Não eram
gente, mas uma carga como qualquer outra. Num processo sobre o naufrágio de um
navio negreiro, em 1851, na costa da Bahia, os próprios africanos contaram como
era feito o transporte clandestino de escravos para o Brasil.
Ubiratan
Castro de Araújo
Meados do século XIX. O Brasil passa a
colaborar com a Inglaterra na vigilância sobre a rota da escravidão no
Atlântico. No auge da chamada crise do tráfico, o navio Relâmpago viaja.
Ele acaba de embarcar na África sua carga viva, sob o olhar atento da
Inglaterra, e vai desembarcá-la na Bahia sob o assédio de forças brasileiras.
Um mês depois de partir de Lagos, o mau tempo faz o navio encalhar já próximo
à praia na Bahia, facilitando o trabalho das autoridades.
Era o fim de uma viagem que percorreu toda
a Costa d'África, recolhendo cerca de 500 passageiros, até chegar desastradamente a seu destino em 29 de
outubro de 1851. Os dados aparecem no processo da auditoria da Marinha do
Brasil, existente no Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária,
registro 5-157-06, e foram aqui cruzados com informações do cônsul britânico em
Lagos, na Nigéria, dos arquivos do Foreign Office, o ministério de relações
exteriores da Inglaterra.
Apesar da ação policial, o processo
instaurado revelará uma mentalidade - e talvez uma atividade - ainda escravocrata
das autoridades brasileiras: por que fazer constar como porto de origem "Luanda"
e em "300" o número oficial de negros traficados, contra todas as
evidências processuais, se não para beneficiar os grandes traficantes baianos e
seus sócios e correspondentes da principal rota do tráfico para o Brasil, entre
Lagos e a Bahia?
Os personagens brancos do evento são
bastante conhecidos. O capitão era o veterano pirata do tráfico Benito
Denizan, um espanhol vindo da Venezuela, o que explica o castelhano de alguns
nomes na relação de portos. O destinatário da carga era Higino Pires Gomes, um
conhecido político liberal, lider militar da Sabinada, revolta baiana de 1837,
e proprietário do Engenho Pontinha, habitual ponto de desembarque de navios
negreiros na Bahia.
Menos de um mês depois do desembarque, lá
estão os negros, assustados e seminus, desfilando para as autoridades da
Auditoria da Marinha: 300 passageiros compulsórios, segundo os autos do
processo de apreensão do navio e do recurso interposto em defesa do traficante
Higino Pires Gomes; 500, segundo as informações do cônsul britânico em Lagos,
em que se baseiam o pesquisador Pierre Verger e o professor David Eltis. E os
negros vão passando no cortejo, um a um, alguns rebatizados com nomes bíblicos
para submeter também suas almas: Sem, Adão, Noé, Abel e Eva, cinco dos seis
únicos depoentes no processo do navio Relâmpago. Vamos ouvi-los.
Ele tinha mais ou menos 18 anos. Havia
alguns meses, saíra de seu país, Egba, na Costa d’África, para negociar no
país de Jebu, quando foi sequestrado para Lagos. Desde então nunca mais
perguntaram o seu nome. Passou mais de dois meses no reino de Onim, na região
de Lagos, encarcerado em uma grande cela comum, perto da praia, até que perdeu
o senso de direção. Tonto, sem saber onde estava, foi jogado num porão de navio,
no meio de uma multidão de estranhos. Ninguém perguntou o seu nome, nem ele o
de ninguém. Ignorava quem eram seus carcereiros. Sabia apenas que o capitão
era um homem branco,
corado,
alto, magro, com barbas do tipo suíças.
Depois de um mês dentro daquele baú de
madeira, sentiu o pavor da tempestade. O baú virava de um lado para outro, às
vezes parecia que ia mergulhar para o fundo das águas, às vezes empinava como
se fosse voar. Um grande barulho. Os paus todos rangiam. O bicho se debatia
como uma fera amarrada, até encalhar próximo à praia. No meio da confusão, nem
sabe ao certo se alguém o soltou ou se ele mesmo conseguiu se desvencilhar das
grilhetas.
Quando subiu do porão para o convés, não
viu o comandante e o resto da tripulação, que já estavam em terra com alguns
negros. Ele e muitos outros tinham ficado a bordo. Percebeu que havia uma
corda estendida entre o navio e a praia. Todos se precipitaram. Alguns
morreram afogados, outros conseguiram chegar em terra e outros foram
recolhidos pelos escaleres de um navio de guerra e transportados até a cidade.
