“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Braços para fazer um país

A chegada de uma quantidade jamais vista de estrangeiros livres, no final do século XIX, marcou a vitória de um projeto de substituição da mão-de-obra escrava
Rodrigo Elias
               Na época da Independência (1822), a imigração estava na pauta dos intelectuais e políticos do país. E por três motivos principais: ocupação do território; necessidade de soldados para garantir a posse do país; e o estímulo ao trabalho livre, considerado superior ao escravo, conforme os princípios iluministas defendidos por parte da elite intelectual luso-brasileira (os filósofos iluministas do final do século XVIII defendiam, geralmente, as liberdades individuais e acreditavam no progresso, que poderia ser alcançado através da razão). Um dos propagadores dessas ideias foi José Bonifácio (1763-1838), que teve alguma ascendência sobre d. Pedro I (1798-1834). Hipólito da Costa (1774-1823), que publicou em Londres entre 1808 e 1822 o Correio Braziliense, também advogava para o Brasil um modelo de colonização baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. Com este espírito foram fundados núcleos no sul do país, entre eles, o mais bem-sucedido, a colônia alemã de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul (1824).
            Mas a iniciativa não prosperou muito, principalmente porque a base da mão de obra brasileira era escrava e o tráfico negreiro representava um excelente negócio para agricultores e comerciantes brasileiros. Ainda que fosse considerado ilegal desde 1831, este comércio só aumentou até 1850, quando nova lei foi publicada para pôr fim a uma das maiores migrações forçadas da história do Ocidente. Apenas na segunda metade do século XIX, com a iminente extinção da escravatura, o trabalho livre como motor da produção brasileira passou a ser seriamente considerado.
               Mas, se por um lado aparecia no Brasil uma forte pressão política antiescravista, por outro, a Europa (e, pouco depois, a Ásia) começava a conviver com grande excedente populacional. Melhorias na agricultura e queda nas taxas de mortalidade ao longo do século XIX contribuíram para que ocorresse o que os estudiosos chamam de "transição demográfica", ou seja, a taxa de crescimento da população aumentou drasticamente. Como no caso português, que, de uma taxa de 0,16% ao ano em 1820, passou para 1% em 1890. Um salto de mais de 600%, que não foi acompanhado pela estrutura produtiva: entre 1840 e 1890, a produção agrícola da Europa apenas dobrou e o contingente populacional empregado subiu de 50 para 66 milhões (pouco mais de 15%). Ao mesmo tempo, porém, a mobilidade das pessoas foi facilitada pelas ferrovias e embarcações a vapor.
               Do lado de cá do oceano, os braços livres escolhidos pelos políticos, intelectuais e produtores para levar adiante um projeto de civilização eram, obviamente, braços europeus. Havia, sim, iniciativas para trazer africanos livres e colonizar o território, mas o projeto vitorioso foi o de uma elite romântica que considerava os imigrantes da Europa os únicos capazes de construir uma nação civilizada e moderna.
               A grande experiência nessa transição do trabalho escravo para o livre, ainda em meados do século XIX, pode ser atribuída a Nicolau de Campos Vergueiro (1778-1859). Grande proprietário de terras (e de escravos) em São Paulo, também foi regente, senador, ministro, e o primeiro fazendeiro de café a utilizar imigrantes europeus em suas lavouras. Trouxe famílias alemãs, portuguesas e suíças na década de 1840, adotando o modelo de parceria, também conhecido como "sistema Vergueiro": o colono assinava um contrato comprometendo-se a pagar os gastos com seu transporte; ficava obrigado a trabalhar na lavoura de café, cujos ganhos eram divididos entre ele e o fazendeiro; e o excedente de mantimentos (que o colono podia plantar para sua subsistência) também era dividido com o dono da terra. O sistema floresceu por algum tempo, e São Paulo chegou a ter, em 1857, cerca de sessenta colônias de imigrantes, sobretudo alemães e suíços. Mas a forte mentalidade escravocrata dos produtores brasileiros expressa em contratos cada vez mais prejudiciais aos imigrantes - provocou a interrupção das colônias de parceria ainda no final daquela década.
          Para sorte dos produtores do Sudeste brasileiro, na década de 1860, a Europa viveu uma conturbada situação econômica e social. A Revolução Industrial, iniciada no século XVIII na Inglaterra, chegara tardiamente a alguns países, como a Alemanha e a Itália, que também enfrentavam, nessa mesma época, processos de unificação política. Como havia acontecido em outros países, os pequenos produtores e trabalhadores italianos foram extremamente prejudicados pela introdução das máquinas no processo produtivo. Isto sem falar no aumento dos impostos sobre a terra e o consequente endividamento dos camponeses. Segundo a historiadora Zuleika Alvim, essas condições, aliadas à melhoria nos transportes, disponibilizaram no mercado mundial "verdadeiras hordas de camponeses sem terra e desocupados". O que, ainda segundo a historiadora, era essencial para o próprio capitalismo europeu: eliminava um grande contingente populacional que pressionava os centros urbanos e, ao mesmo tempo, beneficiava a "pátria-mãe" com o dinheiro enviado do exterior pelos parentes expatriados.
               Nesse mesmo período, o governo brasileiro tomou parte na imigração europeia, embora sem umapolítica bem definida sobre a questão. O objetivo maior, ao menos para setores mais liberais do governo, era ocupar áreas de baixa densidade demográfica, facilitando o estabelecimento de colonos no Paraná e em Santa Catarina. O sistema adotado foi o de núcleos coloniais. A elite cafeicultora, preocupada com o suprimento de trabalhadores para suas grandes unidades produtoras de café, não gostou da ideia. E sua preocupação cresceu ainda mais com a lei de 1871, que indicava o fim próximo da escravidão.
