“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Ganhando as ruas

Carregando mercadorias, amolando facas ou vendendo comida nas calçadas da Corte, portugueses, italianos e espanhóis disputaram seu lugar com escravos e forros no mercado de trabalho informal
Juliana Barreto Farias
               Praça das Marinhas, tarde de 2 de maio de 1872. Mais de cinquenta "pretos ganhadores", armados de cacetes (um deles com uma foice), atacam 12 trabalhadores brancos que transportavam carne-seca das canoas e lanchas. Poucos dias antes, os pretos, que costumavam fazer as descargas ali no porto, haviam exigido um aumento de vinte réis. Mas os donos das carnes não só ignoraram as reivindicações, como logo contrataram brancos para o serviço. Inconformados com a nova situação, os negros fizeram uma "parede [greve], à moda [africana] da Costa da Mina", como noticiou o jornal Diário do Rio de Janeiro. A "luta renhida" que levou alguns homens ao mar só foi debelada com a chegada do capitão Marques Sobrinho e de praças da guarda urbana. Sete escravos e um liberto, tidos como os principais agressores, e mais cinco trabalhadores brancos, dentre os quais alguns portugueses, foram detidos e conduzidos para o xadrez da 2ª Delegacia Urbana.
                Desde meados do século XIX as cantigas de trabalho africanas estavam, pouco a pouco, sendo substituídas pelo ranger das carroças e pelos pregões de portugueses, espanhóis e italianos ocupados no transporte de cargas e na venda ambulante. Contrariando os discursos "imigrantistas" do período - que viam os europeus como a representação idealizada de uma mão-de-obra superior e impulsionadora do progresso -, boa parte dos imigrantes que aqui chegava, quase sempre adolescente, tinha pouco conhecimento dos códigos urbanos e uma precária qualificação profissional. Assim, muitos desses estrangeiros acabavam trabalhando em serviços antes desempenhados pelos cativos ganhadores nas ruas da cidade.
               Percorrendo as vielas da Corte, os chamados escravos de ganho vendiam frutas, legumes, peixes, louças e todo tipo de mercadoria que levavam nos cestos e tabuleiros à cabeça; transportavam sozinhos, ou em grupos, desde sacas de café até pesados pianos; ofereciam-se para levar pessoas em seus ombros nos dias de chuva ou ainda carregavam barris com os dejetos das residências para jogarem à noite no mar. Quase todos os estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro no século XIX se surpreenderam com a multiplicidade de ofícios exercidos por esses escravos. Eram trabalhadores indispensáveis, conforme registrou o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) - que viveu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831 -, já que o português, e também os senhores brasileiros, com seu "orgulho e indolência", consideravam desprezível quem carregasse um "pacote na mão, por menor que seja". A inglesa Maria Graham (1785-1842) estimou que praticamente a metade dos escravos ganhadores no Rio era composta de africanos recém chegados. Eles trabalhavam em grupos, capitaneados por um líder que marcava o tempo e os compassos ao som de chocalhos, marimbas ou peças de ferro, e, em coro, entoavam canções de sua terra natal.
               Esses cativos eram mandados às ruas por seus senhores e, ao final do dia ou a cada semana (o que parecia ser mais comum), deveriam entregar uma quantia - o jornal - previamente estabelecida; daí o nome escravo de ganho. Mas para isso antes era preciso encaminhar um pedido por escrito à Câmara Municipal, identificando o proprietário ou seu procurador legal, seu endereço, além de informações básicas sobre o escravo, ou escravos, como nome, nação africana ou idade. Era necessário ainda pagar um alvará e adquirir uma chapa metálica com o número de inscrição: se fossem encontrados trabalhando sem a chapa no pescoço, os escravos eram recolhidos pelas autoridades municipais. Entre os anos de 1851 e 1870, encontramos no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 2.653 licenças concedidas pela Câmara indicando a nacionalidade do ganhador. Desse conjunto, 2.225 eram africanos, e o maior grupo se constituía de procedentes da África ocidental, genericamente conhecidos como minas no Rio.
