Espalhado por sindicatos e organizações de trabalhadores, movimento
contestador abriu suas próprias escolas no Brasil, com pedagogia inovadora.
José Damiro Moraes
Criadores de sindicatos, instigadores de greves, contestadores do
capitalismo. A partir do final do século XIX, os anarquistas marcaram presença
na cena pública nacional, liderando as primeiras mobilizações operárias do
Brasil. E para disseminar sua ideologia revolucionária, lançaram mão de uma
arma especial: a educação.
Não poderia ser uma educação
qualquer, é claro. Seus princípios contrariavam os valores burgueses e primavam
pela solidariedade e pela radical liberdade do indivíduo na gestão de sua
própria vida. É o que expressa a origem etimológica da palavra “anarquia” – do
grego an (negação) e arquia (governo). “Aquele que botar as mãos sobre mim,
para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo”, resumiu
o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), um dos fundadores do
anarquismo.
Os ideais do movimento político
chegaram ao Brasil trazidos principalmente por imigrantes espanhóis e
italianos. Organizando-se em sindicatos e federações, sua principal atuação se
dava junto à nascente classe dos trabalhadores urbanos. Mas num país com 85% de
analfabetos, era difícil fazer circular a propaganda anarquista nos meios
populares e operários. Jornais e boletins tinham que ser lidos em voz alta para
que os métodos de luta fossem apreendidos. Para ampliar a conscientização e a
participação dos trabalhadores, era preciso criar espaços educativos próprios.
Nas escolas anarquistas, os operários e suas proles teriam acesso ao
conhecimento formal – devidamente temperado pela ideologia do movimento. Com o
apoio financeiro de sindicatos e federações, elas se espalharam pelo país.
Entre 1885 e 1925, cerca de quarenta instituições
de ensino anarquistas surgiram no Brasil. A primeira de que se tem notícia foi
a Escola União Operária, em Porto Alegre (RS). Em Fortaleza (CE) funcionou a
Escola Germinal (1906); em Campinas (SP), a Escola Livre (1908); no Rio de
Janeiro, a Escola Operária 1° de Maio, e em São Paulo, as Escolas Modernas nº 1
e nº 2 (todas de 1912), entre muitas outras. Em 1904, tentou-se até uma
experiência de ensino “superior” (complementar à formação dos trabalhadores),
com a criação da Universidade Popular de Ensino (Livre), no Rio. Ela contava
com a colaboração de vários militantes e de literatos simpatizantes do
movimento, como Elísio de Carvalho, Fábio Luz, Rocha Pombo, Martins Fontes,
Felisberto Freire e José Veríssimo. Mas, ao contrário das escolas, durou poucos
meses.
Uma resolução do primeiro congresso
da Confederação Operária Brasileira (COB), em 1906, determinava que toda
associação operária deveria sustentar uma escola laica para os sócios e seus
filhos. “Ninguém mais do que o próprio operário tem interesse em formar
livremente a consciência dos seus filhos”, justificava o texto. O foco do
ensino anarquista era a contestação do capitalismo e o fortalecimento da
participação política do operariado. Tudo que, segundo eles, a educação formal
impedia. A burguesia era acusada de monopolizar a instrução e o conhecimento
científico por meio de “artificiosas concepções que enlouquecem os cérebros dos
que frequentam as suas escolas”, de acordo com nova resolução, no congresso
seguinte, em 1913. Argumentavam que “as castas aristocráticas e a Igreja”
mantinham o “povo na mais absoluta ignorância, próxima à bestialidade, para
melhor explorarem-no e governarem-no”. As escolas estatais e religiosas
impediam “a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social do proletariado
e da humanidade”.
Diante de um quadro educacional tão
dramático, a pedagogia anarquista precisava realizar transformações profundas.
O ensino científico e racional deveria atender às verdadeiras necessidades
humanas e sociais: a razão natural, e não a razão artificial criada pela
burguesia. No lugar da memorização que prevalecia nas escolas, propunha-se
abrir espaço aos jogos e à iniciativa dos próprios alunos. Exames e concursos
deveriam ser extintos, assim como qualquer tipo de prêmio ou castigo.
Eram ideias inspiradas no método
racionalista, criado pelo espanhol Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909),
fundador da Escola Moderna de Barcelona. Para Ferrer, a criança deve ser o
centro do processo educacional e o professor tem a tarefa de problematizar a
realidade, conjugando teoria e prática – esta identificada com o trabalho
manual. Meninos e meninas devem estudar na mesma sala (proposta ousada para a
época), assim como ricos e pobres. A educação não pode se eximir de sua responsabilidade
política, conscientizando os alunos para os valores humanitários e antiestatais
do anarquismo.
Mais do que pôr em xeque a pedagogia
tradicional, esses princípios soavam como uma afronta ao poder constituído. As
teorias de Francisco Ferrer y Guardia despertaram a ira da Igreja e do governo
espanhol. Ele foi preso, e de nada adiantaram os protestos pela sua libertação:
acabou fuzilado em 1909.
