Desde os primeiros anos da industrialização, o uso de mão de obra infantil vem sendo prática frequente no país, fazendo com que milhares de crianças troquem a infância pelo trabalho.
Rosilene Alvim
Mãos pequenas e
salários idem. O secretário-geral do CIFTA de São Paulo, Puppo Nogueira,
declarou em 1928 ao jorna Diário Popular que, se a lei fosse mesmo
cumprida, ia ser difícil encontrar adultos para substituírem os menores nas
indústrias, pois estes se dedicavam a tarefas pouco remuneradas e por isso sem
atrativos para um pai de família: "Mesmo que [os adultos] aceitassem,
nesse caso, nada poderiam fazer, seu rendimento seria nulo, uma vez que os
menores fazem trabalhos ideados para a sua pequena estatura e para as suas
forças, havendo grande número de máquinas para eles construídas. Um determinado
trabalho, que uma criança de 14 anos faz sem cansaço, esgotaria um adulto ao
cabo de algumas horas (...). Uma criança é capaz de fazer grande número de
movimentos sem fadiga apreciável, tem agilidade da infância e um organismo
íntegro".
A argumentação do
patronato é vastíssima, mas tudo pode ser resumido no seguinte cenário: o
trabalho infantil, visto hoje por muitos segmentos da sociedade como uma forma
de exploração, era apresentado pelos empresários como um favor que prestavam à
infância carente, às famílias operárias e, consequentemente, à sociedade. Além
das supostas vantagens anatômicas infantis, era sempre melhor para as crianças
ficar dentro das fábricas do que permanecer nas ruas, na ausência dos pais,
expostas à delinquência e a toda sorte de perigo.
De fato, na vila
operária da Companhia de Tecidos Paulista, cujo apogeu se deu entre os anos
1930- 50, o trabalho dos jovens e crianças era representado como uma
"ajuda" econômica, que vinha para reforçar a autoridade do chefe de
família. A fábrica costumava ser vista pelos patrões como uma escola, um lugar
que podia formar um cidadão para o futuro. Hoje, esse argumento do passado,
reforçado no Brasil pela problemática dos "meninos e meninas de rua",
continua sendo compartilhado não apenas por empresários, mas também por
famílias operárias, que enxergam o trabalho dos filhos jovens, de ambos os
sexos, como uma contribuição para a manutenção da casa e do núcleo familiar.
O trabalho
infantil vem sendo objeto de críticas desde a Revolução Industrial, no fim do
século XIX, e a literatura sobre a constituição da classe operária europeia
apresenta frequentemente essa questão. O trabalho pioneiro de Peter Gaskell
sobre a "população manufatureira da Inglaterra", em que se baseou
largamente Engels, inclui o "exame do trabalho infantil" no próprio subtítulo.
O Livro I de O capital, de Karl Marx, trata do trabalho infantil nos
capítulos sobre a "jornada de trabalho" e sobre a "maquinaria e
a grande indústria". Já historiadores ingleses como J. L. e Barbara
Hammond, que abordaram o assunto em 1917, consideram que "o emprego de
crianças numa vasta escala durante a primeira fase da Revolução Industrial é a
característica mais importante da vida inglesa".
Na Inglaterra, o trabalho de
crianças era empregado não apenas na indústria têxtil, mas nas áreas de mineração
e em outras atividades, e algumas leis foram formuladas na época para proteger
as crianças das longas jornadas a que eram submetidas. No Brasil, um a lei do
final do século XIX proibira o trabalho do adolescente entre 14 e 15 anos, mas
a legislação só se cristalizou com a Consolidação das Leis do Trabalho, em
1943. Ao estabelecer a idade mínima (14 anos) e o horário de trabalho para
menores, a CLT produziu grande resistência por parte dos patrões, especialmente
em São Paulo e no Rio de Janeiro, antiga capital da República.
"A questão
[da regulamentação do trabalho dos menores] relaciona-se com o desenvolvimento
físico e moral das crianças, afeta, além disso, direta e grandemente, a
economia da família operária, e tem também bastante importância para certos
trabalhos nas fábricas que só podem ser feitos convenientemente por
crianças."
"Os
operários da fábrica empenham-se fortemente, para obterem estas colocações para
seus filhos e parentes, e sempre que eu lhes objeto achar prematuro o trabalho
para estes petizes."
"As crianças
suportam perfeitamente bem, por exemplo, cinco horas de trabalho seguido, e
assim poder-se-ia, ainda, estabelecer a frequência obrigatória da escola, por
algumas horas, ora à manhã, ora à tarde, pelas respectivas turmas alternadas.
Naturalmente, para isso, é preciso, sempre, que a escola apareça."
Podem-se associar
essas considerações de Jorge Street ao que viria a escrever o historiador
Philippe Aries sobre a formação da concepção de infância na Europa:"(...)
Durante a primeira metade do século XIX, sob a influência da mão de obra na
indústria têxtil, o trabalho de crianças conservou uma característica da
sociedade medieval: a precocidade da passagem para a idade adulta". É evidente
que a lógica dos patrões difere da lógica dos trabalhadores. Para estes, só um
a situação de extrema penúria justifica que seus filhos passem a ficar
inteiramente subordinados ao trabalho fabril ou ao trabalho assalariado no
campo. À parte esses casos extremos, não é "estranho", no entanto,
que busquem através do trabalho dos filhos, mesmo crianças, meios para a
manutenção do seu grupo doméstico.
