O arraial de Conselheiro tinha hierarquias e personagens estratégicos
para a rotina e para a guerra
Ao fim de
uma série de protestos contra os novos impostos republicanos, enfrentando a
polícia baiana em vários lugarejos, Antonio Conselheiro e seus prosélitos
instalam-se em Canudos em 1893. A peregrinação de duas décadas chega ao fim.
Eles vão entrincheirar-se e fortificar-se no fundo do sertão, no alto das
serranias, como se tivesse soado um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos não eram
desertas e ali já existia um povoado assim chamado, à margem do Vaza-Barris, um
rio intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e sobreviveram de uma
parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para o preparo de farinha
e cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, criando cabras. Assim se fundou
o Belo Monte, nome bíblico dado à cidadela que ergueram como baluarte contra a
República instaurada em 1889, sobrepondo-se à Canudos preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua principal
na praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua das Casas Vermelhas, destacando-se
do conjunto devido à cor das telhas. As duas igrejas defrontavam-se de dois
lados da praça. A primeira era a de Santo Antônio ou Igreja Velha, consagrada
em 1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom Jesus ou Igreja Nova, de
maiores proporções, não chegaria a ser terminada. A capelinha do povoado
anterior passou a ser chamada de Santuário, preservando o altar e abrigando
imagens de santos. Num quartinho anexo morava Conselheiro, e ali seria
sepultado.
Esse era o centro ao redor do qual,
gradativamente, se ergueria a aglomeração de casebres. A construção em taipa ou
pau a pique – barro reforçado com galhos – tornava a cidadela indistinguível,
na mesma monotonia parda da caatinga. O conjunto, sem um mínimo de cuidados de
urbanização – como arruamento, calçadas, esquinas e muito menos saneamento ou
água encanada – viria a formar “um labirinto inextricável”, nas palavras de
Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial predominava a
religião. Como de hábito no sertão e em geral no interior do país, era uma
religião festiva, em contraste com a austeridade preconizada pelo líder, que
não tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes organizavam suas vidas
em torno de dois ofícios religiosos diários, à madrugada e à noitinha, e periodicamente
assistiam aos conselhos do Peregrino, com data previamente marcada, para os
quais vinha gente até de longe. Canudos tornou-se um centro de romaria,
atraindo crentes para pedir audiência ao Conselheiro e fazer doações.
À medida que a guerra se avizinha, começa a
acorrer gente de todos os quadrantes da região. Multiplicam-se as cartas dos
canudenses chamando parentes e amigos para virem em seu socorro. Muita gente
pelo sertão abandona seus pagos para acudir Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no séquito: gente
de posses havia se livrado de tudo para acompanhar o Peregrino. Embora não
fosse uma comunidade exatamente igualitária – havendo distinção visível entre
mais ricos e mais pobres, dada pela aparência das casas – preservavam-se ali
traços de igualdade. O mais marcante era a inexistência de propriedade privada
da terra. Quem chegasse podia erguer sua choça sem pagar nada a ninguém.
Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos em donativo pelo Conselheiro, eram repassados
aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse funcional,
alguma estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por assim dizer, era a
Guarda Católica. Constituída por 12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o mais
porque formava o quadro de imediato apoio a Conselheiro. Os guardas andavam
uniformizados, armados e municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se como
sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia. Em seguida vinha a
Companhia do Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais numerosa, contando de 1.000
a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas
chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia Benta) cuidava da administração da
residência e do bem-estar do Conselheiro. Ele quase não comia. Apenas o
suficiente para manter-se vivo, mas observando total abstinência.
O arraial contava com uma professora, de
modo a não descurar da educação das crianças. O próprio Conselheiro frequentara
escola, sabendo ler, escrever e até rudimentos de latim. Um secretário, Leão
Ramos, atendia ao líder como escriba. Havia um curandeiro, Manuel Quadrado,
perito em remédios silvestres e em simpatias. E José Félix, o Taramela, servia
de criado e homem de confiança, como chaveiro e guarda das igrejas. Tornou-se
renomado por sua fantasia sem peias, que o levava a inventar casos mirabolantes
sobre a subida aos céus de tantos canudenses mortos, que afirmava ter
presenciado.
Como a rotina incluía a guerra, destacou-se
um “chefe militar”: João Abade, encarregado supremo das operações bélicas e da
Guarda Católica, chamado de Chefe do Povo e Comandante da Rua. Paralelamente,
havia um “chefe civil”, Antônio Vilanova, abastado comerciante responsável pela
boa ordem da comunidade.
