“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 28 de junho de 2020

Em nome do progresso

Uma sociedade criada por figuras ilustres na Corte lutou pela imigração europeia como forma de preparar o Brasil para o trabalho livre e "aprimorar" os nacionais
Andréa Santos Pessanha
               Dentre as acusações feitas à Sociedade Central de Imigração, nenhuma é, portanto, mais infundada, do que a falta de patriotismo; no entanto, repetem-na incessantemente, sob todas as formas, por saberem a impressão que sempre ela causa nos espíritos menos preparados para a solução dos grandes problemas sociais." Acusada de estrangeirismo, um artigo publicado na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 28 de março de 1885, defendia a instituição, afirmando não existir ideal mais patriótico do que o seu. Mas qual era o significado de patriotismo para um grupo que propagava a imigração europeia?
               A Sociedade Central de Imigração (SCI) foi fundada em novembro de 1883, no Rio de Janeiro, com a presença do imperador d. Pedro II (1825-1891). Até o fim de sua atuação, em 1891, o jornal oficial A Immigração cumpria a tarefa de divulgar os ideais de uma sociedade formada por homens de renome na Corte, como seu vice-presidente Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899), o visconde Henrique Beaurepaire-Rohan (1812-1894) e o abolicionista e engenheiro negro André Pinto Rebouças (1838-1898), que exibia nos jornais do Rio de Janeiro seu engajamento na SCI e na campanha a favor da presença de europeus. Para Rebouças, o primeiro critério para a hierarquização da sociedade brasileira deveria ser cultural e não racial - argumento fortalecido pela trajetória de sua família. O desenvolvimento material e intelectual do ex-escravo seria alcançado com a propriedade da terra e com o exemplo da superior cultura europeia.        
                 Paralelamente à apologia do "imigrantismo", a SCI defendia a emancipação, argumentando que a escravidão envergonhava o Brasil perante as demais nações, além de dificultar a atração e a permanência de imigrantes. Era preciso ainda modificar a forma com que os proprietários tratavam e viam os trabalhadores - enquanto existisse o cativeiro, essa mudança não seria possível. O objetivo principal da Sociedade Central de Imigração era o progresso social e econômico brasileiro por meio do trabalho e do exemplo dos imigrantes europeus, que somente sairiam de seu local de origem na esperança de se tornarem proprietários. Para a sociedade, o trabalho assalariado ou o sistema de parceria poderiam atrair imigrantes num primeiro momento, mas logo apareceriam as insatisfações, como já tinha ocorrido na província de São Paulo, onde famílias inteiras de imigrantes se retiraram das fazendas.
               A SCI existiu em um momento em que as elites intelectuais debatiam a transição do trabalho escravo para o livre, com um discurso de favorecimento da mão de obra imigrante em detrimento do trabalhador nacional. Segundo essas elites, a liberdade era compreendida pelos cativos como oposição ao trabalho, confundindo-se com "vadiagem"; enquanto que o imigrante europeu, já habituado ao trabalho livre, teria valores positivos em relação à labuta. Dessa forma, dois modelos de trabalhadores foram construídos. De um lado, os negros, dotados de todos os vícios do passado escravista - a Abolição não implicaria aperfeiçoamento imediato, pois apenas deixava-os livres para ameaçar a "boa sociedade". De outro, estavam os imigrantes, que simbolizavam a prosperidade econômica e social, pois possuíam as virtudes necessárias ao regime de trabalho livre e desejavam obter riqueza através dele. Essas argumentações faziam parte de um projeto de "embranquecer" e europeizar a sociedade brasileira. Eram ideias que circulavam com a entrada, no Brasil, de teorias científicas que pretendiam a constituição de uma nação com hierarquias baseadas em critérios raciais. O médico e biólogo francês Louis Couty (1854-1884) foi uma importante referência teórica para a SCI, com sua tese a favor da imigração europeia como meio de "aprimorar" o povo brasileiro.
