Crianças brasileiras absorveram referências de diversas culturas do mundo, ampliando seu universo próprio de brinquedos e brincadeiras, com muita diversão e também crueldades.
Renata Meirelles
O bodoque e o papagaio, por
exemplo, nasceram em terras distantes, transitaram em culturas diversas e
sofreram adaptações regionais até chegarem nas mãos dos meninos dos engenhos do
país. As naus portuguesas aportavam carregadas de novas possibilidades lúdicas,
que vinham nos bolsos das calças da população lusa, que na época pouco
diferenciavam os jogos infantis dos de adultos.
A cada passarinho morto pelo
bodoque, revive-se no Brasil um pouco da influência moura. Na língua árabe, bondok
significa projétil, pedra ou bola de chumbo. Foi essa palavra que deu origem ao
nome do brinquedo citado por José Lins do Rego e utilizado até 1498 como um
instrumento bélico europeu. Entre a arma e o brinquedo, o bodoque se assemelha
a um arco de atirar flechas, com uma diferença na forma de amarrar as cordas:
no lugar de uma, são utilizadas duas cordas paralelas, e a flecha é substituída
por uma pedra. Existem registros de que este brinquedo já foi usado na
indústria alimentícia no estado de Santa Catarina, que contratava atiradores de
bodoque para quebrar a casca de nozes, lançando-as a paredes, sem que a polpa
fosse atingida.
Nas mãos dos meninos das
fazendas, os bodoques eram confeccionados com facões e lixados com cacos de
vidro. Com o acerto de cada passarinhada, um risco com a faca era feito no
punhal do brinquedo, para revelar a todos as novas conquistas. Os meninos
conheciam a época certa de se lançar na aventura da "caça", que
coincidia com a chegada do inverno, quando normalmente, segundo a sabedoria
popular, "dava muito sabiá".
Grande apaixonado pelo papagaio,
o poeta amazonense Thiago de Mello, em seu Arte e ciência de empinar
papagaio, oferece uma lista de palavras utilizadas no vocabulário
específico ao brinquedo praticado no início do século XX em cidades da
Amazónia. Alguns exemplos como imbicar ou embiocar (descer verticalmente de
cabeça para baixo), papocar (quando a linha se rompe sozinha), quedar (triste
verbo para quem é cortado) e aparar (pegar pela rabiola o papagaio de outra
criança e descer com ele até sua mão). Palavras que também estão até hoje na
boca de meninos e meninas do Nordeste e Sudeste brasileiros, interligando a
cultura lúdica do país.
Aparentemente
simples, as brincadeiras de barbantes, mais conhecidas como cama-de-gato, de
caráter estético, criavam, pelo menos desde o início do século XX,
possibilidades de representações "artísticas" de aspectos do
cotidiano. Em seus registros feitos em visita aos índios Taulipangues no Norte
do Brasil no início do século XX, o antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg,
que muito influenciou as obras do escritor Mário de Andrade, relata a maneira
como as crianças se divertiam com esses fios entrelaçados entre os dedos
formando diferentes figuras. Tratava-se de um a brincadeira de um ou no máximo
dois meninos - nunca meninas - que recorriam (e ainda o fazem) até aos dentes
para desvencilhar os dedos dos fios. Segundo Koch-Grunberg, as figuras que se
formavam recebiam nomes de acordo com o que representavam, mesmo que a
semelhança fosse bastante remota. Raízes da palmeira da bacaba, aranha grande,
órgão sexual feminino e casas de índio eram algumas das figuras que uniam as
imagens lúdicas ao cotidiano dos meninos das aldeias.
Alegria, ausência de brigas e
desavenças e a presença constante de representações de animais foram as marcas
registradas das brincadeiras entre crianças indígenas no início da colonização
brasileira, registradas pelo padre Cardim, citado por Gilberto Freyre. Ainda
antes das naus portuguesas atracarem suas brincadeiras nas terras do
pau-brasil, crianças indígenas recebiam de suas mães animais e bonecas de barro
cozido e aprendiam, em idades mais avançadas, a fazer brincadeiras de
entrelaçar fios de algodão entre os dedos. Um brinquedo ainda hoje presente
entre os curumins brasileiros, antes utilizado em rituais sagrados, é a perna
de pau. A imagem de um pássaro pernalta chamado grou, representada na
utilização da perna de pau, não tem registro de ter sido criada no Brasil, mas
pode ser considerada mais uma dessas brincadeiras que surgem em terras
distantes em épocas aproximadas.
