Obra-prima da literatura brasileira, o livro em que Euclides da Cunha narrou a aniquilação de Canudos passa por uma revisão que evidencia certos exageros
Walnice Nogueira Galvão
No dia 5 de outubro de 1897 disparou-se o último tiro da Guerra de Canudos, tombando os defensores que restavam. Euclides da Cunha, em Os sertões, registra o fato nas páginas que encerram o livro: "Eram quatro apenas, um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". A imagem, crua e singela, é um bom apanhado do que foi aquela guerra de extermínio, em que um exército equipado com a mais moderna tecnologia bélica massacrou um bando de excluídos, que só dispunham de sua fé e de sua coragem. Testemunha ocular dos combates, Euclides ficaria marcado para sempre pelo que assistira, e ao escrever o que chamou de "livro vingador" extravasou todo o seu horror. Em estilo caracterizado por uma retórica exacerbada e grandiloquente, incorreu algumas vezes em exageros que visavam ao engrandecimento do ocorrido, assim impregnando-o de uma aura de emoções. São portanto antes hipérboles que propriamente distorções propositais da verdade, aqueles deslizes do factual que encontramos em Os sertões.
A cobertura da guerra já era controversa à época. Um exame dos jornais - veículo de opiniões infundadas, papéis forjados, cartas falsas, notícias plantadas - mostra que se tratava de uma vasta operação de desinformação. Seu objetivo era convocar os brasileiros para a defesa da jovem República, travestindo Canudos de foco de uma conspiração restauradora da monarquia, com ramificações nacionais e internacionais.
Logo depois, foram publicados vários livros relatando a campanha, em geral de militares comba-tentes. De lá para cá, a massa de estudos que se acumulou perfaz uma montanha, que continua crescendo. Muito se ganhou e muito se aprendeu com os trabalhos posteriores, sobretudo os que procuraram fugir ao que José Calasans chamou de "gaiola de ouro" de Os sertões. É inestimável o papel desse historiador na renovação de tais estudos, lançando mão da metodologia da história oral e desencavando documentos, quando, a partir dos anos 50, encetou uma série de viagens para entrevistar sobreviventes da guerra. Conseguiu identificar figuras de proa, como por exemplo Pedrão, auxiliar direto de Antônio Conselheiro. Pesquisou aspectos menos conhecidos do episódio, esclarecendo a atitude dos vigários da região, que iam do apoio ao mais violento repúdio; a etimologia da palavra jagunço; os inícios da peregrinação do líder místico; a composição de seu séquito; os caminhos que palmilhou; as trajetórias dos principais canudenses; a poesia popular que se originou daqueles eventos; e inúmeros outros. A partir de sua atuação, não é de surpreender que a Guerra de Canudos tenha passado por um rigoroso processo de revisão.
O abastado Antônio Vilanova era
o principal comerciante do lugar. Ele e João Abade, homens de confiança do
Conselheiro, estavam acima de todos os demais. O poder por assim dizer civil
pertencia ao primeiro, enquanto o militar cabia ao segundo, que era o "chefe
do povo" e o "comandante da rua". Era este quem liderava a
Guarda Católica, ou Companhia do Bom Jesus, uma falange de doze apóstolos
uniformizados que constituía o estado-maior de Antônio Conselheiro. João Abade
pereceria nos últimos dias da luta. O outro irmão Vilanova, Honório, décadas
mais tarde prestaria depoimento que é uma das melhores fontes para um ponto de
vista interno ao arraial. Pedrão, outro membro da Guarda Católica, também
escapou, e regressaria muito depois, inválido das pernas ao fim de uma vida de
lutas. Consciente de seu valor, ao ser entrevistado por Calasans, declarou:
"Faz pena um homem como eu morrer sentado".
Bandeira branca
Se muitos canudenses fugiram do arraial pela estrada
de Uauá, outros engrossaram as fileiras de uma rendição coletiva. Três dias
antes da guerra terminar, Antônio Beatinho e mais dois companheiros apareceram
no acampamento do exército para negociar a rendição. Após combinarem os termos,
regressaram à cidadela e de lá escoltaram um triste cortejo de trezentas
pessoas, mulheres, crianças e velhos, reduzidos a esqueletos. Entre elas,
nenhum homem válido. Em represália, os generais mandaram degolar os
negociadores. O cortejo rendeu a melhor e mais famosa foto de Flávio de Barros,
autor da cobertura visual da última expedição.
O heresiarca
Assim como não pretendia ser d.
