SÉRGIO BITTENCOURT-SAMPAIO
Durante
mais de três séculos, o Brasil foi embalado por vozes negras e femininas. Pelas
ruas das cidades, melodias eram entoadas não apenas nas festas oficiais dos
negros e nos informais batuques, mas também acompanhando atividades diárias
como as das vendedeiras, lavadeiras nas bordas dos riachos, aguadeiras que
buscavam água nas fontes e nos chafarizes. No interior dos lares, as escravas
faziam dormir seus próprios filhos, e também os filhos brancos das famílias
abastadas. Aquele simples cantar despreocupado, de uma classe desprestigiada,
considerada inculta e apta apenas para trabalho, teria consequências profundas na
linguagem, na cultura e nas relações sociais brasileiras.
As vendedeiras sempre chamavam a
atenção dos estrangeiros. O militar alemão Carl Schlichthorst, que esteve no
Brasil entre 1824 e 1826, certa vez encontrou uma “negrinha mimosa” na praia de
Copacabana. Em plena juventude, ela tocava marimba enquanto vendia suas
guloseimas. Schlichthorst comprou um pedaço de doce e pediu à moça que
dançasse. Ela atendeu ao pedido, e cantou: “Na Terra não existe Céu/ Mas se nas
areias piso/ Desta praia carioca/ Penso estar no Paraíso!/ Na Terra não existe
Céu/ Mas se numa loja piso/ E compro metros de fita/ Penso estar no Paraíso!”.
Os versos traduziam a agrura da escravidão e o explícito desejo de se evadir da
lida diária, mesmo por um instante e em troca de um pequeno agrado.
Anos mais tarde, o príncipe
austríaco Maximiliano de Habsburgo encontrou na Bahia vendedeiras com vozes de
contralto tão graves que poderiam ser confundidas com vozes masculinas. Ao
vender seus doces, alfinetes, refrescos, frutas e outras mercadorias, elas
utilizavam um canto arrastado, com as últimas sílabas prolongadas nas vogais
abertas: “Geleia! É de araçááá!”, “Sorvete é de maracujááá!”, conforme este
exemplo registrado bem mais tarde pelo sociólogo Gilberto Freyre.
Na década de 1820, quando
visitou um engenho situado na Mata da Paciência, no Rio de Janeiro, a viajante
inglesa Maria Graham presenciou escravas servindo cana aos visitantes entre
melodias africanas e hinos à Virgem Maria. Na Fazenda da Cachoeirinha, em Minas
Gerais (1822), o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire se deparou com um
comportamento curioso: ao serem colocadas pela senhora em um ambiente fechado,
escravas que costumavam cantar por todo o dia passaram a relatar suas aventuras
amorosas umas às outras, lançando acusações mútuas. Mas logo retomavam suas
canções preferidas.
Nas folias carnavalescas – ou
melhor, no tempo do entrudo – os pregões tinham um quê de malícia, deixando a
ideia incompleta, cabendo a quem ouvia dar a forma final: “Quem entruda seu
amô/ É sinal de intimidade/ Iaiá, entrude a ioiô/ Para lhe ter amizade/ É de
iaiá, é de ioiô/ Quem qué entrudá seu amô”. Podemos nos perguntar se a
entonação das palavras dependia da linha melódica ou se a música é que derivava
da inflexão das sílabas prolongadas.
Escravas com bons dotes vocais
eram alugadas para apresentações nos salões aristocráticos. A oportunidade lhes
permitia demonstrar o dom para a música em ambientes aos quais normalmente não
tinham acesso. Apesar do talento, seus nomes não eram divulgados (quem se
importaria de dar atenção ao nome de uma cativa?) e as quantias que deveriam
receber pela apresentação ficavam por conta de seus proprietários.
Atendiam também a solicitações
dos ofícios religiosos. No século XVIII, na fazenda dos padres mercedários no
Pará, algumas negras emocionavam os ouvintes ao cantar “Bendito Sejais, Te
Deum”. No Rio de Janeiro, a Família Real portuguesa encontrou na Igreja de
Santo Inácio de Loiola, em Santa Cruz, três escravas que se destacavam pela
beleza com que interpretavam as canções.
A
melancolia musical se mostrava durante os cortejos fúnebres das negras. Ao
contrário dos enterros de homens, o corpo era seguido por mulheres que soltavam
a voz em lamentos que remetiam à escravidão. A presença masculina se limitava a
dois carregadores e um mestre de cerimônias.
