A legislação
trabalhista, a partir dos anos 1930, atrelou sindicatos ao governo mas não
conseguiu paralisar o movimento operário brasileiro.
Fernando
Teixeira da Silva
Atingido
pela bala disparada por um policial, morria o sapateiro espanhol de 21 anos
Antonio Martinez no dia 9 de julho de 1917. Dois dias depois, sob a fria garoa
paulistana da manhã, um oceano humano de 10 mil pessoas saiu do bairro do Brás,
passou pelas ruas centrais de São Paulo e acompanhou o corpo de Martinez até o
Cemitério do Araçá. O silêncio do cortejo soava como uma advertência, apenas
rompido à beira do túmulo, onde se revezavam oradores discursando em português,
italiano e espanhol. A morte do sapateiro acendeu um rastilho de pólvora.
Greves que pipocavam em algumas fábricas têxteis, de móveis e bebidas se
espalharam nos quatro dias seguintes, em meio a tiroteios, saques e barricadas.
Oficialmente, uma menina e um grevista morreram nos confrontos com a polícia.
Cerca de 50 mil trabalhadores cruzaram os braços.
A greve geral de 1917 foi uma convulsão
operária sem precedentes. Suas raízes estavam no trabalho fatigante, insalubre
e perigoso das fábricas, mas a principal reclamação dos grevistas era o custo
de vida. Na falta do pão, "remediavam com o saque dos depósitos de
farinhas", justificou o anarquista italiano Gigi Damiani. Enquanto isso,
exportadores armazenavam gêneros de primeira necessidade à espera da alta dos
preços no mercado internacional.
Líderes anarquistas, sindicalistas
revolucionários e um socialista formaram o Comitê de Defesa Proletária que
elaborou uma pauta de reivindicações, algumas das quais exigiam a interferência
do poder público, contrariando o princípio anarquista de rejeição do Estado. Os
operários conquistaram aumento de salários de 20%, o compromisso dos patrões de
não demitir os grevistas e a promessa do governo estadual de libertar os presos
e legislar por melhores condições de vida e trabalho. Em comícios, os operários
cantaram vitória.
Depois
disso, uma febre associativa tomou conta da cidade, fazendo proliferar novos
sindicatos, ligas de bairros, centros de cultura e jornais operários. Mas a
euforia durou pouco. Seguiram-se prisões, expulsão de trabalhadores
estrangeiros, fechamento de sindicatos e desrespeito dos empresários ao acordo.
Em 1919 e 1920, uma onda grevista se ergueu em várias cidades do país,
levantando reivindicações semelhantes às de 1917. O medo provocado por essas
greves gerou dupla reação nos anos seguintes: contínua repressão e a formulação
de leis sociais e trabalhistas.
O conflito de classes deveria dar lugar à
harmonia entre trabalhadores e patrões, e o governo seria capaz de reconhecer e
dar o que os trabalhadores aspiram: esses foram os princípios alardeados pelo
regime instaurado com a chamada revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas
no poder. No dia 1° de maio de 1943, após mais de uma década de intensa ação
legislativa, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) vinha à luz. Apresentada
como a legislação social mais avançada do mundo, regulamentava, em seus 922
artigos, o trabalho de várias categorias profissionais e regia disputas
individuais e coletivas entre trabalhadores e patrões, excluídos os
trabalhadores rurais.
Uma lei de 1931 instituiu a figura do
sindicato único por categoria e município, submetido ao reconhecimento do
Ministério do Trabalho, que podia intervir nas suas atividades, afastando
direções e líderes "indesejáveis", como anarquistas e comunistas. Os
sindicatos deveriam ser órgãos de "colaboração de classes" e
"elemento de cooperação no mecanismo dirigente do Estado", segundo
Vargas.
Os
anarquistas se mantiveram na defesa do sindicalismo antiestatal e
descentralizado. Já os comunistas, depois de longo combate contra o atrelamento
sindical, passaram a agir como oposição dentro dos sindicatos, visando ganhar
suas diretorias e torna-los órgãos de luta contra o Ministério do Trabalho. Porém, a ditadura do Estado Novo, instaurada
em 1937, selou a vitória do corporativismo sindical.
Para muitos trabalhadores, a entrada do
Brasil na Segunda Guerra Mundial em favor dos aliados, em 1942, significou
suspensão de direitos e despotismo patronal. Nas indústrias de "defesa
nacional", como as têxteis, os operários, promovidos a "soldados da
produção", deviam dar provas de patriotismo: trabalhar no mínimo dez horas
por dia e adiar as férias. Fomentar greves e abandonar o emprego eram crimes de
deserção, sob pena de dois a seis anos de prisão. Mesmo assim houve insubordinação
nas "indústrias-quartéis".
Com a crescente insatisfação dos
trabalhadores, a emergência de grupos de oposição ao governo e a entrada do
Brasil na guerra, Vargas passou a dar sinais de afrouxamento do regime. No
início de 1945, marcou eleições para o final do ano, legalizou o PCB e anistiou
presos políticos. Sua política de aproximação ao trabalhador incluiu a criação
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o esforço de fortalecer o
sindicalismo corporativista.