Sebastião, o Conselheiro tampouco era heresiarca, o que Euclides também poderia
ter conferido no livro de sermões. Ao contrário, mantinha-se dentro da mais
estrita ortodoxia, tanto é que se recusava a ministrar os sacramentos -
batismo, confissão, casamento, eucaristia, extrema-unção - por não ser
sacerdote ordenado. Seus sermões veneravam Jesus Cristo e a Virgem Maria, além
de referirem temas da doutrina católica ou passagens significativas da Bíblia,
como a história do dilúvio, a travessia do Mar Vermelho, etc.
Como ninguém ignora, o Brasil é
o maior país católico do mundo, mas o catolicismo não é sua religião oficial
desde que a República, destronando a realeza, separou Estado e Igreja, assim
criando um dissídio que seria uma das motivações da Guerra de Canudos. Antônio
Conselheiro, e não só ele, desaprovou a medida. O sacramento do matrimônio, até
então monopólio da Igreja, perdeu o caráter sagrado, tornando-se civil e
profano; os cemitérios também foram retirados da alçada da Igreja. O governante
deixou de ser um imperador de direito divino, e passou a ser qualquer um que
fosse eleito. Tudo isso desgostou o Conselheiro e seus prosélitos, como se pode
constatar nos sermões, nos quais ataca tanto a República quanto os ateus, os
protestantes, os maçons e os judeus, por serem inimigos da Igreja.
D. Sebastião no Belo Monte
No Brasil, afora manifestações menores, um surto de sebastianismo deu-se no episódio de Pedra Bonita, no interior de Pernambuco, quando um grupo de crentes entregou-se à penitência para fazer d. Sebastião surgir de dentro de uma laje, à custa de sacrifícios humanos. O surto só seria debelado mediante a intervenção das forças armadas, em 1838.
A presença do sebastianismo em Canudos é mais discutível. Embora Euclides o afirme, não chegou a examinar os sermões de Antônio Conselheiro. À vista deles, certamente verificaria que o beato não aspirava a tal papel. Dois manuscritos contendo sermões, cópias de textos da Bíblia e resumos foram cobiçados como troféus pelos vencedores, e deixam claro que o líder jamais tentou assumir a personalidade do rei português. Mas boa parte de sua congregação nele via d. Sebastião. Euclides fala dos folhetos e papéis dos canudenses com versinhos e profecias, em muitos dos quais d. Sebastião está presente. O que é confirmado por outros autores e pelos jornais da época.
Numância e Massada
Afonso Arinos, que viria a ser o
primeiro a publicar um livro sobre Canudos, o romance Os jagunços,
lembrara episódio similar no jornal que dirigia, O Comércio de São
Paulo. Em editorial intitulado "Numância", celebrara a intrepidez dos
defensores da cidade espanhola que resistira às legiões romanas, em 133 a.C.
Ante um assédio que se prolongava, à beira da inanição, mandaram avisar aos
atacantes que se entregariam no dia seguinte. Quando estes penetram as
muralhas, deparam com uma cidade em chamas, em que todos os cidadãos se jogavam
no fogo. Arinos acentua que o caso de Canudos é pior, porque foram soldados
compatriotas que atearam fogo ao arraial e assistiram as mães com filhos ao
colo se lançarem no incêndio.
Outro exemplo amplamente
conhecido é o da fortaleza de Massada, em Israel. Quem procede ao relato é
Flavius Josephus, o historiador judeu tornado cidadão romano, no primeiro
século da era cristã. Os rebeldes hebreus, devotos de uma seita religiosa,
resistiram por dois anos à ofensiva romana. No fim de suas forças,
suicidaram-se e incendiaram o reduto, para não cair vivos nas mãos do inimigo.
A demografia da cidadela
Bastante questionadas hoje em
dia são as dimensões do arraial e a cifra de seus habitantes. O laudo oficial
do exército, que Euclides acata, computou 5.200 casas. Dada a fecundidade das
famílias sertanejas e a presença dos parentes mais velhos, a estimativa modesta
de cinco pessoas por domicílio daria um total de 26 mil habitantes. O que faria
de Canudos a segunda maior cidade da Bahia, logo depois de Salvador; e isso numa
época em que mesmo São Paulo mal atingia 200 mil pessoas.
As dúvidas incidem sobre a
possível inflação da contagem, querendo o exército vangloriar-se de uma vitória
arduamente conquistada. Nos croquis que Euclides esboçou em sua caderneta de
campo, vê-se com clareza uma povoação bem menor. Supõe-se que a mão do
engenheiro reproduziria com rigor científico o que tinha diante dos olhos, tal
como aprendera a fazer na Escola Militar, onde estudara desenho.