Enquanto na indústria, por força
da legislação, da fiscalização trabalhista e das transformações por que
passaram as fábricas, o trabalho realizado por menores diminuiu
consideravelmente, na agricultura a questão vem chamando a atenção: com a
extensão da legislação social ao campo, a partir dos anos 1960, e com a criação
de sindicatos de trabalhadores rurais, antes proibidos, o uso de mão de obra
infantil assalariada no trabalho rural, realidade ainda hoje muito presente, se
tornou foco de pressões sociais em diversas instâncias. Assim, a partir dos
anos 1980, entidades de trabalhadores rurais passaram a aderir a campanhas
promovidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Unicef e ONGs
nacionais, voltadas para denúncias contra o trabalho infantil. Em 1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente proibiu definitivamente o trabalho de
crianças e regulou a forma do trabalho do adolescente (entre 14 e 18 anos).
Segundo o
suplemento especial da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD),
"o nível da ocupação (percentual de pessoas ocupadas na população do mesmo
grupo etário) das crianças e adolescentes vem apresentando redução ao longo dos
anos. Entre os fatores que contribuíram para essa evolução estão as políticas
implementadas pelas três esferas governamentais voltadas para proporcionar
condições para que as crianças tenham acesso ao ensino, permaneçam na escola e,
também, não precisem trabalhar para auxiliar no sustento da família".
Várias ONGs, com apoio da OIT, desenvolvem ações relacionadas ao trabalho
infantil, das quais posteriormente o governo participa através de fóruns e do
fornecimento de bolsas para que as crianças não trabalhem.
Há, na verdade,
no Brasil de hoje, uma grande mobilização - com o lema "lugar da criança é
na escola" -, que atinge também os empresários. Desde 1994, o Fórum pela
Erradicação do Trabalho Infantil, que reúne o Unicef, OIT e mais quarenta
organizações governamentais e não-governamentais, assim como associações
patronais e sindicatos, vem atuando no sentido de impedir o uso do trabalho
infantil e as condições de trabalho subumanas a que são submetidos os
adolescentes no Brasil e outros países. Paralelamente, o governo federal criou
o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que atinge não só a área rural
como também a urbana.
Em consequência, a taxa do analfabetismo entre essas crianças atinge 20,1% contra 7,6% dascrianças que não trabalham. Na faixa etária de 15 a 17 anos, também se notam os efeitos danosos do trabalho sobre a escolarização. Entre os adolescentes que trabalham, somente 25,5% conseguiram concluir os oito anos de escolaridade, enquanto entre os que não trabalham o percentual foi significativamente maior: 44,2%.
No entanto,
apesar de todo o esforço para eliminar a exploração do trabalho de crianças e
adolescentes, sabe-se que ainda se encontram menores trabalhando nas
carvoarias, em plantações de tomate que utilizam grandes quantidades de veneno,
no corte da cana, na agricultura do sisal, na plantação e colheita do mate e
nas indústrias caseiras, como a da confecção de calçados. Na área urbana,
registra-se o comércio ambulante e outras atividades exercidas por menores nos
sinais de trânsito. Todas essas formas de trabalho são nocivas ao
desenvolvimento de crianças e adolescentes que, mesmo frequentando a escola,
não podem ter o mesmo rendimento de crianças e adolescentes que só estudam.
As justificativas
para essas formas de trabalho de crianças e adolescentes vêm acompanhadas pelos
mesmos argumentos dos primeiros industriais brasileiros: o trabalho infantil e
o do adolescente é necessário para a renda familiar e ao mesmo tempo evita que
estes entrem para o mundo do crime, permitindo que através dessas atividades se
formem bons cidadãos no futuro. Embora muito mais difíceis sejam as
perspectivas de carreira dos atuais trabalhadores infantis, se comparados aos
aprendizes operários do passado, que chegaram a prosseguir no trabalho industrial
até sua aposentadoria, o argumento do valor do trabalho (influenciado pelo
antigo modelo ideal do trabalho familiar), mesmo que sem futuro objetivo, ainda
permanece.
À crescente
gravidade da questão (que inclui o aumento do mercado de trabalho da
contravenção e da criminalidade) se opõe a crescente mobilização de movimentos
e entidades, agora inclusive de vanguardas patronais, nas suas tentativas de
resolver o problema. Tudo isso passou a inspirar políticas estatais de
transferência de renda condicionadas à frequência escolar. Para a resolução do
problema, o que se destaca, seguramente, é a necessidade de uma política
educacional qualitativa de base, que transforme a escola numa instituição
central na vida das crianças e dos jovens, aberta aos problemas e às
potencialidades das classes populares, nas cidades e nas áreas rurais.
ROSILENE ALVIM É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ), DOUTORA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA MESMA UNIVERSIDADE E CO-ORGANIZADORA DE JOVENS & JUVENTUDES (EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB, 2005).
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005
Saiba mais - Bibliografia
ARIES,
Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: LTC, 1981.
PINHEIRO,
Paulo Sergio e Hall, Michel. A classe operária no Brasil 1889- 1930
documentos. São Paulo: Alpha Ômega, vol. 2, 1981.
THOMPSON,
E.P A Formação da classe operária na Inglaterra. São Paulo: Paz e Terra,
vol. 2, 1987
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