JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Ano
de 1889: centenário da Revolução Francesa. A corrente jacobina dos republicanos
brasileiros julgava ser essa a ocasião ideal para a proclamação de nossa
República, que deveria, segundo ela, ser feita revolucionariamente pelo povo
lutando nas ruas e nas barricadas. O principal porta-voz dessa corrente, Silva
Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde d'Eu, o marido da princesa
Isabel. Sendo o conde um nobre francês, seu eventual fuzilamento daria à
revolução brasileira um sabor especial, pois lembraria a morte na guilhotina do
rei Luís XVI.
Um ponto central da propaganda
republicana era a ideia de autogoverno, do povo governando a si mesmo, do país
se autodirigindo, sem necessidade de uma família real de origem europeia e de
um imperador hereditário. Das três correntes principais da propaganda, a
jacobina era a que atribuía maior protagonismo ao povo.
A corrente mais forte era a
liberal-federalista, de derivação anglo-americana. O liberalismo vinha do lado
anglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norte-americano. O liberalismo
predominou no Manifesto Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha
Marinho, e o federalismo, no projeto de constituição dos republicanos paulistas
de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por sua
ascendência liberal, oriunda dos liberais do Império, ela admitia participação
popular, embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos.
Pelo lado federalista, no entanto, não havia muita simpatia pelo povo.
Interessava-lhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo
federalismo.
A terceira corrente era a
positivista, também de filiação francesa, não da Revolução, mas do filósofo
Augusto Comte. Os positivistas eram os únicos que não previam papel ativo para
o povo na República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os
próprios positivistas, no campo material, os empresários. Os positivistas não
admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores, era
trabalhar, o dever dos empresários e o do Estado era cuidar do bem-estar do
povo.
Prometida
pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia
política, a incorporação do povo, foi posta em prática pelo novo regime. A
primeira década republicana foi marcada pela presença de militares no governo,
por agitações, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presença durante o
governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participação
jacobina atingiu o ponto máximo na tentativa de assassinato do presidente
Prudente de Morais, em 1897. A partir do próximo presidente, Campos Sales, a
corrente liberal-federalista, sob a hegemonia de São Paulo, passou a
predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.
Até 1930, pode-se dividir o povo
da República em três partes. Imaginemos um grande círculo que representa o
total da população do país; as fatias dividem essa população de acordo com sua
participação política. Assim, a fatia grande representa o povo excluído
formalmente da participação via direito do voto. Já a fatia menor representa o
povo político, isto é a parcela da população que tinha o direito de voto de
acordo com a Constituição de 1891; essa pequena fatia contém uma subdivisão que
representa o povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que realmente
votava.
De acordo com os dados do censo
de 1920, teremos uma população total, representada pelo círculo maior, de 30,6
milhões. Este é o povo do censo que, pelo menos em tese, possuía direitos
civis. Mas quantos desses cidadãos civis eram também cidadãos políticos,
quantos pertenciam ao corpo político da nação? Para calcular esse número, temos
primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O
analfabetismo, na época, atingia 75,5% da população. Feito o cálculo, restam
7,5 milhões. Depois, é preciso descontar as mulheres. Embora a lei não lhes
negasse explicitamente o direito do voto, pela tradição não votavam. Ficamos
com 4,5 milhões. Os estrangeiros também não tinham o direito do voto. Nosso
número cai para 3,9 milhões. Finalmente, os homens menores de 21 anos também
não votavam. Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de brasileiros legalmente
autorizados a participar do sistema político por meio do voto. Ficam fora do
sistema, excluídos, 28,2 milhões, 92% da população.
Se eram poucos os que podiam
votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleições presidenciais de
1910, uma das poucas em que houve competição, disputando Rui Barbosa contra o
marechal Hermes da Fonseca, a abstenção foi de 40%. Os votantes representaram
apenas 2,7% da população. No Rio de Janeiro, capital da República, onde 20% da
população estava apta a votar, compareceu às urnas menos de 1%. Votar na capital
era até mesmo perigoso devido à ação dos capangas a serviço dos candidatos.
Quem tinha juízo ficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua República dos
Bruzundangas: "[Os políticos] tinham conseguido quase totalmente eliminar
do aparelho eleitoral este elemento perturbador - o voto". A eliminação do
voto completava-se com a fraude. Ninguém podia ter certeza de que seu voto
seria contado a favor do candidato certo.
Significa isso que o povo da
Primeira República não passava da carneirada dos currais eleitorais e da massa
apática dos excluídos? Seguramente que não. Por fora do sistema legal de
representação, havia ação política, muitas vezes violenta. Entre os poucos que
votavam, os que escolhiam não votar e os muitos que não podiam votar, havia o
que chamo de povo da rua, isto é, a parcela da população que agia
politicamente, mas à margem do sistema político, e às vezes contra ele. É
difícil calcular o tamanho desse povo. Podemos apenas surpreendê-lo em suas
manifestações. E podemos também dizer que ele existia tanto nas cidades como no
campo.
Nas
cidades, sobretudo nas maiores, a tradição de protesto vinha de longe e
manifestava-se o mais das vezes nos quebra-quebras. Ela se intensificou a
partir da proclamação da República, atingindo o ponto máximo no protesto contra
a vacinação obrigatória em 1904. A novidade republicana ficou por conta do
movimento operário em fase de organização. Foram inúmeras as greves que atingiram
a capital da República e São Paulo, além de outras capitais. Seu auge
verificou-se durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos que a seguiram.