Sabe-se que Canudos se avolumou quando
seus habitantes clamaram por socorro, despachando emissários e entregando-se ao
proselitismo epistolar. Em verdade, a afluência começa assim que os nômades,
ante o recrudescimento da perseguição, se tornam sedentários após vinte anos de
perambulação, em 1893. Batem então em retirada, para se isolar e se fortificar
no Belo Monte, nome bíblico que dão a Canudos.
Por isso, as cartas dos
canudenses a parentes e amigos se traduzem afinal em recrutamento de
correligionários. Disputadas como pilhagem nas cinzas da cidadela arrasada, são
transcritas aqui e ali pela imprensa ou pelos livros sobre a guerra. Euclides
anotou várias na caderneta de campo. Os missivistas não pediam propriamente
socorro, mas alertavam ser aquela a última chance de "salvar a alma",
porque o fim do mundo se avizinhava e só se redimiria quem estivesse dentro do
perímetro de Canudos. Um escreve que o Belo Monte será "a barquinha de
Noé", no Dia do Juízo. Outro convoca voluntários para morrer aos pés do
Bom Jesus. Essas são as cartas de dentro.
Bem mais abundantes e
reveladoras são as cartas de fora. Dão conta de que a região estava se
despovoando, com bandos de gente que passava de mudança rumo à cidadela,
carregando seus trastes. Fonte preciosa, integram a correspondência passiva do
poderoso barão do Império e oligarca republicano, Cícero Dantas Martins, barão
de Jeremoabo.
Além de tudo o que tramou ou nos
bastidores ou publicamente no Parlamento, o barão revelou-se um grande publicista ao assumir a missão de inflamar
os ânimos com relação ao perigo que Canudos encarnava. Possuindo nada menos do
que 59 fazendas na Bahia e duas em Sergipe, deve ter sido o maior proprietário
fundiário dos sertões. Pode-se calcular o porte e extensão da rede de relações
de parentesco, compadrio e clientela que manejava, com articulações nas esferas
municipal, estadual e nacional.
À luz de sua correspondência,
compreende-se como a destruição de Canudos foi sendo passo a passo arquitetada
e quanto esforço exigiu o desmantelamento do apoio logístico de que o
Conselheiro desfrutava na região. Tal apoio não provinha só de miseráveis, mas
incluía fazendeiros, comerciantes e gente de posses.
Boa parte dessa correspondência
dá voz ao alarme dos fazendeiros perante o carisma do líder, que lhes
arrebatava os braços da labuta em suas terras. "Seguiu daqui e destas
imediações esta semana para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um
horror!!...", escreve um. Outro avisa: "Temos muito breve de ver este
sertão confiscado por ele e seu povo; pois está com mais de 16 mil pessoas;
povo este miserável tudo que foi escravo, tudo que é criminoso de todas as
províncias". O primeiro temor dos fazendeiros era de perder, como de fato
estavam perdendo, a mão de obra, que abandonava o trabalho nas fazendas e
refluía para o arraial. O segundo temor era de que suas propriedades fossem
invadidas pelos canudenses, que assim tomariam a iniciativa de implementar a
reforma agrária.
O restante se dispunha em desordem,
numa aglomeração de casebres improvisados, ostentando só uma porta e nenhuma
janela, edificados às pressas, por gente que para ali acorrera para entregar-se
à ascese enquanto aguardava o fim do mundo. De pau a pique ou taipa, o conjunto
inteiro tinha a mesma cor da terra de que era feito. Segundo as testemunhas, o
Belo Monte desnorteava. Na expressão de Euclides: "...como se tudo aquilo
fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos..."
Atualmente, as esperanças para
elucidar o enigma de suas dimensões estão depositadas na pesquisa arqueológica
que vem sendo realizada dentro do projeto do Parque Estadual de Canudos, criado
em 1986, sob a responsabilidade da Universidade Estadual da Bahia. Várias
escavações já foram feitas, visando ao levantamento de trincheiras, ossadas,
utensílios domésticos e material bélico. Resgataram-se a Igreja Velha, a Igreja
Nova e a Fazenda Velha. Certamente, um dos pontos de interesse dessas pesquisas
será a determinação do número de domicílios do arraial, permitindo um cálculo
melhor de sua demografia.
CUNHA, E. da. Os
sertões. Ed. crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1998.
GALVÃO, W. N. No
calor da hora - A Guerra de Canudos nos jornais. 3a ed. São Paulo: Ática, 1997.
_____ Império do
Belo Monte - Vida e morte de Canudos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
GALVÃO W. N. e
PERES F. da R. (Orgs.). Breviário de Antônio Conselheiro. Salvador: Editora da
UFBA, 2002.
Saiba Mais: Link
Especial – Canudos - Viver
e morrer em Belo Monte