Como os Aliados ganharam a guerra, o delírio nazista de transformar a
América do Sul em colônia do III Reich não foi em frente. Mas forneceu ao acadêmico
e embaixador Sérgio Corrêa da Costa os elementos para um livro
interessantíssimo: Crônica de uma
guerra secreta, que está sendo lançado
[...] pela Editora Record. Misturando espionagem política, mistério, aventuras
e impressões pessoais, o autor faz revelações surpreendentes sobre uma aliança
entre a Argentina, na época governada por Juan Domingo Perón, e a Alemanha
nazista, com vistas ao domínio da América do Sul.
Jovem diplomata servindo em Buenos Aires entre 1944 e 1946, Corrêa de
Castro teve acesso, "muito antes de James Bond nos ter ensinado o
caminho", aos "recintos mais vigiados" do Archivo General de la
Nación e conseguiu fotografar documentos ultrassecretos, nas suas palavras
"altamente comprometedores do governo argentino".
De fato, algumas frases de Perón
reunidas pelo autor soam hoje quase inacreditáveis. "Uma vez caído o
Brasil, o continente sul-americano será nosso", escreveu o então coronel
Perón no manifesto do Grupo de Oficiais Unidos (GOU), em 1943, poucas semanas
antes de assumir o governo. E acrescentou: "A luta de Hitler, na paz e na
guerra, nos servirá de guia". A rivalidade histórica da Argentina em
relação ao Brasil ganhou força quando o nazismo ascendeu ao poder na Alemanha.
A ideia de Hitler não era dominar nosso país militarmente, mas por uma
eficiente estratégia de infiltração que incluía pesados investimentos em
propaganda. Disse ele: "Não desembarcaremos tropas como Guilherme, o
Conquistador, para dominar o Brasil pela força das armas. Nossas armas não são
visíveis. Nossos 'conquistadores' [...] têm uma tarefa mais difícil que a dos
originais, razão pela qual disporão de armas igualmente mais difíceis".
A seguir, trechos do capítulo 11 de Crônica de uma guerra secreta, que
no livro se intitula "O desmembramento do Brasil". Nossa História
agradece ao autor e à Editora Record pela autorização para a publicação.
"Criaremos no Brasil uma
nova Alemanha. Encontraremos lá tudo de que necessitamos."
Adolf Hitler, 1933
O jornalista francês Pierre
Dehillotte, antigo redator do Temps e
do Journal des Débats, dedicou-se
intensamente ao estudo da Gestapo, sua organização, estruturas de comando e,
notadamente, as atividades dos agentes enviados ao exterior. Correspondente em
Berlim e, a seguir, em Viena e Praga, entre 1932 e 1938, pôde acompanhar muito
de perto a ascensão de Hitler e a montagem dos planos nazistas de domínio da
Europa. Foi, portanto, testemunha ocular dos dramas que sacudiram,
consecutivamente, a Alemanha democrática, a Áustria independente e a
Tchecoslováquia livre. Suas antevisões e profecias foram argutas e precisas,
evidência de acuidade do observador político.
O coordenador dos serviços com quem
se entreteve chamava-se Herr
Kurtfalkenraum, cordial e atento, cabelos grisalhos e uniforme da
Wilhelmstrasse. Não recorreu a subterfúgios ou escusas e discorreu, com
naturalidade, sobre os trabalhos em curso. Àquela altura - alguns anos antes do
início do conflito - parecia normal que o Terceiro Reich procurasse a melhor
maneira de dotar o povo alemão do espaço vital de que necessitava. Segundo os slogans hitleristas, uma vez que a
distribuição das terras havia sido feita ao azar das conquistas de ontem -
portanto de maneira injusta e antieconômica -, o status quo não deixava margem a uma distribuição equitativa das
matérias-primas. O continente sul-americano, sobretudo o Brasil, com seus 8
milhões de quilômetros quadrados quase desabitados e inexplorados, bastava para
comprovar a validade do teorema nazista dos espaços vitais a conquistar e a
redistribuir. "A América do Sul", afirmavam os apóstolos do Lebensraum de ultramar, "fornecerá
a solução definitiva ao problema demográfico europeu." Logo que "esse
continente de mestiços se tornar um protetorado alemão", expressão
atribuída a Adolf Hitler, "a emigração europeia deverá ser intensificada
por um organismo especial e se dirigirá de preferência aos países
latino-americanos".