Calculou-se que 236 greves foram feitas na capital e no estado de São Paulo
entre 1917 e 1920, envolvendo cerca de 300 mil operários. Em torno de 100 mil
operários participaram da greve geral de 1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade
republicana foi a participação política dos militares, jovens oficiais e
praças. A mais conhecida e mais dramática dessas manifestações foi a revolta
dos marinheiros contra o uso da chibata, em 1910, em que se destacou o
marinheiro João Cândido.
O efeito político das manifestações
urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formais de
representação. O próprio movimento operário, na medida em que era orientado
pelo anarcossindicalismo, sobretudo em São Paulo, fugia da participação
eleitoral e nunca organizou um partido político duradouro até que fosse fundado
o Partido Comunista, em 1922.
No mundo rural, foi igualmente
intensa a participação do povo. Aí também havia uma longa tradição que foi
intensificada pelas mudanças políticas introduzidas pelo novo regime. As
figuras centrais das agitações rurais eram beatos e cangaceiros. O mais
dramático de todos esses movimentos, pelo número de mortos, foi sem dúvida o de
Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro
agiram politicamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanças
nas relações entre Igreja e Estado. Lutando contra a "lei do cão" do
novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exército, que contra eles lançou
quatro expedições, e deram um exemplo único em nossa história de fidelidade
incondicional às crenças adotadas.
Movimento semelhante ao de
Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paraná e
Santa Catarina. O monge João Maria dera-lhe início ainda no Império. Proclamada
a República, seu sucessor reagiu contra o que chamava de "lei da
perversão", o equivalente da "lei do cão" do Conselheiro. A
partir de 1911, outro sucessor de João Maria, José Maria, lançou um manifesto
monarquista e nomeou imperador um fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade
assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e sem comércio. Canudos e
Contestado foram combatidos e destruídos com violência pelo Exército, que não
hesitou em usar canhões contra sertanejos pobremente armados.
No Ceará, padre Cícero organizou
uma comunidade sertaneja que, à época de sua morte, em 1934, contava 40 mil
pessoas. Padre Cícero não contestava o sistema, como o Conselheiro e José
Maria. A seu modo, agindo mais como coronel político, fundou uma república
paternalista muito próxima da população. Manipulando valores tradicionais e
colocando-os a serviço da modernidade, reduziu a distância entre o legal e o
real, aproximou da população o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos
José Lourenço, Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo
do Contestado. Padre Cícero entendeu-se com os poderes da República e foi tolerado.
Os três beatos foram massacrados juntamente com seus seguidores.
Os cangaceiros, frutos do mesmo meio
social que gerou os beatos, mantinham, como padre Cícero, contatos estreitos
com os poderes da República. Mas fugiam ao controle dos coronéis e dos governos
estaduais. Foram também combatidos sem trégua e destruídos. Beatos e
cangaceiros representavam formas de organização e de reação construídas à
margem do sistema político. Canudos, Contestado, e mesmo o Juazeiro do padre
Cícero, eram modelos alternativos de república. Apesar de inviáveis por serem
produtos do isolamento geográfico e da imensa distância cultural entre a
população e o mundo oficial, essas repúblicas foram destruídas a ferro e fogo e
só deixaram traços na memória popular. A exceção foi Canudos, que foi
imortalizado por Euclides da Cunha, não por acaso um intelectual estranho no
ninho das elites.
O grosso do povo excluído era
mantido sob controle pela própria organização social do mundo rural, baseada na
grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de
cooptação e manipulação. O povo da rua era quase sempre tratado à bala, nas
cidades ou no campo.
Mas a República usou também
métodos menos violentos para lidar com seus excluídos. Produziu missionários do
progresso que se puseram a catequizar os cidadãos incultos e tratar os doentes.
Foram missionários do progresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro,
Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva e Belisário Pena, saneadores dos
sertões. O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivista
ortodoxo, que dedicou boa parte da vida à proteção dos indígenas. Muito
superiores pelos métodos aos que destruíam pela força os movimentos populares,
esses missionários não estiveram imunes a uma visão tecnocrática e autoritária.
O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida e
civilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferença de que não
tinham o apoio popular dos messias do sertão.
A Primeira República, em seus 41
anos de existência, não fez jus às promessas da propaganda de promover a
ampliação da participação política, o autogoverno do povo. Não unificou os três
povos, não os incorporou. Não transformou em cidadãos o jeca doente de Monteiro
Lobato e dos higienistas, o áspero sertanejo de Euclides, os beatos de Canudos
e do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista do movimento
operário.
A ausência de povo, eis o pecado
original da República. Esse pecado deixou marcas profundas na vida política do
país. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da
descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da
incapacidade que demonstra até hoje a República de produzir um governo
representativo de seus cidadãos?
JOSE MURILO DE CARVALHO E PROFESSOR TITULAR DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE OS BESTIALIZADOS
(COMPANHIA DAS LETRAS, 1987) E A CIDADANIA NO BRASIL: O LONGO CAMINHO
(CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2001).
Fonte: REVISTA DE HISTÓRIA DA
BIBLIOTECA NACIONAL - ano 01 - nº 05 – agosto 2005
Saiba Mais: Bibliografia
LESSA, Renato. A
invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira
República brasileira. São Paulo: Vértice: Rio de Janeiro: íuperj, 1988,
SILVA, Eduardo. As
queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988
Saiba Mais: Link
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