Na euforia que marcou o fim da guerra, em 1945,
milhares de trabalhadores deixaram suas casas e foram para as ruas fazer o V da "vitória da democracia"
contra o fascismo. E durante dois anos deixaram também as fábricas. Enorme onda
de greves, organizadas por comissões de operários, levou de roldão diretorias
de sindicatos que se recusavam a apoiá-las. Muitas categorias negociaram
diretamente com os patrões, ignorando e atropelando as instituições
corporativas, como ocorreu na greve dos empregados da Light, em São Paulo, no
final de 1945.
Em cidades com grande concentração
operária, o Partido Comunista (PCB) conquistou importantes vitórias eleitorais.
Em dezembro de 1945, por exemplo, foram eleitos 15 deputados federais
comunistas, dos quais nove eram operários. Apesar de pedirem aos trabalhadores
para "apertarem os cintos", evitando greves em nome da democracia e
da união nacional, os militantes do PCB acabaram participando ativamente dos
movimentos sociais, como na greve nacional dos bancários, em janeiro de 1946.
O objetivo dos trabalhadores no pós-guerra
era mandar um recado: seria cada vez mais difícil governar sem levar em conta a
presença e os interesses da classe operária. Mas o presidente Dutra (1946-1950)
não aceitou esse recado, intervindo nos sindicatos e colocando o PCB novamente
na ilegalidade.
O movimento operário só se reergueu no
segundo governo Vargas (1951-1954), em meio à crescente carestia. Em março de
1953, 60 mil trabalhadores ocuparam as ruas de São Paulo na passeata da
"panela vazia". As insatisfações culminariam na Greve dos 300 Mil.
Entre março e abril, têxteis, metalúrgicos, vidreiros, gráficos, entre outros,
paralisaram suas atividades por 27 dias. Após vários confrontos com a polícia,
aceitaram a proposta da Justiça do Trabalho de aumento salarial de 23%, muito
abaixo dos 60% reivindicados.
Mas para o movimento operário a greve foi
um êxito. O índice de sindicalização aumentou, surgiram novos líderes oriundos
das comissões de fábricas, direções sindicais contrárias à greve foram
marginalizadas e, como decorrência, foi criado o Pacto de Unidade
Intersindical, que chegou a aglutinar cerca de cem sindicatos.
A Greve dos 300 Mil é também um marco dos
novos desafios que seriam enfrentados pela classe operária. Intensa migração de
trabalhadores das regiões rurais, sobretudo do Nordeste para as cidades, 3
milhões de operários industriais, siderurgia, indústria automobilística,
Petrobrás, usinas hidrelétricas gigantescas e inchaço das cidades formam um
novo cenário. A partir de meados dos anos 1950, desenvolvimento com
nacionalismo se torna a grande bandeira das esquerdas, que defendem o fortalecimento
da burguesia nacional e do Estado no setor produtivo, o controle do capital
estrangeiro e melhor distribuição de renda.
Alianças entre os comunistas e a esquerda
do PTB estruturam um movimento operário nacional. O IV Encontro Sindical Nacional,
em 1962, reuniu cerca de seiscentas organizações sindicais e criou o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT). Com isso, foi de encontro às proibições da CLT. Além de reivindicações por melhores condições
de vida e trabalho, o CGT se lança em campanhas por reformas: agrária,
previdenciária e universitária, entre outras.
Com João Goulart na Presidência da
República (1961-1964), o movimento sindical lutou para participar do governo do
país, chegando a influenciar na escolha de ministros comprometidos com suas
causas. A oposição falava em 'cubanização' do país, República Sindicalista e
ateísmo comunista. "BASTA!" gritavam as manchetes de jornais.
No dia 1º de abril de 1964, um golpe
civil-militar depôs João Goulart. Na esteira da tomada do poder, o novo governo
interveio nos sindicatos, destituindo líderes, prendendo militantes (alguns dos
quais acabariam torturados e mortos) e dando início a um processo de controle
rigoroso do movimento sindical por 14 anos.
Mas, numa manhã de maio de 1978, operários
da Scania entraram na fábrica de São Bernardo do Campo (SP) e não ligaram as
máquinas, dando início a mais uma grande onda grevista. Naquele ano, foram
registradas mais de cem greves. Nos dez seguintes, quase 4 mil. O "novo
sindicalismo", que enfrentava a ditadura agonizante, defendia o fim da
estrutura sindical corporativista e colocava o movimento operário no foco da
política nacional, projetando nomes como o do hoje presidente Luiz Inácio Lula
da Silva.
Desde os anos 1990, os trabalhadores
enfrentam novos desafios, por conta da alta concorrência em escala global,
liberação dos mercados, redução dos gastos sociais do Estado e desmantelamento
da legislação social. Em vários setores, sobretudo nos que empregam tecnologias
da informação, o trabalho manual é cada vez menos necessário. Mas os atuais
debates em torno das anunciadas reformas trabalhistas e sindicais estão aí para
atestar que os trabalhadores e suas organizações ainda ocupam parte importante
das agendas políticas.
Fernando
Teixeira da Silva é professor de História
na Universidade Estadual de Campinas e na Universidade Metodista de Piracicaba,
e autor de Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras.
Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
Fonte: Revista Nossa História - Ano II
nº 19 - Maio de 2005
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