“Anos de pesquisas permitem-me dizer: criminalização perdura porque atinge
mulheres pobres, aquelas que não contam, nem são vidas a preservar...”
Heloisa Buarque de Almeida*
Joana, que se casara grávida aos 15 anos
e tinha dois filhos, me contou, em segredo e sussurrando, sobre a relação
violenta e tumultuada que vivia com seu marido, e como havia, certa vez,
“tomado um remédio para a menstruação descer”, pois não podia imaginar ter mais
um filho naquelas condições. Negava que tinha interrompido uma gravidez,
afirmando que era contra o aborto. Laura me disse sem meias palavras que tinha
“tirado” quando engravidou pela terceira vez e o marido estava internado numa
clínica para deixar as drogas. Ela cuidava sozinha de seus dois filhos
pequenos, e não tinha com quem mais contar, não tinha condições de ter outro
filho, não naquela hora. Tomou um “remédio” e posteriormente foi internada com
uma terrível hemorragia, mas tudo acabou bem.
Noutro contexto, Lúcia e Regina
contaram que engravidaram muito jovens, mas ainda não era hora de ter filhos,
uma viveu isso quando ainda estava no colégio e se dizia “contra o aborto”,
justificando o seu caso pela precocidade da gravidez (com o primeiro namorado).
Regina afirmava que queria terminar a faculdade, ter uma vida profissional,
escolher melhor com quem se casar e é totalmente favorável à legalização do
aborto. Lúcia e Regina abortaram em uma clínica em São Paulo, não sofreram
nenhuma complicação, ainda que uma delas se queixasse pela forma com que foi
tratada pelo médico. Todas essas histórias me foram contadas como segredos e
todas são mulheres que podemos definir como de classe média, embora as duas
últimas tenham mais posses que as primeiras. Os nomes são fictícios. Mas há
outras histórias muito mais dramáticas de mulheres que perderam ou a saúde, ou
a vida tentando abortar com agulhas de tricô, “curetagens” mal feitas,
“remédios” que não deram certo e que resultaram crianças com terríveis
malformações.
Apesar da ilegalidade, há um número
expressivo de abortos voluntários no Brasil por ano, feitos de modo clandestino
– mas nem sempre precário. Ainda assim, o tema permanece um tabu na sociedade
brasileira, ainda que o debate esteja se ampliando novamente. A ilegalidade
leva inúmeras pessoas (ironicamente, algumas das quais afirmam publicamente
serem contra o aborto) a recorrerem a métodos inseguros de interrupção da
gravidez, o que gera números elevados de internações no SUS. Segundo dados
oficiais, cerca de 244 mil internações no SUS, no ano de 2004, referiam-se a
curetagem pós-aborto, apontando para uma estimativa de um milhão de abortos
anuais.
Laura foi uma dessas internações,
mas há muitas mais que decorrem de métodos abortivos muito violentos e brutais,
gerando mortes maternas e sequelas. Tais internações poderiam ser evitadas,
tendo se tornado, portanto, uma questão evidente de saúde pública. Há mais
abortos e mais complicações nos locais e nas camadas sociais em que o acesso
aos métodos de contracepção e o atendimento médico são mais precários, com uma
grande diversidade regional e de classe.
A morte materna também é bem mais alta
entre mulheres negras. Trata-se, portanto, também de uma questão de justiça
social, já que para camadas médias e altas o aborto seguro é acessível, mas as
mulheres de camadas populares em todo o país (especialmente, reitero, onde há
menos acesso a meios contraceptivos e a atendimento médico) estão sujeitas a um
verdadeiro massacre. Para os pesquisadores, a ilegalidade torna o tema difícil
de pesquisar e de medir. O aborto voluntário é um crime e um tabu – certamente
o veremos ser tratado novamente como tabu quando chegamos perto das eleições.
Apesar de as pessoas se declararem
explicita e majoritariamente “contra o aborto” nas pesquisas de opinião
pública, muitas das que recorreram a essa prática (mulheres e homens cujas
parceiras sexuais o fizeram) justificam suas experiências por uma
“circunstância especial” e muitas vezes dramática. “Em princípio” são
contrários à prática. Embora vejam sua decisão acoplada a essa circunstância
particular, o que os dados de inúmeras pesquisas nos mostram é que essas
“circunstâncias” são muito comuns, e mais regularmente oscilam entre dois tipos
reiterados. Ainda que contem em segredo tais relatos a uma pesquisadora, amiga,
conhecida, muitas vezes, no entanto não conseguem declarar-se sequer a favor da
descriminalização.
Especialmente, em público, em voz
alta, o tema ainda é tabu. Menciono aqui informações que tive também em
etnografias, onde o fato da pesquisadora viver certo tempo com as pessoas que
estuda leva a uma maior intimidade – vários relatos de aborto chegaram aos meus
ouvidos, contados como “segredos” pessoais, em pesquisas antropológicas que fiz
e faço sobre família, gênero, sexualidade.
