Arrancadas
de suas famílias e exibidas como troféus de guerra, crianças sertanejas
sobreviventes de Canudos foram vendidas e usadas como mão-de-obra doméstica.
A Guerra de Canudos durou quase um ano e
contou com a participação de cerca de dez mil soldados, vindos de dezessete
estados brasileiros, que deram combate aos homens de Antônio Conselheiro em
quatro expedições militares. O número estimado de vítimas é de vinte e cinco
mil pessoas, entre elas mulheres e crianças. Quase todos os conselheiristas
foram mortos depois de presos, boa parte na prática da “gravata vermelha”, como era conhecida a
degola.
A vitória dos militares só se deu ao cabo
da quarta expedição: em 5 de outubro de 1897 terminou a resistência dos últimos
sertanejos. Canudos ficou completamente destruída. Cinco mil e duzentas casas
foram queimadas, enquanto a elite política, acadêmica e militar se congratulava
pelo desaparecimento do arraial. O presidente da República, Prudente de Moraes,
havia prometido que em Canudos não ficaria “pedra sobre pedra”. Acabada a
guerra, era necessário, portanto, apagar os vestígios do que era visto pela ótica
do poder como uma insurreição sertaneja. O fim deveria ser exemplar, para que
outros movimentos que desafiassem a ordem republicana não se repetissem. Para
as autoridades envolvidas era importante “que ali se plantasse a solidão e a
morte”.
Na ocasião da terceira expedição militar,
que se configurou como um desastre e culminou com a morte do coronel Moreira
César, centenas de soldados feridos e mutilados começaram a desembarcar na
estação da Estrada de Ferro da Calçada, em Salvador. A cidade não contava, no
entanto, com infraestrutura suficiente para atender aos combatentes. É nesse
contexto que o corretor alemão Franz Wagner, radicado em Salvador, convocou a
sociedade baiana para prestar auxílio aos soldados feridos no combate ainda em
curso. Nascia, assim, o Comitê Patriótico da Bahia, que atuou no auxílio às
vítimas da Guerra de Canudos entre 1897 e 1901.
A mobilização pública empreendida pelo
Comitê alcançou larga escala. A população local, instituições e o governo
contribuíam com doações em dinheiro, organizavam festas, quermesses e recitais
para arrecadar fundos, socorriam diretamente os feridos, amparavam viúvas e
encaminhavam os filhos dos soldados para colégios e orfanatos. Pouco a pouco, o
Comitê se transformaria também na principal instituição de amparo aos
sertanejos, especialmente às crianças sobreviventes de Canudos. Essa mudança de
propósitos foi resultado do contato que alguns membros da organização tiveram
com a realidade da guerra. Em setembro de 1897, o jornalista Lélis Piedade, secretário
do Comitê, viajara até o cenário do conflito a fim de instalar, no local, uma
enfermaria que pudesse prestar os primeiros socorros aos feridos. Na visita, deparou-se com a paisagem desolada
do sertão: casas abandonadas e saqueadas. Conversou com militares, padres,
sertanejos, jagunços conselheiristas feitos prisioneiros, mulheres e crianças.
E o Comitê diversificou
sua linha de ação.
Lélis não abandonou suas convicções
republicanas. Continuou apoiando o exército e, no seu entendimento, Canudos não
passava de uma reunião de fanáticos. A experiência, no entanto, fez com que
passasse a ver com piedade as mulheres e crianças canudenses. Ficou chocado com
a miséria, a fome, os feridos, os corpos que apodreciam pelas estradas com
urubus à espreita, a epidemia de varíola que vitimava indiscriminadamente
sertanejos e militares, a falta de água potável, as infestações de pulgas e as
atrocidades que também foram cometidas pelas tropas federais. Lélis parece ter
enxergado naquelas mulheres de Canudos e, sobretudo, nas crianças, algo mais do
que bárbaros que deviam ser exterminados.
O secretário do Comitê presenciou também a
prática de venda de crianças sertanejas, efetivamente órfãs ou separadas de
suas famílias. Segundo seu relato, uma mulher, meio ébria, trazendo duas
crianças com sinais de violência, tentou vender-lhe um menino. A distância
entre o litoral civilizado e os rudes homens sertanejos, registrada e
imortalizada por Euclides da Cunha em Os Sertões, começava a não fazer sentido
para os representantes do Comitê, que associavam o que viam “a uma nova
escravidão que se vai estabelecendo com estas desgraçadas vítimas de Canudos.”