               Mas já na década de 1860, como destacava em seu relatório o estatístico Sebastião Ferreira Santos, "os transportes e outros misteres do tráfico e labutação do capital", até então desempenhados por cativos africanos, também eram exercidos por trabalhadores livres. Enquanto o número de escravos empregados no ganho ia se reduzindo a cada dia, os estrangeiros "quase todos portugueses" e sem licença - estavam invadindo as ruas da cidade e exaurindo os cofres municipais, já que se negavam a pagar pela autorização devida, como informava o contador municipal Antonio Francisco Porto, em ofício enviado à Câmara em 20 de junho de 1876. Três anos depois, a situação se agravara de tal forma que somente 39 indivíduos tiraram licença. Diante das providências reclamadas pelo contador Antonio Francisco Fortes Bustamante, logo surgiram as primeiras solicitações. Ao longo dos meses de julho e agosto de 1879, a Câmara já contava com 717 pedidos feitos por "ganhadores livres". Só em julho, quando a nova regulamentação foi instituída, 510 solicitaram inscrição. No ano seguinte, apenas três trabalhadores tiraram autorização e, em 1885, outros cinquenta. Depois desse período, não encontramos mais registros entre as licenças depositadas no Arquivo da Cidade.
               Assim como os escravos, esses homens livres deveriam apresentar um pedido por escrito, indicando seus dados pessoais, como nome, "nação" ou nacionalidade, endereço e atividade a ser exercida. Contudo, ainda era necessário que um profissional respeitado, proprietário e com boa condição financeira - quase sempre um comerciante fosse apresentado como fiador, confirmando a "boa conduta" do trabalhador e garantindo o pagamento das despesas que porventura pudessem surgir, caso fossem encontrados em situação irregular ou sem licença. Era comum que um espanhol ou português, depois de abrir o seu negócio - uma padaria ou um armazém de secos e molhados -, "chamasse" seus patrícios e ficasse responsável pelas atividades que eles exerceriam, e ainda lhes desse abrigo em sua casa.
               Entre 1879 e 1885, do total de 770 pedidos encaminhados, 394 (ou 51,5%) indicam a nacionalidade do ganhador. Dos 376 restantes (48,5%), 355 solicitações não fazem quaisquer referências ao país, região ou cidade de procedência, e tampouco apontam a cor dos indivíduos; os outros 21 são referidos como "pretos livres", "pretos libertos" ou "pretos forros" (decerto quase todos ex-escravos). Os imigrantes europeus constituíam 63,2% dos trabalhadores de rua que tiveram sua nacionalidade registrada dentre os quais se destacavam portugueses, italianos e espanhóis. Acompanhando as médias de imigração estrangeira para o Rio de Janeiro, os portugueses formavam o grupo mais estável e numeroso desde pelo menos a década de 1820, e também o maior contingente registrado entre os "ganhadores livres". Mesmo assim tinham que disputar - às vezes até com violência - as poucas oportunidades disponíveis, especialmente com os libertos minas, _ que ainda representavam um conjunto expressivo no mercado de ganho do Rio de Janeiro.
               Carregando cestos na cabeça ou sobre os ombros, e algumas vezes andando descalços (uma marca registrada da escravidão), esses estrangeiros perambulavam pela Corte, vendendo peixes, legumes, vassouras e outros objetos, amolando facas ou tocando animados realejos. Se foram muitos os imigrantes europeus que se tornaram prósperos comerciantes, proprietários ou funcionários públicos, não foram poucos os que não tiveram tanta sorte na nova vida construída do lado de cá do Atlântico.

JULIANA BARRETO FARIAS é mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, junto com Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, de No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, Prêmio Arquivo Nacional 2003.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. "Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872". In: Novos Estudos Cebrap, julho/1988, n. 21, p. 3056.
CRUZ, Maria Cecília Vel lasco. Virando o jogo: estivadores e carregadores no Rio de janeiro da Primeira República. Tese de Doutorado, USP, 1998.
SOARES, Luís Carlos. "Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX". In: Revista Brasileira de História, n. 16, 1988, p. 107-142.

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