Ele não calcula quantos morreram no
naufrágio porque não sentiu falta de ninguém, só lembra que o porão estava
cheio de desconhecidos, cativos como ele. Do escaler para um navio, do navio
para uma prisão, foi finalmente levado ao tribunal dos chefes dos marinheiros
que o haviam recolhido. Trouxeram uma mulher que falava algumas palavras de sua
língua. Ele dizia que o navio viera de Lagos e as autoridades repetiam um nome
estranho, Luanda. Sem razão aparente, Lagos, na Nigéria, era substituído por
Luanda, em Angola. Ninguém quis saber o seu nome. Passaram a chamá-lo de nº244 e de um estranho nome: Sem.
Não sabia que terra era essa, não sabia
que cidade era essa, não sabia que pelas leis brasileiras era um homem livre.
Mas ainda assim, Sem era um homem sem liberdade.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCIZ3stURuyZXAhBu5e8CIupCFTVZNhw_igdAHTTlk8XsU8D4SP3GMOX-ySJ2mCKDu4LyMzTH0oE8gNaAzAMAIRl11BT7Cw1wCs9Sxn6AICKsHD34GG8V92T_Ko41BnyrvTP3w-baTAEw/s320/Viagem+%25C3%25A0+escravid%25C3%25A3o+02.png)
Ainda para representar a família bíblica
original, a outro deram o nome de Abel. Era um rapaz de vinte anos, "cinco
pés e seis e meia polegadas de altura, cara oval, olhos e orelhas pequenas,
nariz e boca regulares, corpo grosso porém magro, pés pequenos". Diz ele
ser natural de Ouri, onde em pequeno foi vendido para Jebu, constando ter sido
levado para Luanda - provavelmente, Lagos -, onde ficou por três dias. Foi
salvo do mesmo naufrágio por quatro pretos remadores e alguns tripulantes
brancos de um saveiro ou baleeira, que retornou lotado para terra.
Este era um haussá, "com cinco pés e
nove polegadas de altura, cara oval, com sinais de haussá (três pequenos
riscos de cada lado da face), orelhas pequenas, olhos e nariz regulares,
lábios grossos, de vinte e um anos de idade um pouco mais ou menos, semblante
alegre, corpo regular, pés grandes". Ele contou que foi para o convés da
embarcação depois do encalhe. Não viu nem o capitão nem a tripulação, mas
reparou que muitos dos pretos ainda a bordo mergulhavam até uma corda que
estava lançada do navio para a terra. Ele seguiu o exemplo dos outros.
Chegando à praia, foi conduzido com muitos pretos pelo mato, escoltados por
diversos pretos armados e um moço branco. Após quase três dias de marcha, foram
apreendidos pelas forças do governo, depois de alguma resistência da qual
resultou um ferido entre os traficantes.
O corpo das mulheres nagôs é descrito no
processo com a maior atenção: entre sete e 11 anos estão as meninas; entre 12 e 17, as mocinhas já menstruadas;
a partir de 18, as mulheres adultas, tudo para assinalar sua idade reprodutiva, a saúde e
a estética. Em 1851, quando a repressão nos dois lados do Atlântico chegava a um ponto máximo,
percebe-se na composição do contingente transportado um cuidado com a
reprodução futura da escravidão no Brasil: um número expressivo de mulheres,
em sua maioria adolescentes. Essa preocupação aparece no relato dos africanos
interrogados. Todos afirmam que o comandante e a tripulação trataram de salvar
nos escaleres as mulheres, os moleques e os molecões, ou seja, as crianças e
adolescentes, deixando morrer os mais velhos.
Ela era uma menina de 16 anos. Nasceu em Efon, de
onde foi roubada e vendida em Lagos. Depois de mais de um ano, embarcou para a
Província da Bahia. Assim que o navio encalhou, chegou ao convés e viu que os homens
da tripulação embarcaram os moleques e as meninas em uma canoa, vinda da terra,
tripulada por quatro remeiros brancos. Por ordem dos marinheiros, ela se
segurou em uma corda, por onde chegou até a praia com seus companheiros. Foi
conduzida por oito pretos armados. Foi tudo o que disse porque só isso lhe
perguntaram. Do seu nome ninguém quis saber. Olharam atentamente para ela e
fizeram a seguinte descrição: "de cinco pés de altura, cara redonda, olhos
grandes, nariz chato, beiços revirados, principalmente o de baixo, pés
pequenos, 16 anos", uma menina assustada. Puseram-lhe o número 341 e
chamaram-na de Eva. Porquê, ela não sabe.