Houve combatentes ilustres. Como o
pernambucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua imaginação tática ao
elaborar ardis guerrilheiros. Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário
dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da Guarda Católica e um dos 12
apóstolos. O historiador José Calasans ainda o conheceu, nos anos 50, e
com ele teve muitas conversas, que granjearam sua admiração. Inválido das
pernas, observou certa vez: “Faz pena um homem como eu morrer sentado”. Antônio
Beatinho ficou conhecido porque negociou a rendição de 300 pessoas, entre
mulheres, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias dos combates. É do
resultado dessa negociação a mais famosa foto da guerra, mostrando a multidão
andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação foi recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já residia em
Canudos antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma fazenda nas cercanias
e era dono de loja. Seu filho e xará, com um punhado de valentes e as bênçãos
do pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de Matadeira, pertencente ao
exército, tombando morto ali mesmo. É um dos episódios mais referidos da
campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o sineiro
Timotinho, que desafiava o exército insistindo em tocar o sino da Igreja Velha
todas as tardes, quando a fuzilaria das tropas inimigas se concentrava nele. Um
dia, dois tiros de canhão acertaram a torre, que desmoronou, jogando o sino à
distância e aniquilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que labutaram na
arquitetura sacra do Conselheiro – que durante as duas décadas de peregrinação
capitaneou a construção ou o reparo de igrejas, cemitérios, calçadas e açudes
por toda aquela região – o nome mais importante que a história reteve é o de
Manuel Faustino, mestre de obras e entalhador que presidiu aos trabalhos da
Igreja Nova. Antônio Fogueteiro, como a alcunha indica, fabricava fogos, a que
o povo do sertão em geral, e o de Canudos em particular, era muito
afeiçoado.
Os dois irmãos Ciriaco, os combatentes
negros Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas após o fim da guerra.
Servindo de guia em Canudos ao historiador José Calasans (1915-2001),
tornaram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio Conselheiro
substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de polícia, reunindo em sua
pessoa o poder das três autoridades que mandavam no sertão. Por trás de sua
figura estava o esforço admirável que uma população carente de tudo desenvolveu
para se organizar, resistindo à opressão e à exploração, além de inventar
formas alternativas de vida em comum.
Com a guerra, o dia a dia do arraial foi
totalmente degradado. Belo Monte, cujos habitantes passavam a vida em oração e
penitência para “salvar a alma”, conforme diziam, foi transformado em antevisão
do Inferno. Em vez do Paraíso a que todos aspiravam, com as promessas das
bem-aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o ferro e o fogo dos canhões,
o incêndio do casario e a degola indiscriminada.
Walnice Nogueira Galvão é
professora emérita da FFLCH-USP e autora de O império do Belo Monte. Vida e
Morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
Saiba Mais - Bibliografia
ARAS, José. Sangue de
irmãos. Cordel. Feira de Santana, BA: EMAGRAE, 2009.
BOMBINHO, Manuel Pedro das
Dores. Canudos, história em versos – Relato inédito de testemunha ocular. Org.
de Marco Antônio Villa. São Carlos: EdUFSCar, 2002.
CALASANS, José.
Cartografia de Canudos. Coleção Memória da Bahia. Salvador, BA: EGBA, 1997.
VILLA, Marco Antonio
(Org.) Canudos, história em versos de Manuel Pedro das Dores Bombinho.
(Hedra/Edufscar/Imprensa Oficial, 2002).
Saiba Mais - Música
CD Canudos (Gereba)
CD Matuto do Cocorobó
(Bião de Canudos)
CDs Toques de Canudos e Do
Belo Monte ao Cocorobó (Banda de Pífanos de Bendegó)
Saiba
Mais – Link
Saiba Mais - Filme
Paixão e Guerra no Sertão de
Canudos
No documentário de Antônio
Olavo, Paixão e Guerra no Sertão de
Canudos, faz um resgate da história de Canudos, principalmente, com
depoimentos de parentes de Antônio Conselheiro e de filhos dos combatentes,
além dos relatos de pesquisadores (José Calazans, Manoel Neto, Sérgio Guerra e
Edmundo Muniz) introduzindo várias interpretações sobre os acontecimentos
históricos, que são associados a um conjunto de canções e cenários que ilustram
a narração do filme, na voz de José Wilker.
Direção: Antonio Olavo
Ano: 1993
Duração: 78 minutos
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