               Assim, enquanto o governo imperial se esforçava para estabelecer núcleos coloniais baseados no trabalho familiar e na pequena propriedade - em 1875 o país possuía 89 desses núcleos, dos quais 66 no sul do país -, a elite econômica, bem organizada politicamente, conquistava a vitória para seu projeto de imigração. Os mais influentes produtores de café, concentrados na província de São Paulo, tomaram a dianteira nesse processo, com um objetivo bem simples: obter braços para a lavoura. E conseguiram que o Império autorizasse, ainda em 1871, a vinda de imigrantes subvencionados, isto é, com despesas pagas pelos governos imperial e provincial. Leis paulistas da década de 1880 destinavam verbas públicas exclusivamente para o transporte de imigrantes. O poder dessa elite na política de imigração do governo seria ainda maior após o golpe republicano de 1889, quando o Estado assumiu quase que totalmente os custos com a importação de trabalhadores estrangeiros.
               O caso italiano é bem significativo do fenômeno no período conhecido como "grande imigração". Para se ter uma dimensão, atualmente a população da Itália é de 58 milhões de habitantes, e no período entre 1860 e 1940 nada menos que 20 milhões de italianos deixaram seu país em busca de outras paragens. E de 1870 a 1920, 1,4 milhão deles escolheram o Brasil, ou seja, 42% dos mais de 3 milhões de estrangeiros que vieram para o país nessa época.
          Mas eles não eram propriamente "italianos". A Itália, até sua unificação (iniciada em 1861 e completada em 1870), era constituída por Estados independentes, com culturas, climas, economias e até línguas diferentes; eles eram, na verdade, vênetos, calabreses, toscanos, sicilianos, piemonteses... Embora tenham sido identificados ao longo de décadas como "o imigrante", viraram italianos no Brasil. Os que vieram do norte da península, em especial de Vêneto, eram, geralmente, pequenos proprietários de terra, meeiros e arrendatários, com famílias extensas de até 15 pessoas - e não os miseráveis retratados em boa parte da ficção. Alguns sulistas, como os calabreses, também chegaram nas mesmas condições, ao menos até meados da década de 1880. Mas a situação mudou no final do século, com o predomínio da imigração de braccianti, trabalhadores braçais totalmente destituídos de capital que vinham principalmente do sul da Itália. Os agentes brasileiros de imigração na Europa, ligados aos nossos produtores de café, foram os grandes responsáveis pela arregimentação desses braços.
               Os portugueses também representaram parte significativa da imigração para o Brasil nesse período. De acordo com o historiador Joaquim da Costa Leite, cerca de 1,1 milhão de lusos cruzaram o Atlântico entre 1855 e 1914 para se estabelecer no Brasil, o que significa cerca de 90% de todos os emigrantes de Portugal na época. Como os portugueses possuíam uma tradição de migração para o Brasil que remontava ao século XVI, quando escolhiam este destino já sabiam as condições que encontrariam, fosse por meio de um parente, um vizinho ou um amigo já emigrado. Some-se a isto as melhorias nas informações (correios, telégrafos, jornais) e nos transportes, pois desde 1851 havia uma linha regular de vapor de Lisboa para o Brasil. Segundo Costa Leite, "a própria noção de uma era de emigração de massas exclui a ideia de riscos excepcionais que apenas seriam aceitáveis para um número reduzido de aventureiros". Poderíamos atribuir esta noção não apenas aos portugueses, mas também aos italianos, espanhóis, alemães e, a partir de um certo ponto, aos japoneses.
               Parte dos imigrantes que aqui chegaram, como vimos, formaram núcleos coloniais, sobretudo durante o período imperial, enquanto o governo ainda possuía alguma força para contrariar, ao menos em parte, os interesses da elite cafeicultora. Surgiram então núcleos como os alemães de Blumenau, Joinville, Santo Ângelo e São Lourenço, por exemplo. Os italianos também fundaram na mesma região núcleos prósperos, como Bento Gonçalves, Caxias e Garibaldi.
           Entretanto, com a proclamação da nova República dos antigos barões do café, a imigração subvencionada pelo Estado voltou-se, quase que exclusivamente, para a grande lavoura. Vencia, assim, o projeto de substituição da mão de obra escrava pela livre. Livre, mas com ressalvas: o regime de colonato, ao qual estavam submetidos por contrato, limitava o movimento desses trabalhadores e suas famílias, tornando-os dependentes das fazendas.
               Outros imigrantes foram parar nas grandes cidades. Ajudaram a formar o operariado brasileiro e atuaram no setor de serviços de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo (eram italianos, por exemplo, 90% dos trabalhadores industriais de São Paulo em 1901). Os centros urbanos, embora oferecessem precárias condições de sobrevivência no início do século XX, eram preferidos em relação às lavouras, principalmente por causa da mobilidade. Para os estrangeiros, a cidade era um lugar de oportunidade.
               No campo, nas colônias ou nas cidades, os braços estrangeiros foram colocados ao lado dos brasileiros (nem sempre de forma pacífica) nas tarefas do dia a dia. Fazendo o Brasil nas lavouras, fábricas, comércio e nas artes, milhares e milhares de homens e mulheres aprenderam a ser brasileiros, mas também de alguma forma se tornaram, por conta da saudade e do apego às tradições (ancestrais ou inventadas), mais italianos, portugueses, libaneses, espanhóis, japoneses...

RODRIGO ELIAS é mestre em História Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2, nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
FAUSTO, Bóris (org.). Fazer a América. 2a. ed. São Paulo: Edusp, 2000.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital, 1848-1875.10a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeiro e origens da indústria no brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1976.

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