A escravidão indígena começou logo no início da colonização e manteve-se
até meados do século XVIII, mesmo ilegal.
Tão logo fizeram os primeiros contatos na
costa brasileira, os portugueses começaram a carregar suas embarcações com
mercadorias extraídas da nova terra para serem levadas à Europa. Entre elas, o
pau-brasil, animais exóticos e... índios. Em pouco tempo tornou-se comum
encontrar escravos indígenas nas ruas de Lisboa e arredores, principalmente nos
serviços domésticos. Eles também eram vendidos na Espanha e em seus domínios.
Quando os portugueses deram início às
atividades produtivas no Brasil, a partir da criação das capitanias
hereditárias, decidiram utilizar os índios para o trabalho escravo. Sem
recursos para importar africanos e sem as condições necessárias para o emprego
de mão de obra assalariada, os indígenas acabaram sendo a base da formação da economia
colonial.
Transformá-los em escravos era uma tarefa
difícil e arriscada. A presença portuguesa no Brasil e a ocupação das novas
terras dependiam do apoio da população nativa. Para defender tão vasto
território, a Coroa precisava dos índios como aliados militares contra os
concorrentes europeus (no século XVI, especialmente os franceses). Eles também
eram úteis para combater grupos indígenas rivais que atacavam os incipientes
núcleos coloniais, além de fornecerem informações e alimentos indispensáveis à
sobrevivência em uma terra ainda mal conhecida.
Se a princípio chegou a existir um frágil
equilíbrio entre índios e portugueses, ele logo se rompeu. Os nativos acharam
bom negócio vender aos recém-chegados seus prisioneiros de guerra, antes utilizados
em atividades rituais e sociais (como a antropofagia). Quando, porém, o
apresamento de escravos tornou-se um negócio concorrido, a ânsia de obter mais
cativos desfez as alianças iniciais.
No início da década de 1540, por exemplo,
um certo Henrique Luís, traficante de escravos indígenas na costa, botou a
perder o contato amistoso construído até então com os índios da atual divisa do
Rio de Janeiro com o Espírito Santo. Tomado pela ambição de um lucro rápido e
fácil, ele sequestrou uma liderança nativa aliada e exigiu como resgate um
determinado número de escravos. O resgate foi pago, mas o comerciante, ao invés
de cumprir o acordo, entregou o chefe ao grupo rival, obtendo assim escravos de
ambos os lados. Os índios reagiram à altura da ofensa: tornaram a vida dos
portugueses impossível naquela região. Não foi à toa que, ao escrever a
sua História do Brasil no início do século XVII, frei Vicente
do Salvador comentou que não era possível obter um testemunho direto sobre a
ferocidade daqueles índios, pois os que por lá se aventuravam não retornavam
com vida para contar.
Muitos colonos apelaram a Deus e
escreveram ao rei, implorando por alguma atitude em relação à conduta
inescrupulosa dos traficantes. Não agiam movidos por fins humanitários, mas sim
a partir de cálculos estratégicos: se as coisas continuassem como estavam,
temiam que os portugueses fossem expulsos do Brasil. Para piorar, os franceses
se aproximavam cada vez mais dos índios e entravam na disputa pelo território.
A Coroa se viu então diante de um dilema: como escravizá-los e, ao mesmo tempo,
manter a sua “amizade”? A solução encontrada foi separar os índios aliados dos
índios inimigos.
Esta diferenciação já existia nas
primeiras instruções dos monarcas, que aconselhavam os navegadores a tratarem
com distinção os líderes “amigos” e evitarem conflitos. Mas a nova postura em
relação aos índios só começou a ser sistematizada em 1549, com a instalação do
governo-geral em Salvador. Coube ao primeiro governador, Tomé de Souza, regulamentar
a relação com os índios. Para isso, contava com dois importantes recursos: um
regimento elaborado pelo rei oferecendo garantias aos aliados e a presença dos
jesuítas, que chegaram na mesma época e passaram a ter voz ativa nas questões
indígenas.
O
estatuto dos índios na sociedade colonial reafirmava a liberdade dos aliados. É
bem verdade que eles eram obrigados a trabalhar para a Coroa e para os colonos,
mas deveriam ser remunerados e tinham uma série de outras garantias, como a
propriedade coletiva das terras dos seus aldeamentos. A escravização dos
índios, porém, continuava permitida em duas situações: o resgate e a guerra
justa. O primeiro fazia referência aos prisioneiros feitos pelos próprios
índios, destinados à antropofagia. Neste caso, algum colono poderia resgatar o
prisioneiro que, em retribuição, trabalharia algum tempo como escravo. Já a
guerra justa era um recurso empregado quando os índios atacavam os portugueses,
que então tinham o direito de defender-se e de escravizar os prisioneiros. Não
foram poucos, no entanto, as guerras justas e os resgates que não passaram de
um pretexto para a obtenção de escravos.
À medida que a economia colonial se
desenvolvia a partir de um produto destinado ao mercado internacional (o açúcar
no Nordeste), os colonos começaram a importar escravos de origem africana.
Assim, evitavam problemas com a lei e se beneficiavam da maior regularidade da
oferta desta mão de obra. Trabalhadores indígenas, escravos ou livres,
continuaram a existir, mas não formavam mais a base da produção.
