Na defesa de interesses políticos e disseminando preconceitos, imprensa
ajudou a construir o massacre anunciado em Canudos.
“Opinião pública” era algo muito limitado
nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de analfabetos
e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios viriam a
transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso significa
que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam à margem
das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública através
da cultura oral.
Para o pequeno grupo de indivíduos
letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de diferentes
orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamente
crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e Conselheiro
não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram título de
colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios comerciais – como
o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por pessoas, recentemente
chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último ataque, um grupo de
valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembrou-se de correr a
pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi
comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
Num tempo em que fotografias impressas em
jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha valor de
mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era reconhecível
mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por um oficial
do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus são três
nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e concretizar o
inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos da lei,
do trabalho e da moralidade”.
Mais do que uma “revolta” contra a
República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos de
poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de
atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do
Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados
pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região,
José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital
nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta
entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os
“jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de
forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência
política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não
por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser
completamente aniquilado.
A função “crítica” da imprensa se esgotava
na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol da defesa de
princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma população
total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada), circulavam
cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram gonçalvistas,
enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com restrições) o
Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os seguidores do
Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais e soldados
contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de medo. Intensificaram
a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da fundação do arraial,
desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de documentos – na sua
grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques de canudenses a
fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador fazia de
Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada por
seus adversários.
A partir de março de 1897, no entanto, os
dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um forte
discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota da
terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira
César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso da
conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via
toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não
houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império
transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade
é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de
São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis
liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura
modernizadora e positivista no Brasil.
O Nordeste, região de primazia econômica do
primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam em decadência
econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de Canudos
reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se usava
pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos “jagunços”),
incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/ De norte a
sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao de Antonio
Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
Os lugares do evento midiático “Canudos”
foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura da imprensa
nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente de guerra,
escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para serem
publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser transportadas a pé
ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por telégrafo a Salvador (ou
de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de onde enfim seguiam para o sul.
Na época, ainda desconhecido do público fora do seu estado natal, o engenheiro
Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses correspondentes de guerra.
Quando Euclides chega a Canudos, o
discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um ano,
já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente Prudente
de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de famílias
sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os relatos de
Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na percepção
dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram
considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente
reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por
muitos.
Já não foi a imprensa a protagonista desta
mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados científicos, como
o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série de crônicas publicadas
em livro por oficiais e civis participantes da guerra e livros romanceados,
como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços, de Manuel Benicio,
correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os Sertões, de Euclides,
foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra.
Assim como Canudos propicia debates até
hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no Brasil enquanto
formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que se encontram nas
suas periferias social, econômica e cultural.
Dawid Danilo Bartelt é doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do
escritório Brasil da Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e
Nação (EdUSP, 2009).
Saiba mais – Bibliografia
GALVÃO, Walnice Nogueira.
No Calor da Hora. A Guerra de Canudos nos Jornais, 4ª expedição. 3. ed. São
Paulo: Ática, 1994.
LEVINE, Robert. O Sertão
Prometido. O Massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1995.
LIMA, Nísia Trindade. Um
Sertão Chamado Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
Saiba
Mais – Link
Nenhum comentário:
Postar um comentário