               Negros, brancos, mulatos, índios e chineses transformaram-se então em objetos de estudo. A ciência, baseada na noção de raça, classificava e estabelecia o potencial de desenvolvimento e as características dos indivíduos a partir de seus traços biológicos. No final do século XIX, na iminência da abolição da escravatura, discutir a questão racial significava, para as elites, debater a questão nacional, já que o progresso do país dependeria da composição étnica de seu povo. Assim, a defesa da imigração não se restringia às necessidades de mão de obra, mas também a um ideal de construção de uma nacionalidade. O Brasil que se pretendia formar era livre e de cidadãos brancos. Os nacionais (mestiços, negros e brancos pobres que não tinham a cultura das elites) eram desqualificados como trabalhadores e cidadãos, mas o futuro deles poderia ser promissor através de uma "regeneração" biológica e cultural. Para a SCI, a imigração branca cumpriria, portanto, duas funções de caráter econômico e social: uma diretamente voltada para a construção do Brasil desejado, por meio do ideal de imigrante-cidadão; outra, indiretamente ligada ao progresso do país, pelo exemplo que "as raças mais ativas e inteligentes" ofereceriam aos nacionais.
               Em 1884, no Parlamento, Taunay fez uma representação, em nome da SCI, propondo medidas de incentivo à entrada de europeus, como a concessão da cidadania brasileira a esses colonos; liberdade religiosa (com destaque para o registro civil, o casamento civil obrigatório e os cemitérios livres); o estímulo à pequena propriedade; o apoio do governo imperial nos serviços de recepção e alojamento dos imigrantes; e também a criação de um imposto territorial, para tornar onerosa a terra improdutiva e resolver o problema de concentração da propriedade fundiária. O imposto estimularia a venda, a baixo custo, ou o arrendamento de terrenos ociosos para os imigrantes. O texto apresentado por Taunay reforçava a importância da pequena propriedade não só para a imigração, mas também para a reforma geral do sistema de trabalho no Império, como um modo de preparar o Brasil para o fim da escravidão.
               Para a SCI, a inferioridade racial não se limitava aos negros. Tanto que, em julho de 1889, após a abolição da escravatura, a entidade dirigiu contundente ofício ao visconde de Ouro Preto (1837-1912), presidente do Conselho de Ministros, contra a vinda de chineses, apesar de ser o desejo de muitos fazendeiros brasileiros. Segundo a sociedade, os chineses não estimulariam o progresso do país, pois se submeteriam às condições de trabalho desumanas impostas pelos proprietários e não teriam como objetivo a propriedade territorial. Pior: eram considerados mais atrasados na linha evolutiva que os ex-cativos brasileiros, não dariam o exemplo de valorização do trabalho, de vida regrada, de preocupação com a poupança e com a prosperidade material - características atribuídas aos imigrantes europeus. Os chineses ainda seriam o oposto do ideal de imigrante-cidadão, de imigrante-proprietário imaginado pela sociedade e, no máximo, representariam uma máquina de trabalho, nunca um elemento de civilidade e progresso.
               A Sociedade Central sustentava, portanto, um projeto de imigração exclusivamente europeia, que, além de substituir a mão de obra escrava, construiria a nacionalidade brasileira. Para seus integrantes, essa era a solução para os grandes problemas sociais do período e combinava perfeitamente com patriotismo, já que, através da valorização do trabalho e da contribuição de "raças mais evoluídas", os nacionais buscariam o caminho do desenvolvimento individual, o que levaria posteriormente ao progresso do país.

ANDRÉA SANTOS PESSANHA é coordenadora do curso de História da UNIABEU, doutoranda em História na UFF e autora do livro Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 24 - outubro 2005

Saiba Mais: Bibliografia
AZEVEDO, Célia Mana Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1987.
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra Representações do brasileiro. São Paulo:
Annablume, 2003.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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