Seres
tomados por paixões, as mulheres não raciocinavam com a cabeça, e sim com a
genitália. Pelo menos era nisso que acreditava o filósofo Denis Diderot
(1713-1784), que ainda emendava: as mulheres estariam tão submetidas a seus
impulsos que suas almas – se é que mulher possuía alguma – estariam em suas
vaginas. Em seus escritos, ele chamava a genitália feminina, “carinhosamente”,
de “joia”: “Acho que a joia leva uma mulher a fazer mil coisas sem que ela
perceba. Já reparei, mais de uma vez, que uma mulher que pensava estar seguindo
sua cabeça, na verdade estava obedecendo à sua joia. Um grande filósofo situava
a alma masculina no cérebro. Se eu atribuísse às mulheres uma alma, sei onde a
situaria.”
Diderot não foi o único a pensar na mulher
desta forma. Boa parte dos “romances filosóficos” concebia suas personagens
femininas como “emocionalmente desequilibradas” e “irascíveis em suas paixões”,
mais propensas a caírem, inclusive, em um desregramento sexual. A origem desses
romances, no século XVIII, está relacionada ao Iluminismo. Alguns filósofos da
chamada “Época das Luzes” tentaram responder a perguntas sobre uma possível
natureza feminina. Afinal, o que se vê nas mulheres que não é possível ver nos
homens? Existe uma superioridade masculina com relação ao controle dos
sentimentos? Quais seriam, então, os “atributos” de uma “mulher virtuosa”? Em
diferentes oportunidades, os pensadores responderam a suas inquietações por
meio dos chamados “romances filosóficos”.
Além de Diderot, Montesquieu (1689-1755),
Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) e Crebillon Fils (1707-1777) fizeram
dos romances importantes veículos para a divulgação das ideias e dos ideais
iluministas, que criticavam a sociedade hierarquizada e a Igreja Católica.
Talvez tenha sido esse um dos motivos que levaram os romances a ser tão
perseguidos pela censura portuguesa no século XVIII.
Belo sexo
Mas as Luzes – e, consequentemente, os
romances – não se preocuparam apenas em avaliar e ironizar o trono e o clero. É
certo que entre os temas mais abordados pelas narrativas também apareceu, de
forma recorrente, a questão do feminino. Não teria sido fortuito, por exemplo,
o fato de que vários romances, logo em seus títulos, já fizessem menção ao
“belo sexo”. Foi o caso dos romances Teresa Filósofa (1749),
de Jean-Baptiste de Boyer, o marquês d’Argens (1704-1771), A Religiosa (1760),
de Denis Diderot, Júlia ou A Nova Heloísa (1761), de Rousseau,
e A Princesa de Babilônia (1768), de Voltaire.
Duas fases marcaram as opiniões dos
“romances filosóficos” sobre as mulheres. Em uma fase inicial – na primeira
metade do século XVIII –, as mulheres foram descritas de forma bastante
pejorativa, quase sempre relacionadas a “paixões”. Mas as mulheres não eram
descritas como possuidoras de uma paixão que, bem moderada, incentivava as
pessoas a cumprir seus objetivos. Não! Elas eram associadas a uma “má paixão”,
descontrolada, sem limites. Em suma: uma paixão que transformava os seres
humanos em criaturas quase irracionais.
Essa imagem lasciva da mulher teve
importantes consequências na caracterização das personagens dos romances. Em
geral, as heroínas da primeira metade do século XVIII possuíam características
físicas e psicológicas – juventude, beleza e voluptuosidade – que as inclinavam
“naturalmente” a viver suas paixões. Jovens, as personagens representavam uma
dupla imagem: a da mulher a ser deflorada e a da menina que começava a ser
impelida ao sexo por seus próprios sentidos – situação vivida, por exemplo,
pela personagem Teresa, do romance Teresa Filósofa. Bonitas, elas
seriam sempre desejadas e convidadas a viver suas paixões. Manon Lescaut, a
sensual protagonista de A História do Cavalheiro Des Grieux e Manon
Lescaut (1731), escrita pelo abade Prévost (1697-1763), é um exemplo
lapidar. Voluptuosas, as mulheres estariam constantemente com suas paixões
afloradas, como Fatmé, coadjuvante de Cartas Persas, romance de Montesquieu
publicado em 1721 e proibido pela censura portuguesa em 1771.
Mulheres orientais
Nessa obra, as “mulheres orientais” são
descritas por Montesquieu como seres tão desejosos de sexo que, para não se
“perderem”, deveriam ser trancafiadas e vigiadas, dia e noite, por eunucos.
Vistas como lúbricas ao extremo, estas infelizes prisioneiras não conseguiam
suportar – literalmente – a ausência do falo masculino. Somente por meio dele
suas “paixões” poderiam ser temporariamente saciadas. Fatmé, ao longo de todo o
romance, ilustrou bem este discurso. Presa em um serralho e distante de Usbek,
seu “senhor”, ela lamentava não poder saciar os desejos que tanto a castigavam.