Membros da Comissão Especial, nomeada para
recolher crianças sertanejas, narraram os encontros que tiveram com as
prisioneiras de guerra. Mulheres desesperadas se ajoelhavam suplicando a
devolução de seus filhos levados pelos soldados. Em alguns casos, o Comitê conseguiu
que as crianças fossem devolvidas. Em muitos outros, elas já haviam sido
repassadas. No entanto, diversas dessas crianças, apesar de localizadas, não
foram devolvidas nem adotadas legalmente, pois já haviam sido convertidas em
mão de obra para serviços domésticos. Outras foram simplesmente ocultadas ou
enviadas para outros pontos do estado por seus patrões e donos, que tinham medo
de perdê-las.
São vários os relatos sobre pessoas que se
recusaram a entregar as crianças que serviam como criadas. Cidadãos de boa
situação financeira que receberam os menores das mãos de oficiais do exército
negavam ao Comitê qualquer informação sobre eles, alegando que lhes foram
entregues por um oficial para servir em suas casas. Além disso, não achavam
justo que o Comitê protegesse filhos de jagunços.
Frente a essas dificuldades, mesmo após um
trabalho árduo de busca e negociação, o resultado do trabalho da Comissão
contabilizou apenas 13 crianças – entre meninos e meninas devolvidas às suas
mães ou pais –, outras 16 foram entregues a parentes e 22 deixadas com pessoas
idôneas civis e militares, que se responsabilizaram por elas. Outras 50 foram
levadas pelo próprio Comitê a Salvador e encaminhadas aos orfanatos e colégios.
Para os integrantes da Comissão Especial, o balanço final alcançado, entretanto
fora positivo.
As crianças que o Comitê conseguiu
encaminhar para orfanatos e colégios aprenderam na escola o valor do trabalho.
A educação estava pautada pelo aprendizado de uma profissão, aliado à instrução
básica, pois os meninos pobres deviam aprender um ofício, além das matérias
convencionais. Havia nos internatos uma divisão entre alunos aprendizes
internos e alunos externos. Para os primeiros, estava destinada a instrução de
ênfase profissional, enquanto para os segundos a escola reservava apenas a
educação letrada. A posição social
condicionava, desde a escola, o futuro e reproduzia, na prática escolar, as
hierarquias da sociedade. Já as crianças que foram entregues aleatoriamente
pelos soldados aprenderam o lugar que a sociedade lhes destinava nas casas de
família, onde exerciam funções de empregados domésticos, na maioria das vezes
sem remuneração alguma.
A filantropia dos primeiros tempos
republicanos pode ter representado para essas crianças, que viveram a violência
da guerra no sertão, um outro tipo de violência. As crianças de Canudos deviam
trabalhar e aprender a amar a República através de valores que lhes eram
ensinados na escola ou incutidos pela vida cotidiana. Deviam, sobretudo,
aprender a esquecer a “aldeia sagrada” de Canudos. Não havia lugar para a
diferença no projeto da primeira República brasileira.
Destituídas de suas famílias, de suas
casas, retiradas do local onde nasceram, levadas para outras cidades, essas
crianças foram privadas de seu próprio passado e, portanto, de suas
identidades. A memória delas foi enquadrada, reconstituída segundo o que a
memória oficial ditava sobre o que era preciso ser lembrado e o que deveria ser
esquecido. A educação recebida ajudava a solidificar uma determinada
interpretação da história – na perspectiva da época, o ensino deveria então
civilizar aqueles que eram os filhos dos “rudes patrícios” que edificaram uma
“Tróia de taipa”, na famosa expressão de Euclides da Cunha, e ousaram enfrentar
os mandamentos de “ordem e progresso” inscritos na bandeira republicana. Civilizar, ordenar, conhecer o seu lugar na
tão propalada construção do progresso representava a negação da diferença. Não
bastava acabar fisicamente com a “aldeia sagrada”. Era preciso também apagar
Canudos dos corações e das mentes das crianças, numa lógica preventiva que
parecia querer evitar a repetição e o ressentimento.
No caso dos meninos de Canudos trazidos
para Salvador, o projeto parece ter sido o de apagar qualquer vestígio de suas
próprias memórias, da experiência vivida na aldeia do Conselheiro e, portanto,
de suas identidades de origem. Esse jogo perverso de inversões tinha como
objetivo civilizar os órfãos da guerra. Civilizar
essas crianças que escaparam da morte pela degola, destino de tantas outras,
foi, assim, algo muito próximo de um assassinato simbólico. Bárbaros, como
assinalou Lévi-Strauss em 1945, são aqueles que acreditam na barbárie.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro é mestranda em História na
PUC-Rio.
Saiba
Mais – Filmes
Guerra de Canudos
Direção: Sérgio Rezende
Ano: 1997
Duração: 165 minutos
Deus e o
Diabo na Terra do Sol
Direção: Glauber
Rocha
Ano: 1964
Duração: 119 minutos
Saiba
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