A maneira de falar ou de se expressar
através da música servia até para identificar negras fugitivas. O jornalista e
escritor pernambucano Mario Sette transcreveu o anúncio do desaparecimento de
uma cativa chamada Joana. Segundo ele, a procurada apresentava “fala mansa e
descansada”. O periódico cearense O Comercial noticiou a fuga de
Margarida, escrava com idade entre 25 e 28 anos que se destacava por
desempenhar múltiplas funções. Tinha desenvoltura com foice, machado, enxada e
era sapateira. De acordo com o jornal, era também “cantadeira de samba”, o que
revela sua habilidade com a música – na época, somente as mais especializadas
eram chamadas de cantadeiras. Samba tinha uma conotação diferente da atual:
significava batuque, típico dos cativos.
Por outro lado, o hábito de
cantar durante o trabalho diário era utilizado para conter possíveis
insurreições dos cativos. O memorialista Pedro Nava (1903-1984) lembra que sua
avó controlava as tarefas confiadas às antigas escravas por meio das músicas
que elas entoavam: atenta às inflexões das vozes, que traduziam o clima
emocional das cativas a suas intenções, a senhora impedia “conjuração de preto”
e seguia o andamento do serviço. Entre as melodias estava uma modinha muito
conhecida na época, “O Gondoleiro do Amor”, com versos de Castro Alves
(1847-1871), que diz: “Teus olhos são negros, negros, / Como as noites sem
luar... / São ardentes, são profundos, / Como o negrume do mar...”.
O cantarolar negro também
transbordou para a literatura brasileira. No século XIX, a voz lamentosa de uma
cativa motivou um poema do diplomata fluminense Luís Guimarães Júnior:
“Nhãnhã”. O narrador conversava com a sinhá no interior da casa-grande quando
ouviu uma escrava cantando em meio a gemidos. Ao indagar de quem se tratava, a
senhora respondeu: “Ora! uma escrava!”. E nada mais: a conversa despreocupada
prosseguiu comentando valsas, outras danças dos salões imperiais e a chegada de
uma importante cantora lírica italiana. Enquanto isso, do lado de fora, a
escrava expirou no silêncio da noite.
Nos séculos passados, as
mulheres da elite não costumavam amamentar seus filhos. Daí a necessidade de se
buscarem amas de leite. Havia a crença de que o leite das negras era mais
nutritivo que o das brancas. Nas grandes cidades, não faltavam anúncios nos
jornais oferecendo cativas com abundante leite a preços elevados. As amas de
leite mantinham uma proximidade especial com as crianças, que nenhuma outra
condição igualava no cativeiro. Às vezes, amamentavam ao mesmo tempo os
próprios filhos, criando uma condição conhecida como irmão de leite. Quando não
se tratava de uma escrava alugada somente para este fim, mas própria da casa,
os vínculos afetivos com os filhos da sinhá podiam se prolongar ao longo da
vida. Ali, próximas dos filhos das famílias abastadas, elas acalentavam as
crianças com melodias e histórias fantásticas. Os cantos amolengados e
repetidos, acompanhados do tão apreciado cafuné, proporcionavam prazer,
indolência e relaxamento. Aquela “fala cantada” continha uma mistura de termos
portugueses, africanos e corruptelas.
A música se alternava com
histórias típicas do nosso folclore, como relatou em suas memórias Francisco de
Paula Ferreira de Rezende, ministro do Supremo Tribunal Federal no início da
República. Ele conviveu com a escrava Ana Margarida, que sempre que podia
cantava e, se não podia, conversava ou contava casos de saci, lobisomem, mula
sem cabeça e uma lenda sobre a origem dos negros.
O idioma foi se tornando mais
flexível, com sons suavizados, palavras novas, corruptelas e inflexões
desconhecidas no português europeu. Enquanto os senhores e as sinhás sequer
percebiam o que estava acontecendo, suas crianças participavam de uma mistura cultural
que se tornaria indispensável para a estruturação do nacionalismo nas artes e
na literatura brasileira.
SÉRGIO
BITTENCOURT-SAMPAIO É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MÚSICA E AUTOR DE MÚSICA
EM QUESTÃO (MAUAD, 2014).
Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA
BIBLIOTECA NACIONAL - ano 11 - nº 124 - junho 2016
Saiba Mais: Bibliografia
FREYRE, Gilberto.
Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1989.
LIMA, Ivana
Stolze & CARMO, Laura do. História social da língua nacional. Rio de
Janeiro: NAU Editora/ Faperj, 2014.
SCHLICHTHORST,
Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826). Uma vez e nunca mais.
Brasília: Ed. Senado Federal, 2000.
XAVIER, Giovana;
FARIAS, Juliana Barreto & GOMES, Flavio (orgs.). Mulheres negras no Brasil
escravista e pós-emancipação. São Paulo: Ed. Selo Negro, 2012
Saiba Mais: Link