Jean de Léry
Capítulo XV
De como os
americanos tratam os prisioneiros de guerra e das cerimônias observadas ao
matá-los e devorá-los.
Resta saber agora como
são tratados os prisioneiros. Logo depois de chegarem são não somente bem
alimentados, mas ainda lhes concedem mulheres (mas não maridos às
prisioneiras), não hesitando os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã
em casamento. Tratam bem o prisioneiro e satisfazem-lhe todas as necessidades.
Não marcam antecipadamente o dia do sacrifício; se os reconhecem como bons
caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das roças ou
apanhar ostras conservam-nos durante certo tempo; depois de os engordarem
matam-nos afinal e os devoram em obediência ao seguinte cerimonial.
Todas as aldeias
circunvizinhas são avisadas do dia da execução e breve começam a chegar de
todos os lados homens, mulheres e meninos. Dançam então o cauinam. O próprio
prisioneiro, apesar de não ignorar que a assembleia se reúne para seu
sacrifício dentro de poucas horas, longe de mostrar-se pesaroso enfeita-se todo
de penas e salta e bebe como um dos mais alegres convivas. Depois de ter comido
e cantado durante seis ou sete horas com os outros, é ele agarrado por dois ou
três dos personagens mais importantes do bando e sem que oponha a menor
resistência, é amarrado pela cintura com cordas de algodão ou de fibra de uma
árvore a que chamam vyire, semelhante à nossa tília. Deixam-lhe os braços
livres e o fazem passear assim pela aldeia, em procissão, durante alguns
momentos.
Não se imagine, porém
que o prisioneiro com isso se deprima. Ao contrário, com audácia e incrível
segurança jacta-se das suas proezas passadas e diz aos que o mantém amarrado:
"Também eu, valente que sou já amarrei e matei vossos maiores".
Cada vez mais feroz
volta-se para ambos os lados exclamando para uns e outros: "Comi teu pai,
matei e moqueei teus irmãos; comi tantos homens e mulheres, filhos de vós
outros tupinambás, a que capturei na guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes;
e ficai certos de que para vingar a minha morte os maracajás da nação a que
pertenço hão de comer ainda tantos de vós quantos possam agarrar".
Em seguida, após ter
estado assim exposto às vistas de todos, os dois selvagens que o conservam
amarrado afastam-se dele umas três braças de ambos os lados e esticam
fortemente as cordas de modo a que o prisioneiro fique imobilizado. Trazem-lhe
então pedras e cacos de potes; e os dois guardas, receosos de serem feridos,
protegem-se com rodelas de couro de tapiruçu e dizem-lhe: "Vinga-te, antes
de morreres". Começa o prisioneiro a atirar projéteis com todas as suas
forças contra os que ali se reúnem em torno dele, algumas vezes em número de
três ou quatro mil. E é desnecessário dizer que não escolhe suas vítimas.
Com efeito, estando eu
numa aldeia chamada Sariguá, vi um prisioneiro lançar uma pedra com tanta
violência na perna de uma mulher que supus havê-la quebrado. Esgotadas as
provisões de pedras e cacos e de tudo que o prisioneiro pode apanhar junto de
si, o guerreiro designado para dar o golpe, e que permanecera longe da festa,
sai de sua casa, ricamente enfeitado com lindas plumas, barrete e outros
adornos; e armado de um enorme tacape aproxima-se do prisioneiro e lhe dirige
as seguintes palavras: "Não és tu da nação dos maracajás, que é nossa
inimiga? Não tens morto e devorado aos nossos pais e amigos?"
O prisioneiro mais
altivo do que nunca, responde no seu idioma (maracajás e tupiniquins se
entendem reciprocamente) "pa, che tan tan ajucá atupavé"- "Sim,
sou muito valente e realmente matei e comi muitos".
Em seguida, para
excitar ainda mais a indignação do inimigo, leva as mãos à cabeça e exclama:
"Eu não estou a fingir, fui com efeito valente e assaltei e venci os
vossos pais e comi". E assim continua até que seu adversário, prestes a
matá-lo, exclama: "Agora estás em nosso poder e serás morto por mim e
moqueado e devorado por todos". [...] a vítima ainda responde: "Meus
parentes me vingarão".
Embora os selvagens
temam a morte natural, os prisioneiros julgam-se felizes por morrerem assim
publicamente no meio de seus inimigos, não revelando nunca o mínimo pesar [...].
Imediatamente depois de
morto o prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se
junto do cadáver e levanta curto pranto; [...] lamenta-se e derrama fingidas
lágrimas sobre o marido...
Todas as partes do
corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em
torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para
recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de
madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais
petiscos, lambem os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer “está muito bom”.
LÉRY,
Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
Vingança e
frenesi no banquete tupi
Ronald Raminelli
Depois de morto, a
carne era dividida entre músculos e entranhas. As partes duras eram moqueadas
(secadas) e consumidas pelos homens; mulheres e crianças ingeriam as partes
internas cozidas em forma de mingau. O matador, sempre masculino, não
participava do banquete, entrava em resguardo e trocava de nome. Com a
colonização, esse rito foi paulatinamente abandonado, provocando, segundo
Eduardo Viveiros de Castro, a perda de uma dimensão essencial da sociedade
tupinambá: a identidade. O antropólogo ainda comenta que a repressão ao
canibalismo não foi o único motivo para o abandono. Os europeus passaram a
ocupar o lugar e as funções dos inimigos, alterando a lógica do ritual.
