FÁBIO
KOIFMAN
Disseminado
pela mídia, o drama dos refugiados na Europa comove o mundo. As tentativas desesperadas
de fuga e a busca por abrigo em outros países geram relatos e imagens
aterradores. Tamanha quantidade de gente forçada a abandonar seu lar por conta
de conflitos e perseguições político-religiosas motiva comparações com o
período da Segunda Guerra Mundial. Naqueles tempos o mundo fechava as portas
aos refugiados, e a falta de solidariedade de então não ajudou a impedir um
número assombroso de mortes. Em fins da década de 1930, países de todo o mundo
adotavam políticas de restrição à imigração, o que acabaria contribuindo, por
omissão e indiretamente, para o Holocausto perpetrado pelos nazistas: cerca de
6 milhões de judeus se tornaram vítimas da política de extermínio de Adolf
Hitler. Inicialmente seu objetivo era “livrar a Europa” da presença judaica, ou
seja, expulsar todos os judeus do continente. A opção pela execução sistemática
veio em meados de 1941, e a chamada “Solução Final” – aniquilação total dos
judeus nos territórios ocupados pelo Estado alemão – somente em janeiro de
1942, depois que os nazistas tiveram a certeza de que nenhuma nação receberia
aqueles que desejavam expulsar.
Entre os países com fronteiras
fechadas aos judeus estava o Brasil. Se atualmente recebemos refugiados sem nos
pautarmos por critérios raciais, no tempo da Segunda Guerra a política
imigratória era seletiva e restritiva. A imigração era depositária das
esperanças de parte das elites em “melhorar a composição étnica da população”.
Excetuando as chamadas nações
indígenas e seus descendentes, os demais habitantes do Brasil têm ancestrais de
fora do continente – sejam eles africanos que vieram na condição de escravos ou
europeus exploradores e imigrantes. Ao longo de alguns séculos, os africanos e
seus descendentes se tornaram a maior parte da população. Mesmo antes do fim da
escravidão, no século XIX, o contingente de negros no país preocupava as elites
dirigentes, que se consideravam brancas e culturalmente ligadas às nações
europeias. O incentivo à vinda de imigrantes europeus nas últimas décadas
daquele século tinha como propósitos substituir a mão de obra escrava e
contribuir para o projeto de “branqueamento” da população.
Tal política teve continuidade
no início da República. O novo século trouxe a paulatina absorção de um
discurso de aparência científica para justificar projetos de evidente concepção
racista. Boa parte dos intelectuais atribuía o atraso do país à “má formação
étnica” dos brasileiros. Com o passar das décadas, acreditaram que o imigrante
branco se assimilaria aos habitantes não brancos e que essa miscigenação
tornaria a população mais clara e, portanto, mais próxima das nações
desenvolvidas.
Mesmo com diferentes pontos de
vista, os defensores das teses de branqueamento identificaram-se com o
eugenismo, que por aqui ganhou conotação e propostas específicas. Em 1929, o
movimento eugenista brasileiro definiu a imigração como boa solução para a
“melhoria da composição étnica do povo” e, graças ao seu lobby junto aos
constituintes de 1934, conseguiu fazer implantar na Constituição um regime de
cotas – cujo principal alvo de restrições eram os imigrantes japoneses. Ao
longo do primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), outros projetos dessa
natureza foram colocados em prática. Em discurso de 1932, o presidente mostrou-
se favorável ao “aperfeiçoamento eugênico da raça” para “apressar o progresso
do país”. Seu governo seguiria essas premissas, acabando por afetar o destino
dos refugiados judeus.
Com a ascensão do nazismo em
1933, a política imigratória passava cada vez mais a ocupar a cúpula do Estado.
E entre as justificativas para transformar os judeus em imigrantes indesejáveis
estava a “infusibilidade” dessas pessoas: eles seriam inassimiláveis, por não
contribuírem para o branqueamento da nação.
Como
os judeus viviam em diferentes países da Europa e o sistema de cotas
estabelecido em 1934 não especificava a origem étnica dos indivíduos, alguns
meses antes da instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, o governo
brasileiro produziu a primeira das Circulares Secretas destinadas a orientar a
restrição da emissão de vistos para estrangeiros de origem judaica. Até 1945,
outras circulares e decretos foram publicados com o fim específico de impedir
que estrangeiros considerados indesejáveis fossem recebidos na condição de
imigrantes.
Desde a eclosão da Segunda
Guerra Mundial, em 1939, a Europa vinha enfrentando o aumento da pressão pelo
recebimento de refugiados internos. Com o avanço dos exércitos alemães sobre o
continente, as ameaças e as perseguições perpetradas pelo nazismo espalhavam-se
velozmente, levando cada vez mais pessoas a buscar desesperadamente países que
lhes pudessem conceder refúgio e asilo.