Ainda que educação e prevenção (o
crescente acesso a informação e métodos mais seguros de contracepção) sejam
fundamentais (a gravidez “não planejada” é mais frequente entre mulheres de
baixa escolaridade), não há nenhum método 100% seguro. Mesmo mulheres muito bem
informadas e com acesso a medicamentos engravidam sem o desejar. Os dados de
pesquisa recente da UnB/Anis [DINIZ, Débora e MEDEIROS, Marcelo: “Aborto no
Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna” Ciência & Saúde Coletiva,
15 (supl. 1), 959-966, 2010], indicam que entre mulheres com até o 4º ano do
ensino fundamental cerca de 23% abortaram, mas com ensino médio completo a taxa
é de 12% – portanto, menor, mas não nula. Por outro lado, os dados da pesquisa
GRAVAD revelam que a própria gravidez adolescente é muito mais comum nas
camadas de baixa renda. Porém, quando engravidam sem planejar, as jovens com
mais anos de estudo e situação social de classe média ou alta optam mais pelo
aborto do que as jovens de baixa renda, para as quais muitas vezes a gravidez
adolescente não é vista como problema e nem como impeditivo de outros planos de
vida, tais como educação e profissão.
É possível vislumbrar, no entanto,
alguns padrões: grande parte desses abortos não são apenas as imaginadas
jovenzinhas inexperientes e “levadas” em sua vida sexual que engravidam cedo e
“tiram”. Se parte das moças de camadas populares assumem esses filhos precoces,
nas camadas médias e altas o aborto voluntário parece ser mais comum, num
modelo de decisão de aborto em que a jovem calcula seus planos de educação
superior, seus desejos de carreira profissional ou de evitar uma união
repentina. Mulheres de camadas médias e altas fazem abortos razoavelmente
seguros em clínicas e consultórios, ou recorrem ao uso do Cytotec.
Segundo a pesquisa da UnB/Anis
calcula-se que “ao final da vida reprodutiva, mais de uma em cada cinco
mulheres já fez aborto”, a maior parte deles no período entre 18 e 29 anos.
Essa mesma pesquisa mostra,
portanto, uma outra faixa etária de abortos - nem todas as mulheres que
abortaram o fizeram no início de sua vida sexual e reprodutiva. Essas e outras
pesquisas, qualitativas e quantitativas, apontam para o fato de que há uma
proporção de abortos feita noutro(s) momento(s) da vida, ou seja, quando as
mulheres já têm filhos para criar.
São mulheres acima dos 25 anos. Em alguns
casos, inclusive, provocaram aborto de modo “escondido” de seus parceiros (como
Laura e Joana, que citei acima), como uma dura e dolorosa decisão pessoal
considerada a única possível. Às vezes, uma decisão desesperada, diante de
uniões conjugais violentas e/ou abusivas, ou quando elas já eram as
responsáveis pelo sustento de outros filhos e parentes, ou tinham parceiros
ausentes e incapazes de ajudá-las por algum motivo, ou mesmo quando se viam
abandonadas. Aqui, a justificativa para o aborto é também uma decisão muito
difícil, mas necessária e mesmo considerada racional – nesta casa, não “cabe”
mais uma criança.
Seja qual for o caso, o que está em
jogo é o direito destas mulheres, jovens ou nem tão jovens assim, de decidir se
querem ou não interromper a gravidez. É uma decisão difícil e delicada, mesmo
para quem tem acesso ao aborto seguro. Mas é urgente levar em conta que elas –
as mulheres que engravidam “sem planejar” (como se só competisse a elas evitar
a gravidez) – também são uma vida, uma vida completa e vivendo na labuta
cotidiana, tentando estudar, trabalhar, criar seus filhos, com vidas mais ou
menos precárias, mas com vidas reais, já sendo vividas e muitas delas cuidando
de outras vidas (filhos, idosos, doentes).
Sim, e aqui temos a polêmica sobre
quando começa o que chamamos de uma vida humana. Não simplesmente uma vida,
pois as plantas e animais também são vivos, mas aquilo que vemos como “vida de
um ser humano”. Os contrários ao aborto consideram o momento da concepção –
para eles, portanto, a pílula do dia seguinte ou o DIU são abortivos. Aqueles
que defendem a legalização da prática, no entanto, separam a vida do embrião
(12 semanas) da vida daquilo que a medicina chama de “feto”, ou seja, um ser
humano em formação após o início da constituição do sistema nervoso central e
do cérebro.
Porém, há outra hierarquia em jogo.
Por que imaginar que uma vida em estágio inicial é “mais vida” – superior à da
mulher que se descobre, de repente, com uma vida em formação dentro de seu
corpo, totalmente dependente de seu corpo e de sua vida? Por que alguns países
a consideram como cidadã plena e outros não? Por que se defende que uma mulher
tenha que levar a gestação até o fim e ter toda a preocupação que é criar um
filho se ela não pode, não quer, não tem condições? E lembremos, as mulheres de
classe média terão acesso a uma interrupção relativamente segura, mas e as
mulheres pobres?