No entanto, em regiões menos prósperas, os
índios ainda eram parte importante da mão de obra, por vezes a principal. Sem
outra alternativa de enriquecimento, os colonos lutavam pela manutenção dos
"seus índios", como então se dizia. Os paulistas alegavam que os
índios eram “um remédio para a sua pobreza”. Uma forma de mantê-los cativos era
a administração particular. Teoricamente, tratava-se de uma relação de troca:
os índios eram livres, mas prestavam serviços ao seu "administrador"
que, como pagamento, os instruía na fé católica. Na prática, muitas vezes
adquiria ares de escravidão, como quando os índios eram deixados em testamento
junto com as demais propriedades.
Em certas ocasiões, como ocorreu em 1640,
as tentativas de proibir definitivamente a escravidão indígena geraram
verdadeiras revoltas, obrigando a Coroa a negociar. Na época, os jesuítas
estavam empenhados em obter a proibição das expedições dos paulistas às missões
do Paraguai em busca de cativos, conhecidas como "bandeiras" e
completamente ilegais. Não foi difícil obter do papa e do rei a proibição
específica de tal atividade, o problema foi colocá-la em prática. Por conta
disso, os jesuítas foram sumariamente expulsos de São Paulo. No Rio de Janeiro,
por pouco não aconteceu o mesmo: quando os moradores ficaram sabendo da
notícia, dirigiram-se enfurecidos à residência dos padres. Alguns, mais
exaltados, gritavam: "Mata, mata!". Diante da ameaça, os jesuítas
recuaram e deixaram as coisas como estavam. Dessa vez, como em muitas outras,
os colonos ganharam.
O cenário só se modificou no final da
década de 1750, quando o secretário de Estado do Reino de Portugal, futuro
Marquês de Pombal, declarou a absoluta e definitiva liberdade indígena. O
Diretório dos Índios propunha a inserção dos índios na sociedade colonial em
condições de igualdade com os súditos de origem portuguesa. A Coroa pretendia
assim criar uma massa populacional capaz de ocupar o território brasileiro,
especialmente as áreas de fronteira em disputa com a Espanha. Por um lado, os
índios tiveram dificuldades em lidar com a nova realidade, que previa uma série
de mudanças culturais, como a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa. Por
outro, receberam bem certas medidas, como o acesso a cargos geralmente
restritos aos luso-brasileiros, como oficiais camarários e militares.
De maneira geral, os índios fizeram um uso
bastante ativo do Diretório em diferentes partes do Brasil. Muitos já possuíam
uma longa experiência com a sociedade colonial e sabiam utilizar os recursos
disponíveis a seu favor. Índios que estavam em situação de cativeiro irregular,
por exemplo, conseguiram obter a liberdade recorrendo à Justiça. Sua lenta e
progressiva conquista de direitos começava, de fato, ali.
Elisa Frühauf Garcia é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de As
diversas formas de ser índio (Arquivo Nacional, 2009).
Saiba mais - Bibliografia
MARCHANT, Alexander. Do
escambo à escravidão. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
MONTEIRO, John. Negros
da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz.
“Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do
período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. p. 115-132.
SCHWARTZ, Stuart. “Uma
geração exaurida: agricultura comercial e mão de obra indígena”; e “Primeira
escravidão: do indígena ao africano”. In: ___. Segredos internos:
engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
Saiba mais – Links
Saiba mais – Documentário
Histórias do Brasil a Série
Clique no nome do episódio para assistir:
Acreditando
tratar-se de um francês, um grupo de índios captura o alemão Franz Hessen. E
como os franceses são considerados inimigos da tribo, o alemão poderá ser
devorado pelos índios. A única saída para Franz é convencer Pero Dias, um
português ganancioso que vive entre os índios, a desfazer a confusão.
Saiba mais – Filmes
Como Era Gostoso o Meu francês
Direção:
Nelson Pereira dos Santos
Ano: 1971
Áudio:
Português / Tupi / Francês
Hans Staden
Hans Staden
(Carlos Evelyn) é um imigrante alemão que naufragou no litoral de Santa
Catarina (1550). Dois anos depois, chegou a São Vicente, concentração da
colônia portuguesa no Brasil, onde trabalhou por mais dois anos, visando juntar
dinheiro para retornar à Europa. Neste tempo em que viveu em São Vicente,
Staden passou a ter um escravo da tribo Carijó, que o ajudava. Preocupado com
seu sumiço repentino após ter ido pescar, Staden parte em sua procura, sendo
encontrado por sete índios Tupinambás, inimigos dos portugueses, que o prendem
no intuito de matá-lo e devorá-lo. É a partir de então que passa a ter que
arranjar meios para convencer os índios a não devorá-lo e permanecer vivo. O
filme aborda os primórdios da colonização, envolvendo o povo indígena Tupinambá,
que então habitava o litoral brasileiro. Conta a história do alemão capturado
pelos Tupinambás da Aldeia de Ubatuba, litoral de São Paulo, onde seria
devorado em ritual antropofágico. O projeto do filme começou em janeiro de
1996. Da preparação para as filmagens constaram, entre outras coisas, os
ensaios com os atores para o aprendizado da língua Tupi e a construção de uma
réplica de Aldeia Tupinambá do século XVI em Ubatuba. Também foram rodadas
cenas no Forte Bertioga, em trilhas, rios, matas, em canoas no mar e em Lisboa,
Portugal, na Caravela Boa Esperança.
Direção:
Luiz Alberto Pereira
Ano: 1999
Duração: 92
minutos
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