O padre José de
Anchieta, jesuíta do século XVI, descreveu como as nativas untavam mãos, caras
e bocas com as gorduras desprendidas do "assado", colhiam o sangue
com as mãos e o lambiam. Para os religiosos da época, por certo com uma visão
depreciativa da mulher; a ingestão de carne humana deixava marcas profundas na
fisionomia das mulheres canibais que logo envelheciam. As rugas e os odores
malcheirosos tinham origem nesses "costumes abomináveis". A
decrepitude e a decadência físicas das velhas revelavam o "terrível
hábito" de comer carne e roer ossos humanos. Seios caídos, rostos
enrugados, corpos em franco processo de degeneração somavam-se a dentes mais do
que deteriorados. A alma pecadora provocava a degradação do corpo enquanto os
santos, quando mortos, exalavam odores de rosas. Esse preconceito, por certo,
dificulta nossa compreensão da real participação das mulheres no canibalismo,
embora nos permita entender a cultura europeia na época da conquista da América.
Canibalismo
em nome do amor
Mães devoravam filhos mortos, viúvas comiam os maridos, filhos
banqueteavam-se com os pais. Nem sempre a antropofagia originava-se da luta
entre rivais, poderia ser cerimônia fúnebre.
Segundo os cronistas do
século XVII, ao nascer uma criança, cortava-se o cordão umbilical com um caco
afiado e depois cozinhava-o para que a mãe o comesse juntamente com o pelico
(placenta). Caso uma mulher abortasse, imediatamente o feto era devorado, pois
alegavam que não poderiam dar-lhe melhor túmulo. Por certo, as entranhas de
onde veio - o corpo da mãe - eram preferíveis a cova na terra. Depois da morte
de uma criança, os índios choravam a perda, em seguida, cortavam a cabeça e
retalhavam o corpo, inserindo tudo em uma panela. Muitos parentes eram
convidados para o evento e juntos comiam a falecida. Ao termino da refeição,
punham -se a gritar e a chorar.
Os cronistas procuram
enfatizar as fronteiras entre a antropofagia amorosa tapuia e a vingativa tupi.
O dado permite entender a tela de Albert Eckhout de modo diverso. A índia
tarairiu carrega consigo partes do corpo humano e próxima à nativa encontrasse
uma cena de guerra. Em principio, a mão e o pé decepados, em poder da mulher,
pertenceriam ao inimigo morto no combate. Os relatos sabre a antropofagia
tapuia permitem, porem, traçar outras relações. Assim, as partes do corpo
pertenciam a um parente: irmão, marido ou filho da índia. O campo de guerra é o
local de morte de um guerreiro da tribo e a índia carrega seus restos mortais
para serem consumidos na aldeia em sinal de afeto e fidelidade.
RONALD
RAMINELLI é professor de História
Moderna, História da América e do Brasil Colonial na Universidade Federal
Fluminense (UFF) e autor de Imagens da colonização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
Saiba Mais - Filmes
No Brasil de 1594, um
aventureiro francês prisioneiro dos Tupinambás escapa da morte graças aos seus
conhecimentos de artilharia. Segundo a cultura Tupinambás, é preciso devorar o
inimigo para adquirir todos os seus poderes, no caso saber utilizar a pólvora e
os canhões. Enquanto aguarda ser executado, o francês aprende os hábitos dos
Tupinambás e se une a uma índia e através dela toma conhecimento de um tesouro
enterrado e decide fugir. A índia se recusa a segui-lo e após a batalha com a
tribo inimiga, o chefe Cunhambebe marca a data da execução: o ritual
antropofágico será parte das comemorações pela vitória.
Direção: Nelson Pereira
dos Santos
Ano: 1971
Duração: 84 minutos
Hans Staden
Hans Staden (Carlos Evelyn) é um
imigrante alemão que naufragou no litoral de Santa Catarina (1550). Dois anos
depois, chegou a São Vicente, concentração da colônia portuguesa no Brasil,
onde trabalhou por mais dois anos, visando juntar dinheiro para retornar à
Europa. Neste tempo em que viveu em São Vicente, Staden passou a ter um escravo
da tribo Carijó, que o ajudava. Preocupado com seu sumiço repentino após ter
ido pescar, Staden parte em sua procura, sendo encontrado por sete índios
Tupinambás, inimigos dos portugueses, que o prendem no intuito de matá-lo e
devorá-lo. É a partir de então que passa a ter que arranjar meios para
convencer os índios a não devorá-lo e permanecer vivo. O filme aborda os
primórdios da colonização, envolvendo o povo indígena Tupinambá, que então
habitava o litoral brasileiro. Conta a história do alemão capturado pelos
Tupinambás da Aldeia de Ubatuba, litoral de São Paulo, onde seria devorado em
ritual antropofágico. O projeto do filme começou em janeiro de 1996. Da
preparação para as filmagens constaram, entre outras coisas, os ensaios com os
atores para o aprendizado da língua Tupi e a construção de uma réplica de
Aldeia Tupinambá do século XVI em Ubatuba. Também foram rodadas cenas no Forte
Bertioga, em trilhas, rios, matas, em canoas no mar e em Lisboa, Portugal, na
Caravela Boa Esperança.
Direção: Luiz Alberto
Pereira
Ano: 1999
Duração: 92 minutos
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