No Brasil, mesmo com as restrições
impostas pelo Estado Novo, o contingente de estrangeiros que conseguiam entrar
no país (por vezes utilizando-se de vistos temporários) seguiu aumentando até
os primeiros meses de 1941. Favorecia-lhes o fato de o governo manter a
política imigratória de inspiração eugenista, afinal, novos imigrantes eram
considerados necessários ao desenvolvimento do país. A seleção implicava
aspectos subjetivos e pouco precisos, o que tornava complexa a tarefa dos
cônsules. E havia exceções que permitiam conceder vistos mesmo para os
estrangeiros considerados “infusíveis”. Imigrantes “capitalistas” – ou seja,
indivíduos com condições de realizar transferência de capital elevado – eram
bem vindos, assim como pessoas de comprovada formação acadêmico-científica, que
poderiam contribuir para o desenvolvimento do país.
Essas brechas, porém, geraram
críticas de setores do governo e da imprensa ao Ministério das Relações
Exteriores, apontado como incompetente na tarefa de restringir a entrada de
imigrantes indesejáveis. Se já a partir de 1938 o Brasil dera início a uma
política imigratória altamente restritiva e controladora, as fronteiras se
fechariam ainda mais com um decreto de 1941, que tirou do Itamaraty e passou
para o Ministério da Justiça a responsabilidade de emitir vistos temporários ou
permanentes. A partir de então, a imensa maioria dos que tentavam obter um
visto em qualquer representação consular brasileira recebia um não diretamente.
Raríssimos foram os diplomatas que se sensibilizaram com o drama dos refugiados
do nazismo e emitiram vistos a despeito da orientação do governo Vargas – caso
do embaixador brasileiro na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Aquele ano
também foi especialmente significativo em relação ao número de estrangeiros
impedidos de desembarcar nos portos brasileiros por serem judeus. Em um único
caso, no mês de outubro, cerca de 100 passageiros foram impedidos de
desembarcar. Vinham em dois navios, Cabo de Boa Esperança e Cabo de Hornos, e
tiveram que rumar para Buenos Aires e outros portos ao sul. Impedidos também de
desembarcar ali, iam ser devolvidos à Europa quando uma negociação
internacional logrou obter autorização para desembarque temporário na da ilha
caribenha de Curaçao.
Parte dos historiadores afirma que
a política imigratória adotada pelo Brasil antes e durante a Segunda Guerra
estaria influenciada pelo ideário nazi-fascista. Se isto de fato ocorreu, a
quebra das relações diplomáticas com o Eixo, em 1942, deveria ter produzido
mudanças no controle de entrada de estrangeiros no país. As evidências, no
entanto, indicam que isto não ocorreu. Ao mesmo tempo, com o início da “Solução
Final” adotada por Hitler, diminuiu drasticamente o número de pessoas ainda em
condições de solicitar asilo, pois a política nazista impedia que os grupos
perseguidos saíssem da Europa.
Novas levas de imigrantes
voltaram a procurar o Brasil após o fim da guerra. Mesmo com o término da
ditadura Vargas, a política imigratória continuava semelhante ao período do
Estado Novo: interessada em imigrantes considerados de boa fusibilidade. Os
judeus já não significavam um “problema”: com a derrota do nazismo, sair da
Europa não era mais uma questão de sobrevivência física e, a partir de 1948,
com a criação do Estado de Israel, ficou afastada qualquer possibilidade de
pressão internacional para que o Brasil recebesse mais refugiados daquele
grupo.
Oitenta anos depois do contexto
histórico que levou ao Holocausto, são muitas as diferenças do quadro atual. Ainda
assim, a responsabilidade humana em evitar a ocorrência de novos genocídios nos
chama a perceber continuidades: a persistência de preconceitos e intolerância
contribui para que, ainda hoje, muitos países do mundo se neguem a ampliar sua
política de recepção a refugiados.
FÁBIO KOIFMAN É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL
RURAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE QUIXOTE NAS TREVAS: O EMBAIXADOR SOUZA
DANTAS E OS REFUGIADOS DO NAZISMO (RECORD, 2002) E IMIGRANTE IDEAL: O
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E A ENTRADA DE ESTRANGEIROS NO BRASIL (1941-1945),
(CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2012).
Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA
BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016
Saiba Mais – bibliografia
BARROS,
Orlando de. Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um
episódio de intolerância no Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Cadernos
avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.
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SKIDMORE,
Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
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Saiba Mais – Filmes
Saiba Mais – Links
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