Os currículos das escolas
anarquistas brasileiras estavam em sintonia com a proposta racionalista de
Ferrer. Privilegiavam a leitura, a caligrafia, a gramática, a aritmética, a
geografia, a geometria, a botânica, a geologia, a mineralogia, a física, a
química, a história e o desenho. Também incluíam sessões artísticas e
conferências científicas. Para além da sala de aula, os alunos participavam de
eventos operários, principalmente em datas consideradas importantes pelos
anarquistas, como 18 de março – data da Comuna de Paris, insurreição popular
que em 1871 gerou o primeiro governo operário da história –, 1º de maio – em
memória da execução dos “mártires de Chicago” (1886), operários que pediam a
redução da jornada de trabalho para oito horas diárias – e 13 de outubro, data
do fuzilamento de Ferrer. Assim a escola aproximava alunos, famílias e sindicatos,
mantendo viva a memória e a necessidade das lutas proletárias. O esforço
educativo desses grupos resultou também na fundação de bibliotecas, centros de
estudos, centros de cultura e grande circulação de periódicos.
Mas as greves gerais ocorridas em
São Paulo e no Rio de Janeiro em 1917 e 1919, com marcante liderança
anarquista, chamaram a atenção do Estado e da Igreja Católica para as ações do
movimento. Os anarquistas passaram a ser vistos como ameaça e tornaram-se alvo
de dura repressão: inúmeros militantes estrangeiros foram expulsos do país,
suas escolas foram fechadas e os professores foram acusados de difundir a
revolução social. Educadores vinculados àquelas escolas foram colocados em
listas negras de industriários da época, e não conseguiram se empregar
novamente. A classe dominante e os governantes criaram e divulgaram a tese
segundo a qual o anarquismo era uma “planta exótica” – vinda da Europa, não
teria clima favorável para se desenvolver por aqui. A estratégia era evidente:
negar a luta de classes e ressaltar a suposta cordialidade e o apego à ordem do
povo brasileiro.
O terceiro congresso do COB, em
1920, realizou-se sob esse clima de tensão. Mas, mesmo em um contexto
complicado para o movimento operário brasileiro, a educação anarquista
continuava em pauta. “O III Congresso Operário, tratando das escolas
proletárias e tomando conhecimento da inominável violência do governo paulista
que encerrou arbitrariamente as Escolas Modernas, quando esse mesmo governo
tolera e até mesmo protege as escolas reacionárias, associa-se ao movimento de
protesto do operariado contra essa opressão”, dizia a moção redigida por Edgard
Leuenroth (1881-1968), um dos principais militantes anarquistas da República
Velha.
A partir dali, a repressão só iria recrudescer.
Expulsões, deportações e prisões no campo de concentração de Clevelândia, no
município do Oiapoque (RS), durante o governo de Artur Bernardes (1922-1926),
minaram a força do anarquismo. Mais à frente, com o Estado Novo e a implantação
do sindicalismo oficial vinculado ao governo, a atuação do movimento acabou
restrita a atividades culturais e educativas – como as da Universidade Popular
Presidente Roosevelt, criada em 1945 por intelectuais não necessariamente
anarquistas, que oferecia cursos gratuitos em várias áreas, como Psicologia, Sociologia,
Política e Economia.
Mesmo ocultada das teorias
pedagógicas e da história da educação, a influência das propostas libertárias
anarquistas foi marcante no século XX. Muitos de seus princípios foram absorvidos
pelas principais correntes pedagógicas e reformas educacionais, como as
propostas de Celestin Freinet (1896-1966), a Escola Nova de John Dewey
(1859-1952), a pedagogia de Paulo Freire (1921-1997) e, atualmente, o movimento
das Escolas Democráticas.
E não deixaram de provocar inquietação.
Até que ponto, nestes tempos individualistas e competitivos, é possível
praticar um ensino baseado na solidariedade e na liberdade?
José
Damiro de Moraes é professor na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha
e Mucuri e autor, com Silvio Gallo, de “Anarquismo e Educação – A educação
libertária na Primeira República”. In: História e Memórias da Educação no
Brasil, vol. III (org. Maria Sephanou e Maria Helena Câmara Bastos, Vozes,
2005).
Saiba Mais - Bibliografia:
CODELLO, Francesco. A Boa Educação:
experiências libertárias e teorias anarquistas na Europa, de Godwin A. Neill.
São Paulo: Imaginário/Ícone, 2007.
DEMINICIS, Rafael Borges;
AARÃO REIS FILHO, Daniel (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol. 1.
Niterói/ Rio de Janeiro: EdUFF/MAUAD, 2006.
GALLO, Silvio. Pedagogia Libertária: anarquistas, anarquismos e educação. São
Paulo/Manaus: Imaginário/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
SAFÓN, Ramón. O Racionalismo combatente: Francisco Ferrer y Guardia. São Paulo:
Imaginário/ IEL/NU-SOL, 2003.
Saiba Mais – Links
Nenhum comentário:
Postar um comentário