"Aqueles fichários, dossiês e
atlas", escreveu Dehillotte, "cogitavam nada menos que da
reorganização e emprego das futuras populações conquistadas da Grande Alemanha
Nacional-socialista. Nesta seção especial e discreta", concluiu com fino
humor, "pacientes estatísticos cortavam e recortavam as peles dos ursos
árticos e antárticos antes de tê-los matado."
(...)
Como acabamos de ver, é antigo o
gosto alemão pela geografia política, posta a serviço de desígnios de expansão
territorial. Muito antes da confecção do mapa nazista em que foi redesenhada a
América do Sul, outros ensaios foram feitos, invariavelmente levados a sério.
Começo esta evocação do caso
brasileiro pelos estudos do pensador pangermânico, Otto Richard Tannenberg,
considerado, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o mais autorizado
porta-voz do esquema de hegemonia mundial. No seu GrossDeutschland, die Arbeit des 20. Jahrhunderts (A Grande Alemanha,
obra do século XX), publicado em Leipzig, 1911, Tannenberg estabelece o
princípio da repartição das Américas Central e do Sul entre as grandes
potências imperialistas, reservando para a Alemanha a zona subtropical banhada
pelo Atlântico.
Por que tantos "estados"
nas Américas Central e do Sul? Simplesmente - pontifica Tannenberg porque
Espanha e Portugal "se mostraram incapazes de governar países no
ultramar". Ora, continua, os habitantes nada conseguiram de bom, pois
tampouco se encontram em condições de se governarem. Um déspota tenta suplantar
o outro, o que explica as contínuas revoluções e sangrentas guerras em proveito
de algum tiranete, ávido de glória e de riqueza, enquanto se mantém o povo
oprimido e na ignorância. Em contraste com a América anglo-saxã, em que os
indígenas desapareceram quase por completo, nos demais países são os brancos
que se encontram em via de desaparição. No Paraguai e no Peru, exemplifica,
constituem apenas 14% da população. No Equador, o percentual desce a 7%, na
Colômbia a 6%. O restante da população "se compõe, aproximadamente e em
igual proporção, de mestiços e gente de cor, índios ou negros".
"A América meridional alemã nos
proporcionará, na zona temperada, um espaço de colonização onde nossos
emigrantes conservarão sua língua e autonomia. Exigiremos, porém, que o alemão
seja ensinado nas escolas como segunda língua. O Sul do Brasil, o Paraguai e o
Uruguai são países de cultura alemã. O alemão passará a ser a língua
nacional."
Seria este o "Primeiro Estado
Alemão Americano Independente". Primeiro, porque concebido como pedra
angular de um outro, especialíssimo - a "Alemanha Antártica", menina
dos olhos de vários geopolíticos alemães.
Tal como no texto de Tannenberg, o
atlas Deutschland und die Welt (Alemanha
e o mundo), concluído pouco antes do início da Segunda Guerra, indica
também as fronteiras da Alemanha Sul-Americana, em que o Sul do Brasil volta a aparecer,
nitidamente, como colônia alemã.
Ao evocar essa e outras demonstrações
do imperialismo germânico, um ilustre pensador político uruguaio, Hugo
Fernandez Artucio, assinala que, a despeito das aparências fantasiosas, vinham
sendo objeto de séria consideração havia um século, talvez mais. Cita o grande
estadista e pensador argentino Domingo Faustino Sarmiento, que transcreveu, no El Nacional, comentário de La Revue Politique et Littéraire, de 13
de maio de 1882, a propósito de dois artigos na revista Deutsche Rundschau sobre as futuras colônias alemãs. O primeiro
procura demonstrar a necessidade de a Alemanha dispor de suas próprias colônias
para receber os emigrantes que levam trabalho e indústria a países
estrangeiros. As províncias do Rio Grande do Sul e do Paraná seriam
particularmente adequadas, já dispondo de importante componente germânico.
Argentina, Uruguai e Paraguai são também citados como ideais para a colonização
alemã.
