Bilhetinhos presos às roupas de bebês do século XVIII ajudam a esclarecer um antigo drama da infância brasileira: o das mães que abandonam os próprios filhos.
Renato Pinto Venâncio
Um dos feitos dessa história
social da infância foi o de descobrir que o abandono de crianças, sobretudo de
recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente
registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após
a Peste Negra (1348), o problema se agravou. O número de bebês pobres e órfãos
se multiplicou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades
medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras
municipais e hospitais, como as Santas Casas da Misericórdia, começaram a criar
formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas. Por volta de 1550, os
jesuítas dão início, no Novo Mundo, a uma ação pioneira junto às crianças
indígenas, criando Colégios de Órfãos para receber curumins sem família.
Nos séculos seguintes, o
problema se generaliza entre a população livre das vilas e cidades coloniais.
Várias câmaras coloniais, conforme ocorreu nas capitanias da Bahia, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, começam a pagar famílias para acolher os denominados
enjeitados ou expostos. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa
Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importam as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira
giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e
preparados para acolher recém-nascidos abandonados.
Como é possível perceber,
tratava-se de serviços assistenciais complexos e que podiam se estender até os
meninos e meninas completarem sete anos de idade, quando então deviam ser
empregados em serviços remunerados ou em troca de alimento e moradia. O
abandono dizia respeito, fundamentalmente, às crianças brancas e pardas, de
ambos os sexos. Além dos órfãos pobres, havia aqueles nascidos fora do
casamento – em decorrência de relações fortuitas ou incestuosas, assim como de
adultérios –, que eram deixados nas calçadas, entregues a vizinhos, ou ainda
enviados a hospitais. As mães escravas raramente abandonavam os filhos, pois
estes eram propriedades dos senhores, que encaravam no gesto uma forma de fuga
e a perda de uma valiosa propriedade.
Um aspecto central dos estudos
sobre a história da infância diz respeito ao “amor materno”. As mulheres que
abandonavam os filhos manifestariam desamor em relação a eles, ou o gesto
decorria de uma imposição de natureza econômica ou moral? A questão é delicada,
pois na sociedade colonial quase todas as mulheres – na maior parte africanas
ou destas descendentes – eram analfabetas, não deixando por isso mesmo relato a
respeito de seus sentimentos; ademais, é bastante provável que muitos bebês
fossem órfãos, sendo enjeitados justamente por não terem mães que deles
cuidassem.
Os raros indícios de que dispomos dizem respeito aos bilhetes presos às roupas das crianças abandonadas. Trata-se de uma fonte documental bastante interessante, mas que deve ser analisada com olhos críticos. É muito provável que os bilhetes fossem escritos por homens, principalmente padres, sensibilizados com a situação da criança desamparada.
Mesmo que as mensagens do
abandono não tenham sido escritas pelas mães, ou tenham sido influenciadas
pelas expectativas institucionais, é impossível que não refletissem minimamente
os sentimentos maternos. De outra forma, por que as mulheres se dariam ao
trabalho de procurar homens alfabetizados para escrever o texto que
acompanharia seus filhos?
Trata-se, portanto, de
testemunhos indiretos, mas reveladores de um aspecto crucial da história da
infância, conforme veremos nos textos transcritos desses bilhetes, colhidos nos
Arquivos das Santas Casas da Misericórdia de Salvador e do Rio de Janeiro.
Essas instituições, entre 1726 e 1938, acolheram milhares de crianças na roda
dos expostos, embora um número ínfimo delas tenham sido acompanhadas por
bilhetes.
Em quase todos os escritos
clamava-se pelo bom tratamento dos filhos. Muitos se inquietavam diante do
futuro espiritual dos pequeninos. Era comum a solicitação de que o batismo
fosse administrado ou confirmado, por ter sido aplicado de maneira incompleta.
Eis, por exemplo, o que afirma um bilhete de 9 de janeiro de 1759: “(...) esta
menina chama-se Rita, está batizada em casa por sacerdote e se lhe faltam os
Santos Óleos (...)”.
A garantia do precoce batizado
não era apenas um gesto religioso, como também de amor. De acordo com a
mentalidade da época, as crianças que faleciam logo após a cerimônia iam direto
para o céu e se tornavam anjinhos. Em seus sermões e confissões, os padres não
se cansavam de repetir esse princípio. Alexandre de Gusmão, pregador jesuíta e
autor da Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685), afirma
em relação a um casal muito pobre, que batizou os filhos e resistiu a
abandoná-los: “Cousa maravilhosa! Foram-lhes morrendo pouco a pouco todos os
filhos, que Deus levou para si quase todos na idade da inocência (...) e eles
ficaram muito agradecidos a Deus por tão assinalada Mercê”.
A preocupação dos familiares de
enjeitados também se expressava através da indicação do nome da criança. No
Brasil dos séculos XVIII e XIX, a transmissão dos “sobrenomes” não era
regulamentada. Os pais, manifestando preocupação em relação ao futuro
espiritual dos seus descendentes, utilizavam a liberdade para atribuir
sobrenomes religiosos aos filhos. Eis o que dizem dois escritos, datados de 29
de maio de 1782 e de 13 de outubro de 1783: “(...) vai esse menino que já é
batizado, chama-se Antônio José de Deus; (...) trouxe um bilhete que dizia já
estar batizado, chama-se Antônio de Santa Bárbara”.