Sofrendo com os ataques de suas paixões, Fatmé oscilava entre a resignação – a
fidelidade a Usbek – e o desespero – o anseio incontrolável por sexo. Até que,
no limite de sua resistência, desabafa, com rara franqueza, em carta a Usbek:
“Como é infeliz a mulher que tem desejos tão violentos quando está privada do
único meio de saciá-los; quando abandonada a si mesma, nada tendo que a possa
distrair, ela tem de habituar-se aos suspiros e viver no furor de uma paixão
irritada”.
Se havia
interesse pela juventude e pela voluptuosidade, o mesmo não se pode dizer sobre
personagens que viessem a representar os papéis de esposas e mães. Pouquíssimas
obras, entre 1721 a 1760, apresentavam esse perfil. A razão parece óbvia:
maternidade e matrimônio exigiam uma postura mais equilibrada das mulheres. E,
definitivamente, os romances da primeira metade do século XVIII não viam, nem
queriam ver, o feminino de tal forma. Interessavam-se mais pelas mulheres
apaixonadas. Afinal, na opinião manifestada em alguns romances, eram as que melhor
representavam a tão discutida e controvertida “natureza feminina”. Além disso,
tais personagens seriam, segundo os escritores do período, mais interessantes
para o público leitor. Sendo loucas em suas paixões, a possibilidade de as
heroínas se envolverem em cenas lascivas seria bastante considerável. E entre
ver esposas cuidando de seus afazeres domésticos e bisbilhotar belas jovens se
entregando ao sexo, havia os que preferiam esta última opção.
Uma alternativa que agradava aos leitores
deveria desagradar, e muito, aos censores portugueses. Basta lembrar que boa
parte dos romances proibidos foi de obras escritas e publicadas na primeira
metade do século XVIII. Boa parte, mas não a totalidade. A censura portuguesa
também proibiu um número considerável de obras lançadas após 1750. Dentre elas
estava Júlia ou A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, proibida
pelo Edital da Real Mesa Censória em 24 de setembro de 1770. Uma proibição que
– pensando especificamente no feminino – chega a surpreender. Sob vários
aspectos, a obra proibida de Rousseau se alinhava às opiniões de uma moral
religiosa que era apregoada às mulheres e que os tribunais censórios
portugueses tanto defendiam. Muito antes de corromper e ridicularizar valores
como a virgindade, o casamento, a fidelidade conjugal, o “dever” da mulher de
ser obediente ao homem – primeiro ao pai, depois ao marido – e o zelo materno,
temas caros à religião católica, A Nova Heloísa os
defendeu de forma explícita.
Olhar filosófico
Romance epistolar, com narrativa
desenvolvida a partir de cartas trocadas entre os personagens, A Nova
Heloísa marcou outro momento dos “romances filosóficos”, com novas
opiniões sobre o feminino. Nele, as mulheres não foram descritas apenas pelo
ângulo das “paixões”. O “belo sexo” passava a ser relacionado também a uma
ideia de virtude, que estava estreitamente ligada a três pilares: à virgindade
na juventude – afinal, “o amor nas moças é indecente e escandaloso e apenas um
esposo autorizaria um amante” –, ao matrimônio e à maternidade. Segundo
Rousseau, quando adulta, a mulher deveria saber qual é o seu lugar. A “mulher
virtuosa” seria a esposa casta e submissa e a mãe que prepara os filhos para
serem educados pelos homens: “Mas há um longo caminho dos seis anos aos 20; meu
filho não será sempre criança e, à medida que sua razão comece a nascer, a
intenção de seu pai é de realmente a deixar exercer. Quanto a mim, minha missão
não vai até lá. Alimento crianças e não tenho a presunção de querer formar
homens. Espero, disse, olhando seu marido, que mãos mais dignas se encarregarão
desse trabalho. Sou mulher e mãe, sei manter-me em meu lugar. Ainda uma vez, a
função de que estou encarregada não é a de educar meus filhos, mas de
prepará-los para serem educados”.
Essas opiniões novamente se refletiram na
caracterização das próprias personagens. Se nos romances anteriores à obra de
Rousseau as heroínas não foram pensadas para viver a maternidade e o
matrimônio, e sim para deixarem transparecer “os efeitos das paixões”, na Nova
Heloísa a situação se inverte. Neste romance, as personagens estão
envolvidas com suas futuras obrigações de mãe e esposa durante quase toda a
narrativa.
De Montesquieu a Rousseau, os “romances
filosóficos” estiveram longe de propagandear uma emancipação feminina. Suas
personagens bem demonstraram isso. Apaixonadas ou virtuosas, as mulheres foram
sempre vistas nas obras como seres inferiores aos homens, tanto em sua
capacidade psicológica quanto nos seus direitos perante a sociedade. A situação
era bem difícil: se ousassem expor seus sentimentos, seriam encaradas como
escravas de suas paixões. Se optassem por não abraçar a maternidade e o
matrimônio, estariam se afastando da virtude. Mas, apesar de tanta resistência,
as mulheres, mesmo vivendo em tal contexto, conquistaram importantes avanços. E
continuam conquistando. Apaixonadas e virtuosas.
Renato Sena Marques é autor da dissertação “O Discurso Iluminista sobre as Mulheres:
paixões, “funções” e virtudes femininas em personagens de romances” (UFJF,
2011).
Saiba Mais - Bibliografia
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