E, se nas comunidades indígenas
reinava a tranquilidade nas brincadeiras dos curumins, nos engenhos e cidades
existiam certas malvadezas infantis, como as representadas nas cantigas de
beliscões, tapas e chicotadas citadas por Gilberto Freyre. O autor acredita que
o menino do engenho revoltava-se dos sofrimentos de uma educação rígida e de
muitos castigos, e dos cinco aos dez anos tornava-se um verdadeiro
menino-diabo. Mesmo em jogos de piões encontrava uma forma de "lascar-se o
pião" do outro, uma prática mantida até hoje entre as crianças. No jogo do
"belilisco de pintainha que anda pela barra de vinte e cinco", os
beliscões e bolos eram frequentemente aplicados nas mãos das crianças menos
espertas. Beliscão medroso por parte dos moleques e forte e doloroso quando
aplicado pelos meninos brancos, o que serve como mais um exemplo de dominação
racial refletida nas brincadeiras das crianças da época. Essa brincadeira do
beliscão citada por Freyre continua até hoje como repertório da cultura
infantil, demonstrada por inúmeras cantigas cantadas por crianças de
comunidades ribeirinhas da Amazônia: "... quem se mexer vai levar um
beliscão, bem na ponta do dedão".
Mas não foram apenas beliscões e
desavenças que inspiravam músicas para crianças, outro belíssimo exemplo de uma
cultura miscigenada e universal. A partir do século XIX, passaram a desembarcar
no Brasil novas referências de cantigas e rodas infantis que chegavam junto a
imigrantes de diferentes nacionalidades. Dessa maneira, ampliava-se a
diversidade linguística nas canções, que já vinha agregando em suas letras
palavras como dindinho, dengo, iaiá, moleque, vindas da África, ou arapuca,
pereba, pipoca, originárias do tupi.
Apesar de Mário de Andrade nos
assegurar que a roda infantil brasileira, como texto e tipo melódico, permanece
firmemente europeia e particularmente portuguesa, é possível encontrar
influência francesa em versos como "eu sou pobre, pobre, pobre de marre
deci" ("Je suis pauvre, pauvre, pauvre...") ou influência
italiana na versão adaptada Capelinha de melão, que originalmente era a Capelinha
de Milão. O nosso esconde-esconde é o escondoirelo espanhol, ou cache-cache
francês. O jogo popular das cinco-pedrinhas, cinco-marias, ou bóle-bole,
como é mais conhecido no Brasil, veio de Portugal com o nome de bato,
pedras, chocos, jogas, temos, botelhas ou chinas, este último como também é
conhecido na Espanha. Os romanos brincavam de sum sub luna, que o
castelhano chama sonsoluna e o ibero-americano frio y caliente,
tradução para o quente e frio tradicional no Brasil.
A brincadeira da amarelinha é
outro exemplo desta mistura linguística. Até que se prove o contrário, uma
interpretação possível é que o nome amarelinha tenha vindo de um a corruptela
do nome deste jogo em francês: marelle, que significa pedrinha, jogada
nos desenhos feito no chão.
Assim, em uma mistura de cores e
saberes, o repertório cultural infantil permanece como um espelho vivo de cada
cultura, garante representações do simbolismo humano e aproxima povos diversos
que se reconhecem em gestos simples, como no lançar de um pião.
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005
Saiba mais - Bibliografia
CASCUDO.
Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global. 2001.
FERNANDES.
F. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo: Martins
Fontes. 3ª ed. 2004. KISCHIMOTO. T. M. Jogos tradicionais infantis, o jogo,
a criança e a educação. Petrópolis: Vozes. 1993. MELLO, Thiago. Arte e
ciência de empinar papagaio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
Saiba Mais: Link
Especial
- Canudos - Órfãos do ódio
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