No grupo de mulheres adultas, Emeria tinha 20 anos, de cor meio fula,
bastante magra, com a testa e o rosto riscados, dentes limados, seios pequenos,
dois riscos compridos do canto dos ombros ao umbigo; Constança, 20 anos, era retinta, tinha
o rosto lanhado de cada lado da face com três riscos e seu corpo era marcado
por três cicatrizes em cada braço, principiando no cotovelo, subindo pelas
costas e descendo para o assento; Urânia, 24 anos, era alta, retinta, de
seios caídos, com o rosto marcado por quatro lanhos horizontais e quatro
transversais de cada lado.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjUc_llZzZqniPCP0vXDz7nydE_6uIM2YznwLtgVln0tBxCZXnfW6e9mTNPgaIh6SYJb2bDf2sN3xjC5rY840jo-XlzWBJVZtaWxUaMICtzYZV0HLa9qNnXm5L1UFoQeOpUFEIqN72RF7Q/s640/Viagem+%25C3%25A0+escravid%25C3%25A3o+05.png)
O olhar dos auditores e escrivães não era
apenas o de policiais técnicos preocupados com a identificação de indivíduos.
Pelo cuidado em destacar os altos e os espigados, homens e mulheres mais cobiçados
para as tarefas domésticas e de representação, tais como os servidores de mesa
e os carregadores de cadeirinha, percebe-se claramente o olho de toda uma
sociedade escravista, buscando em cada corpo as referências de uso e de abuso
para a exploração do trabalho, para a ostentação de riqueza e para a exploração
sexual.
Toda esta arqueologia corporal deve ser
tratada e decodificada. No entanto, nosso primeiro impulso foi o da reportagem
histórica, iconográfica e descritiva, movida pela curiosidade de imaginar qual
teria sido a fisionomia, a face e todos os outros elementos reveladores da
diversidade individual dos nossos antepassados, no momento em que
desembarcavam neste porto de escravidão. É preciso ver nossos tetravôs não
apenas agrupados em denominações étnicas impostas pelo tráfico, mas como
indivíduos, de corpo e alma.
Ubiratan
Castro de Araújo é professor-adjunto do Departamento de História da
Universidade Federal da Bahia e presidente da Fundação Cultural
Palmares/Ministério da Cultura.
Saiba Mais: Bibliografia
CONRAD,
Robert. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
LOVEJOY,
Paul E. A escravidão na África: uma história e suas transformações. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Saiba Mais: Link
Saiba Mais: Filme
Amistad
Aprisionados são levados a julgamento. Os
sobreviventes da tripulação pleiteiam a posse da "mercadoria" humanas
transportadas no Amistad, são contestados pela rainha da Espanha, que também
quer se apropriar do conteúdo da embarcação (com base no fato de que o navio
era de bandeira espanhola); além deles, também os oficiais norte-americanos que
apreenderam o barco e controlaram o motim desejam a posse dos cativos para
vendê-los.
Contra eles se levantam abnegados
defensores da liberdade humana, lutando contra a espoliação e a exploração
características da escravidão. Capitaneados por Theodore Joadson (Morgan
Freeman) e defendidos no tribunal pelo jovem e impetuoso advogado Roger Baldwin
(Matthew McConaughey), os escravos liderados por Cinqué (Djimou Hounsou,)
desafiam as leis e impingem um recomeço para a história republicana
norte-americana. Contam, para isso, com o auxílio inestimável do ex-presidente
John Quincy Addams (Anthony Hopkins).
Direção:
Steven Spielberg
Ano:
1998
Duração:
154 minutos
Saiba Mais: Documentário
Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos
Gilberto
Gil é quem narra e apresenta Verger: Mensageiro entre Dois Mundos. O filme traz
a última entrevista de Pierre Verger (filmada um dia antes de seu falecimento,
em 11 de fevereiro de 1996), além de extenso material fotográfico, textos
produzidos por Verger e depoimentos de amigos como o documentarista Jean Rouche
(Musée de l´Homme, Paris), Jorge Amado, Zélia Gattai, Mãe Stella, Pai Agenor
Maurice Baquet, Mestre Braga, Mestre Zé Carlos, Mestre Curió, Mestre João
Grande, Mestre Neco, Mestre Pastinha, Mestre João Pequeno e o historiador Cid
Teixeira.
A tão famosa ponte criada por Verger entre
a cultura negra na Bahia e na África, rompida desde os anos 40, é
reestabelecida no filme quando Gilberto Gil refaz o papel de Mensageiro e
percorre os mesmos caminhos do fotógrafo.
Outra descoberta de Verger apresentada no
filme, são os descendentes da única colonização feita por brasileiros: os
"Agouda", africanos, habitantes do Benin e da Nigéria, que ainda hoje
cultivam influências brasileiras trazidas por ex-escravos que retornaram do
Brasil ao continente africano.
Direção: Lula
Buarque de Hollanda
Ano:
1998
Duração:
83 minutos
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