"Não será necessário o emprego
da força, pois o governo alemão somente interviria para assegurar aos seus
nacionais os direitos consagrados nos tratado. A tarefa será empreendida por
uma empresa privada, de enorme capital, a qual espalhará suas raízes em toda a
Alemanha. O espírito que inspira o empreendimento fará com que, após um certo
tempo, os países colonizados se transformem - ipso facto - em colônias alemãs. Tal como disse Bismarck: 'O fato
cria o direito'."
(...)
Radicados no Brasil segundo planos
traçados pelo governo alemão, os colonos encontraram um país em que o governo,
se pouco ou quase nada fazia por eles, também não impunha restrições ao
desenvolvimento de suas atividades. Portanto, um cenário ideal para os planos
de subversão nazista. De modo geral, os colonos manifestavam discreto interesse
pelo país, evitavam disputar cargos eletivos, procurando seguir com muito maior
interesse o que se passava na mãe pátria. Casos como os de Lauro Muller e
Adolfo Konder, governadores de Santa Catarina, eram relativamente raros. Lauro
Muller, ministro das Relações Exteriores em 1913, renunciou ao cargo em
protesto contra a decisão brasileira de romper com o Império Alemão, na
Primeira Guerra Mundial.
A conjuntura brasileira em 1933-34 - primeiros
anos do reinado de Hitler - oferecia um cenário particularmente favorável aos
planos sinistros do nacional-socialismo. Os efeitos da depressão americana de
1929 ainda se faziam sentir. Nossas exportações continuavam em níveis
baixíssimos, o governo Vargas ainda buscando se consolidar no poder, uma vez
vencida a guerra civil paulista, porém sem lograr inverter a persistência de
distúrbios aqui e acolá no imenso país. (...)
Em São Paulo, os nazistas se deram
conta de que se impunha cautela especial, por julgarem ser o estado mais
"democrático" do país e representar a mais vigorosa oposição ao
regime Vargas. O Partido Nacional-socialista, representado por K. von Spanus,
era organizado em círculos, blocos e células. Chr. Wifler era o responsável
pelos círculos, sendo os principais os do norte, leste, sul e oeste do estado,
sob os codinomes "Sellge", "Syanpius", "Andriessen"
e "Eisdendecker". As ordens do partido eram transmitidas
exclusivamente por mensageiros e cada responsável usava um codinome e número de
telefone também em código. Durante certo tempo, o partido chegou a manter
colaboração estreita com a polícia estadual, o que não escapou ao atilado major
Aurélio da Silva Py. Sua detida investigação da infiltração fascista no Sul do
país revela que se alguém ousasse levantar a voz contra o Partido Nazista em
reunião sindical, ou em qualquer outra, no estado de São Paulo, seria pouco
depois detido pela polícia para averiguações. Líderes trabalhistas, estudantes
e intelectuais de esquerda foram sequestrados, porém invariavelmente dados como
"desaparecidos". O caso de maior repercussão foi o do assassinato de
Tobias Warchawski, denunciado pela imprensa independente como mais um crime
monstruoso de nazi-integralistas.
Para a Alemanha, os imigrantes e seus
descendentes - um milhão, ou quase, de pessoas de raça ariana - eram súditos do
Reich, portanto com os mesmos direitos e obrigações dos que viviam na mãe
pátria. Nessa dicotomia, obviamente, se encontrava a principal razão de choque
com as leis brasileiras. Segundo o raciocínio alemão, Buenos Aires e Montevidéu,
onde contavam com apoios amplos e seguros, somados a São Paulo, a Detroit
sul-americana, ofereciam a possibilidade de transformar, a curto prazo, os
respectivos parques industriais em potente indústria bélica. (...)
Como já assinalei, um dos programas
de Adolf Hitler era a incorporação pura e simples à Alemanha de todos os
territórios onde houvesse minoria alemã. Em primeiro lugar, na Europa. Logo a
seguir, na América do Sul, onde as atenções se concentraram na Argentina, no
Brasil e no Chile, todos já com uma apreciável base étnica germânica. Dos três,
a Argentina mereceu atenção prioritária. Além de ser o único país europeu na
região, culturalmente superior aos demais, não tinha, por exemplo, o
complicador do gigantismo brasileiro.
