sentimentos eram faces da mesma moeda. Ela sabia que, ficando solteira, continuaria a viver na Corte de Viena, e nunca sairia de sua condição de arquiduquesa. Na América, poderia vir a se tornar rainha, sonho de qualquer uma da sua condição. Foi por isso que mais tarde, já no novo continente, escreveria: “por mais difícil que seja a separação de minha família, meu destino é o Brasil e o cumprirei com prazer o mais rápido possível”. Como alento para a grande viagem que a esperava, havia a promessa de que a família real portuguesa ainda regressaria à Europa.

           Logo após a sua chegada em 1817, no entanto, as condições lhe pareceram muito adversas e a vida na nova terra, decepcionante. O clima, a dificuldade em encontrar livros e entretenimentos que fossem comparáveis aos teatros, concertos e saraus vienenses, aliados à dificuldade em achar interlocutores à altura de sua cultura, além de um desapontamento em relação a algumas pessoas da família real, seriam frequentemente notados por ela.

           Leopoldina logo encarou uma de suas obrigações como princesa: a de ter filhos, e assim servir como prolongadora da dinastia. Já em meados de 1818 ela engravidou da primeira filha, Maria da Glória, que nasceu no ano seguinte. Depois, vieram mais cinco rebentos, praticamente um por ano: D. João Carlos, o príncipe da Beira, em 1821 (morto no ano seguinte); D. Januária, em 1822; D. Paula Mariana, em 1823; D. Francisca Carolina, em 1824; e D. Pedro (futuro D. Pedro II do Brasil), em 1825.

           A atuação política de Leopoldina ganhou mais importância na Corte portuguesa no início da década de 1820. Isto porque ela tinha clareza analítica da realidade e consciência de sua obrigação em defender os interesses da Áustria e dos Habsburgo diante do futuro da América. Era parte de suas funções tecer relações políticas, o que muitas vezes fazia de forma bem ostensiva. No melhor sentido do termo, Leopoldina também foi estadista.

           O momento político era conturbado e favorecia a sua participação nos negócios da Corte. Em agosto de 1820, um movimento na cidade do Porto, em Portugal, adquiriu forma revolucionária e voltou-se contra a monarquia absolutista. No começo de 1821, instalou-se uma assembleia de eleição popular – chamada de Cortes – que iniciou seus trabalhos com o principal intuito de elaborar uma Constituição em moldes liberais. Contestava-se a permanência do monarca na América, exigindo sua volta e o fim do destaque dado ao Brasil no conjunto da política imperial. As Cortes tiveram ampla adesão no Império, forçando D. João VI, que se encontrava no Rio de Janeiro, a reconhecer o movimento constitucional em fevereiro de 1821. 

           Leopoldina reagiu a esses acontecimentos com extrema preocupação. Era claro que sua ação política sempre se voltou para manter a fidelidade à tradicional legitimidade monárquica, tão bem representada pelos Habsburgo na Europa, e que rejeitava qualquer tipo de movimento constitucional. O que mais a preocupava era o comportamento do marido que, na sua visão, simpatizava demais com as exigências liberais dos revolucionários. 

           A adesão às Cortes gerou um clima de instabilidade na cidade, principalmente por causa da falta de acordo acerca da residência real. Naqueles dias também se cogitava que o príncipe D. Pedro pudesse ir para a Europa, permanecendo o monarca no Rio de Janeiro. Leopoldina, que se encontrava em vias de ter seu segundo filho, fez manobras para que ela e o marido pudessem voltar ao velho continente. Chegou mesmo a escrever para o pai pedindo que intercedesse neste sentido. No entanto, em abril de 1821, D. João VI e sua esposa partiram para Lisboa, deixando D. Pedro como Regente no Brasil.

           A partida do rei reforçou as disputas entre os grupos que lutavam por maior espaço de poder na Corte, e que chegaram a causar violentos distúrbios urbanos. A princesa, que se encontrava no olho deste furacão, mesmo considerando arriscadíssima a medida de continuar na América por tempo indeterminado, concebeu que poderia ser esta a solução em nome da ordem monárquica no novo continente.  Dessa forma, desde meados de 1821, a princesa via como positiva a permanência de seu esposo no Brasil, demonstrando que, como conservadora que era, não abandonaria a defesa da legitimidade dinástica. 

           A princesa, que temia profundamente qualquer alteração radical na ordem política, foi partidária da Independência do Brasil, desde que ela não cedesse aos excessos liberais. Por isso, aproximou-se de José Bonifácio de Andrada e Silva e de grupos afeitos a ele que, em 1822, atuavam contra as Cortes e qualquer tipo de sublevação social. Foi quando apoiou a permanência do príncipe no Brasil – simbolizado no dia do “Fico” – passando a defender também a Independência, antes mesmo do marido. 

           Do ponto de vista de Leopoldina, a separação de Portugal teve outra incontestável vantagem: a conservação da monarquia. Com o desejo de “afastar o espírito popular das ideias republicanas”, chegou a considerar-se vitoriosa ao se tornar imperatriz do Brasil. Nessa condição, realizou mais uma de suas atribuições políticas: intercedeu diplomaticamente junto ao pai, em 1823, para que a Áustria aceitasse o Brasil como Estado independente e assumisse o papel de seu aliado. 

           É fato que a satisfação que demonstrou nos idos de 1822 nem sempre a acompanhou nos anos seguintes, já que a Independência, encabeçada pelo Centro-Sul do país, também gerou violentas respostas de outras províncias. Apesar disso e da constante reclamação pela falta de interlocutores na cidade, a imperatriz se manteve atenta à movimentação política até seus últimos dias de vida, no ano de 1826. Mesmo afirmando ser o Brasil seu lugar, não deixou de confessar ser um “sacrifício” viver na América, o que nos faz pensar que a tarefa de cumprir os desígnios de sua dinastia seria a única arma capaz de neutralizar o peso do seu sofrimento.

 

Andréa Slemian é professora da Universidade Federal de São Paulo e autora de Sob o império das leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834), (Hucitec, 2009).

 Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 107 - agosto de 2014

 Saiba Mais: Bibliografia

BOJADSEN, Angel (coord.). D. Leopoldina. Cartas de uma imperatriz. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.

JANCSÓ, I. Independência: História e Historiografia. Vol. 1. São Paulo: Hucitec/ Fapesp, 2005. 

LACOMBE, Américo Jacobina (trad.). Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Dona Leopoldina. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1997.

 Saiba Mais: Links

Retrato de um rei

Adeus, Europa

O Brasil do outro lado do espelho

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