O nome também podia ser um meio de facilitar a futura localização da criança. Para tanto, bastava escolher uma onomástica que fugisse à monótona cadência de marias, josés e joões, comum à tradição popular colonial: “(...) trouxe bilhete em que dizia estar batizado com o nome de Praxedes”; “(...) trouxe carta em que declara se achar batizada em perigo de vida com o nome de Leopoldina”; “(...) trouxe bilhete em que declara se achar batizado com o nome de Sérvulo (...)”. Muitos escritos guardam ainda as angústias e sofrimentos dos corações daqueles que eram obrigados a recorrer à roda dos expostos: “(...) remeto este menino branco chamado Antônio José Coelho, para tratá-lo e tê-lo com o maior cuidado que puder”; “(...) morreu sua mãe e por pobreza e falta de leite se enjeita esta batizada chamada Joaquina, e por cita esmola ficamos pedindo a Deus pela saúde e vida decente”.
Os melhores exemplos do abandono
como forma de amor talvez sejam os de escravas que enjeitavam os próprios
filhos na esperança de que eles fossem considerados livres. Conforme
mencionamos, tais casos foram raramente documentados, mas existiram: “(...) se
entregou esta criança ao Senhor Mestre de Campo Antônio Estanislau, por se
averiguar ser verdadeiramente seu Senhor e ficar esta Santa Casa livre de pagar
sua criação, por fugir a Mãe da Casa do dito Senhor e parir fora, pela
confissão que a dita fez”; “(...) mandou-se entregar a Júlia Telles da Silva
Lobo, um seu escravo menor de nome Thomé que fora lançado à roda dos expostos”.
O abandono não era encarado como
uma manifestação de falta de responsabilidade. Alguns escritos chegavam ao
paradoxo de apresentar o gesto como uma forma de amor, em nada prejudicial à
vida da criança. É o que lemos em um bilhete datado de 19 de agosto de 1760:
“(...) rogo a Vossa Mercê queira ter a bondade de mandar criar este menino com
todo o cuidado e amor (...)”; “é este menino filho de Pais Nobres e Vossa Mercê
fará a honra de lhe criar em casa que não seja muito pobre e que tem escravas
que costumam criar essas crianças (...)”.
Eventualmente, tais bilhetes
atribuíam o abandono à impossibilidade moral de pais e mães solteiras,
adúlteras ou religiosas, manterem o filho. A confissão dos “amores ilegítimos”
era, no entanto, feita de maneira velada, conforme se registrou na mesma data
acima mencionada: “(...) acompanha a esta a um menino para Vossa Mercê (...) a
quem por mercê e honra de Deus pertence tomar conta dessas crianças quando
nascem de pessoas recolhidas e que são família que tem Pai e por causa deste
impedimento se não podem criar”. Reconhecia-se discretamente o nascimento
ilegítimo, antevendo-se como tal situação era constrangedora: “(...) trouxe uma
carta pedindo que por seus pais serem impedidos, e estarem para casar, se crie
a dita menina com todo zelo, que breve a mandarão buscar, e que igualmente lhe
pusessem o nome de Antônia”.
Os impedimentos morais, a
condenação à mãe solteira certamente contribuíam para a multiplicação de
abandonados, contudo, esse estava longe de ser o único motivo para se
justificar o recurso à roda nos expostos. Nos três exemplos a seguir,
registrados entre 1758 e 1830, enjeitados considerados brancos foram
acompanhados de escritos alegando pobreza e indigência como causa do abandono:
“(...) vai esta menina já batizada e chama Ana e pelo Amor de Deus se pede a
Vossa Mercê a queira mandar criar atendendo a pobreza de seus pais”; “(...) vai
este menino para essa Santa Casa pela indigência e necessidade de seus Pais”;
“(...) as duas meninas portadoras desta carta foram deixadas por necessidade de
sua mãe em casa de uma pobre, que vive de esmolas dos fiéis, e por isso que
elas vêm agora procurar asilo desta Casa da Santa Misericórdia”.
Por ocasião do parto de gêmeos,
a simples menção ao duplo nascimento era apresentada como justificativa do
abandono: “(...) trouxe bilhete (...) declara ser gêmeo e pede-se chame
Manoel”. Além de acolher bebês pobres e bastardos, a roda dos expostos também
recebia numerosos órfãos: “(...) remeto esta menina para a Santa Casa da
Misericórdia para se criar, é forra e não tem pai nem mãe, nem pessoa que se
doa dela, ainda não está batizada, está pagã; “(...) trouxe bilhete dizendo
(...) a menina já é batizada e chama-se Bibiana e por sua mãe morrer é que
chegou a este destino”; “(...) este menino já foi batizado pelo Reverendo Cura
da Sé e chama-se Izidio, e por falecer sua mãe, roga-se aos Senhores que por
caridade o queiram criar”.
Os testemunhos acima mostram que
o abandono de crianças decorria de imposições morais e econômicas. Assim, os
enjeitados tinham origem na moral patriarcal dos senhores de engenho da Bahia e
do Rio de Janeiro e também eram frutos das consequências do sistema econômico
que sustentava estes segmentos sociais; consequência da miséria comum à vida da
imensa maioria da população livre e liberta da época. Mulheres brancas da elite
e ex-escravas sofriam ao abandonar os próprios filhos. O gesto não expressava,
por assim dizer, um modelo familiar alternativo, em que o amor maternal
estivesse verdadeiramente ausente.
Renato Pinto Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), diretor do Arquivo Público Mineiro, doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne e autor de Famílias abandonadas – Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX (Papirus, 1999).
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005
Saiba mais - Bibliografia
ARIES. Philippe. História
social da criança e da família. São Paulo: LTC, 1981.
PRIORE. Mary Del
(org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto. 2004.
Saiba Mais: Link
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