O gigantismo, porém, poderia ser
facilmente corrigido. Desde logo, os três estados do Sul, já devidamente
germanizados, não tinham por que permanecer atrelados ao imenso complexo
luso-afro-ameríndio. O Reich não abriria mão do milhão de Reichsãeutschen ou Volksdeutschen
radicados no Brasil, todos sob proteção alemã. "Cada gota de sangue alemão
precisa ser preservada", proclamava Ernst Wilhelm Bohle, Gauleiter da organização dos alemães no
exterior. "Não pode haver pecado maior que o de renunciar voluntariamente
ao sangue alemão!"
Megalomania ou não, o fato é que as
tensões teuto-brasileiras criadas pelo nosso programa de nacionalização das
áreas de forte presença estrangeira deram lugar a reações extremas, inclusive à
cogitação de - a curto prazo - separar do Brasil os estados sulinos. Em estranho
relatório enviado a Berlim, o embaixador Karl Ritter estuda a posição
geopolítica e estratégica desses estados, salientando a "inexistência de
comunicações ferroviárias com o resto do país". Assim sendo, as
autoridades centrais não teriam condições de restabelecer o controle sobre a
região "em caso de ataque argentino (sic).
Nesse caso", conclui, "somente os Estados Unidos poderiam opor-se a
um ataque de Buenos Aires". Não se trata de invenção minha. O que acabo de
assinalar se encontra, com todas as letras, em Documentos Diplomáticos da
Alemanha, dossiê "Politische Abteilung", doe. N. Pol. IX, 341, de 3
de março de 1938.
Dizer que a Argentina poderia ter
sido o trampolim para uma invasão do Sul do Brasil, com apoio alemão, e que o
Rio Grande, Santa Catarina e Paraná, então isolados fisicamente do Brasil,
viessem a constituir uma colônia alemã deve nos parecer hoje fantasia. Não,
porém, se tivermos em mente que, em 1940-41, o Terceiro Reich era senhor
absoluto da Europa, dispunha de bases na África, justo em frente do Brasil,
frotas de submarinos, e contava com a cooperação das poderosas e
bem-organizadas colônias alemãs na Argentina e no Sul do Brasil, já com seções
do Partido Nazista em plena atividade.
Não é segredo que gerações sucessivas
de militares brasileiros estiveram persuadidas da inevitabilidade de uma guerra
com a Argentina. Nossa região militar mais bem-equipada foi sempre a terceira,
no Rio Grande do Sul, e o traçado de nossas estradas visou, por muito tempo, a
não facilitar a penetração do inimigo.
O fato de o Brasil ter mais do que o
triplo da área e da população da Argentina constituiu, naturalmente, motivo de
preocupação para gerações consecutivas de homens públicos, empenhados na
reversão dessa cruel realidade.
(...)
Mesmo se Hitler perdesse - era o
raciocínio -, os súditos do Eixo poderiam se deslocar com seus recursos
financeiros e técnicos para a Argentina. Mas, se ganhasse, a Argentina seria a
única nação americana com o direito de atravessar fronteiras e resolver
definitivamente seus problemas geopolíticos, firmando-se no continente como a
nação líder. Comentário de Mário Martins, o jornalista que renunciou à função
burocrática no nosso escritório comercial em Buenos Aires para se concentrar na
investigação do que estava realmente acontecendo à sua volta: "A Casa
Rosada acompanhava a guerra na Europa como se fosse um espetáculo de bolsa de
valores". A fórmula encontrada foi a cooperação subterrânea, via
pseudoneutralidade que permitisse montar na América um trampolim contra as
nações vizinhas, a começar pelo Brasil, que se preparava para lutar na Europa
pela causa aliada, deixando as costas desguarnecidas e voltadas para as
baionetas de Buenos Aires.
Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 -
Outubro 2004
Saiba Mais – Links
Sem Palavras
Sem
Palavras resgata as vivências dos descendentes de alemães sobre a perseguição
ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial no Sul do Brasil, região colonizada
por alemães no século 19. A Campanha de Nacionalização do presidente Getúlio
Vargas e a entrada do Brasil na Guerra em 1942, contra os países do Eixo,
aumentou a repressão aos estrangeiros e imigrantes daqueles países. O
documentário mostra um dos lados da história, relatado por quem era criança e
descendente de alemão nos anos 1940. A memória é subjetiva, porém verdadeira,
mesmo quando parece distorcida dentro da história oficial, essa sim muito mais
complexa.
Direção: Kátia
Klock
Ano:
2009
Duração:
52 minutos