Não contam? Não são “vidas” a se
preservar, já que é entre elas que o aborto inseguro gera mais consequências
graves de saúde pública, inclusive a morte? E os outros filhos que elas já têm
para cuidar, não são também uma questão de “vida”? Me parece haver aqui uma
grande preconceito social no Brasil – pobre não conta como “gente”, como vida
humana?
Toda opção pelo aborto é uma dura e
triste decisão; não é, quase nunca, algo “comum” e feito sem pensar. Muitas
vezes é feito no momento do desespero. E os dados apontam que quanto mais se
amplia a rede de saúde pública e acesso a educação, há certamente menos
abortos. É preciso ampliar ainda mais os bons serviços de saúde e educação
públicas, mas é também urgente que se amplie o acesso ao aborto seguro, inclusive
para garantir que essas mães possam criar os filhos que já têm vida.
*Heloisa Buarque de Almeida - professora no Departamento de
Antropologia da USP e pesquisadora colaboradora do Pagu – Núcleo de
Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
DOCUMENTÁRIOS:
O Aborto dos
Outros
O Aborto dos Outros é um filme sobre a
mulher que vive a experiência do aborto. Não é um filme sobre a bíblia, a
filosofia, a metafísica. É um filme sobre a maternidade, afetividade,
intolerância e solidão. E sobre nossa realidade matemática: no Brasil, 1 em
cada 4 gestações é interrompida voluntariamente. São mais de 1 milhão de aborto
por ano.
Apenas recentemente os
hospitais do país começaram a cumprir uma lei que é de 1940: no Brasil o aborto
é legalizado para casos de gestações resultantes de estupro ou em casos em que
a mulher corre risco de vida.
Há uma terceira opção,
eventualmente autorizada judicialmente, que são as gestações em que o feto possui
uma má-formação grave e não sobrevive fora do útero da mãe.
As filmagens ocorreram em
4 hospitais públicos que possuem atendimento para casos previstos em lei, o
“Programa de Aborto Legal”: Hospital Pérola Byington, Unifesp, Unicamp e
Hospital do Jabaquara. Além dessas instituições, foram colhidos depoimentos de
mulheres e profissionais de saúde em diferentes locais no Rio de Janeiro e em
São Paulo.
Contudo, a maioria dos
abortos acontece na clandestinidade, em casa, em clínicas, com uma mãe de anjo.
O mais importante a ser
considerado é que a lei punitiva não impede que as mulheres realizem o aborto.
Uma mulher que decide interromper sua gestação irá fazê-lo, na condição que lhe
couber, com ou sem atendimento adequado. A única consequência da criminalização
são os efeitos perversos para as mulheres, como o alto índice de mortalidade
materna ou as graves sequelas de abortos malfeitos.
O filme mostra a
experiência das mulheres que viveram o aborto e pretende inserir essas
vivências em uma discussão que geralmente se dá a partir da posição da Igreja,
da sociedade ou do Estado.
Direção: Carla Gallo
Ano: 2008
Áudio: Português
Duração: 73 minutos
Tamanho: 499 MB
Fim do
Silêncio - um filme sobre o aborto inseguro
Em Fevereiro de 2008, a Fiocruz,
instituição pública ligada ao Ministério da Saúde, organizou um edital público
para a realização de programas de curta e média-metragem, de ficção e
documentário, cujo tema era saúde pública. FIM
DO SILÊNCIO foi o projeto vencedor na categoria documentário de 52 minutos.
No documentário, pela
primeira vez, mulheres, de três estados do país, de diferentes idades,
religiões, classes sociais e profissões, falam para a câmera, sem esconder
rostos nem identidades, como e porque fizeram aborto. Rio de Janeiro, São Paulo
e Pernambuco estão nas duas regiões (Sudeste e Nordeste) que concentram maior
número de abortos inseguros do país. O documentário confirma que o aborto
inseguro é um dos mais graves problemas de saúde pública do nosso país, e
ainda, demonstra que a criminalização do aborto não está impedindo milhares de
mulheres de fazerem o aborto e a correrem risco de vida, submetendo-se a
sequelas físicas e psicológicas. Informações importantes sobre o tema em
cartelas sobre fundo negro pontuam todo o documentário.
Só foram incluídos
depoimentos de mulheres que fizeram aborto há mais de 8 anos, pois o “crime”
prescreve depois deste período.
Apenas 26% dos países do
mundo ainda não descriminalizaram o aborto. Todos eles na América Latina,
África e Ásia. O Brasil é um deles.
O aborto tem sido
discutido sob o prisma religioso e moral, e a sociedade classifica as mulheres
que abortam como assassinas e criminosas. Nunca se deu voz a elas para se
entender as razões que as fazem optar pelo aborto. O documentário vai
surpreender ao revelar que muitas delas fazem aborto por imposição dos maridos
ou ainda, que a decisão é tomada em conjunto com os parceiros.
Direção: Thereza Jessouron
Ano: 2008
Áudio: Português
Duração: 52 minutos
Tamanho: 222 MB