Coronel, jagunço, cangaceiro. Criado para atender a interesses políticos regionais, o estereótipo do sertanejo machão não tem contribuído para a felicidade do homem nordestino.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Em 1924, um grupo de
intelectuais e líderes políticos encabeçados por Gilberto Freyre - entre outros
Odilon Nestor, Amaury Medeiros, Alfredo Freyre, Luiz Cedro, Carlos Lyra, Aníbal
Fernandes, Ulisses Pernambucano, Moraes
Coutinho, Pedro Paranhos e Julio Bello - fundou, no Recife, o Centro
Regionalista do Nordeste, com o objetivo, explicitado em seu estatuto, de
promover o sentimento de unidade do Nordeste e de trabalhar em prol dos
interesses da região em seus diversos aspectos econômicos, sociais e culturais.
Em 1926, o Centro Regionalista promoveu a realização do Congresso Regionalista,
que visava a se contrapor ao movimento modernista, marcado pela Semana de Arte
Moderna, ocorrida quatro anos antes em São Paulo. Este era percebido como sendo
a tentativa paulista de generalizar padrões culturais urbanos e estrangeiros
para todo o país, completando, com a supremacia cultural, a sua hegemonia econômica
e política. O regionalismo e tradicionalismo, como foi denominado por Freyre,
em seu Manifesto regionalista de 1926, o movimento que encabeçava, visava,
pois, dar ao Nordeste uma identidade, torná-lo mais do que um simples recorte
político ou geográfico. A ideia era dotá-lo de uma memória, de uma história e
um conteúdo cultural, definindo um modo de ser e uma estética - ou seja, uma
identidade.
O movimento contribuiu para que as elites políticas e econômicas desses estados, em processo de declínio econômico, se articulassem politicamente e passassem a agir de forma integrada, principalmente no Congresso Nacional. Tal articulação permitiu que, mesmo perdendo importância econômica em relação às Regiões Sul e Leste (depois Sudeste), as elites nordestinas conquistassem uma importância política sempre decisiva na montagem dos blocos políticos responsáveis pela sustentação dos governos federais, notadamente daqueles mais conservadores, como a ditadura Vargas, durante o Estado Novo, e o regime militar após 1964. Ao servirem de base de apoio para sucessivos governos, essas elites conquistaram recursos e benesses para suas áreas de atuação e benefícios privilegiados para suas atividades econômicas. Conseguiram do governo Vargas (1930-1945), por exemplo, a criação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e do Banco do Nordeste, no governo Juscelino Kubitscheck (1956-1961). O discurso regionalista nordestino continua, até hoje, aglutinando políticos e intelectuais das mais diferentes tendências políticas. Quando se fala em nome do Nordeste, o senso crítico parece desaparecer e, como vimos em episódio da década passada - a falência do Banco Econômico, apresentado como única instituição financeira privada do Nordeste -, sua salvação pelos cofres públicos da União foi defendida com irados e revoltados discursos por pessoas de tendências políticas tão díspares como Antônio Carlos Magalhães e Jorge Amado.
Analisando os discursos que
foram formulando a identidade de nordestino, o que mais salta aos olhos é que
esta figura é sempre pensada no masculino. Não há lugar para o feminino no
Nordeste - até a mulher é "macho, sim senhor". Embora esta imagem da
mulher-macho tenha sido consagrada pela música Paraíba (1958), composta
por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, encontramos referências de que a mulher
nordestina seria uma virago, uma mulher masculinizada por exercer tarefas
masculinas nas ausências do marido, provocadas pela migração e pela seca desde
os anos 20. A própria imagem que as elites procuraram criar da região, como
sendo seca e inóspita, vítima da natureza, para com esta imagem conseguir
carrear recursos e conseguir investimentos e cargos públicos em suas áreas de
domínio político, faz com que o nordestino seja sempre desenhado como este
homem que precisa ser forte, rústico, resistente, quase um homem-cacto, para
poder resistir a um ambiente que é sempre descrito como hostil. Até os
personagens femininos da literatura regional costumam ganhar contornos
masculinos, já que somente uma mulher-macho seria capaz de sobreviver em um
ambiente árido e violento: veja os casos de Luzia Homem (Domingos Olímpio,
1903) ou de Maria Moura (Rachel de Queiroz, Memorial de Maria Moura,
1992).
O nordestino seria o último dos machos, aquele homem que ficara protegido no sertão das mudanças que a cidade anunciava. Ele é assim caracterizado tanto na literatura sociológica, quanto no romance e artigos de jornais, a partir de figuras exemplares do ser masculino, como o coronel, o jagunço e o cangaceiro. O coronel é, ainda hoje, um mito do imaginário nacional. Há certa saudade dessa figura, talvez um desejo de ser coronel entre os homens brasileiros. Isto talvez explique o enorme sucesso de personagens como Ramiro Bastos do romance Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado, e da novela da Rede Globo de Televisão, baseada neste romance, Gabriela (1975) e Odorico Paraguaçu, da novela O bem-amado (1973), de Dias Gomes. Este homem, dono de um poder sem limites, que casava, batizava, mandava soltar e prender, que tinha a seu dispor a vida de homens e a virgindade das mulheres, parece povoar os sonhos de muitos no país. Para este imaginário nacional, embora tenha havido relações baseadas no poder político e econômico dos grandes proprietários em todo o país, bem como bandidos sociais não faltem em outros estados, o Nordeste é visto como a região exclusiva dos coronéis e dos cangaceiros. Ainda hoje, é comum, na imprensa política, demonstrando uma grande falta de imaginação, chamar qualquer político tradicional do Nordeste de "coronel". Lampião passou de facínora, enquanto vivia, a herói regional, com direito a estátua e tudo na cidade de Serra Talhada (PE), depois que foi morto.
O primeiro folheto de cordel a
usar o termo "nordestino" para se referir ao habitante da região é de
1937 e este uso se generaliza apenas nos anos 50, talvez fruto da migração em
massa para as grandes cidades do país, onde os homens pobres egressos da região
se descobrem conterrâneos. A identidade de nordestino parece ser uma descoberta
dolorosa para aqueles que migram e que diante das condições adversas que
enfrentam - inclusive os preconceitos explicitados nos estereótipos do
"baiano" e do "paraíba" - reforçam o mito do cabra macho,
do cabra da peste, como forma de dar uma resposta a esta situação de
subalternidade e de discriminação.
É evidente que esta identidade
se apoia em uma realidade de relações bastante desiguais entre o feminino e o
masculino, mas ao mesmo tempo ela alimenta a continuidade do funcionamento de
códigos de gênero, ou seja, aqueles códigos sociais, bastante arbitrários, que
definem como deve ser o comportamento de homens e mulheres, como devemos ser
masculinos e femininos. Alimentar o mito do "cabra macho" é
contribuir para a permanência, inclusive, da violência contra as mulheres e, ao
mesmo tempo, alimentar um modelo de masculinidade que tenta manter um tipo de
relação entre homens e mulheres que viria desde o período colonial e que, por
isso mesmo, é vista como natural, como eterna. Este modelo vitima os próprios
homens, já que os coloca em constantes situações de risco, e deles exige
renúncias afetivas e emocionais importantes, como a do exercício da paternidade
e da expressão de sentimentos e emoções. Em outras palavras, a macheza
nordestina faz os homens infelizes.
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Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005
Saiba mais - Bibliografia
FREYRE,
Gilberto. Nordeste. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
MAINARDI,
Diogo. Polígono das secas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NEVES,
Frederico de Castro. Imagens do Nordeste. Fortaleza: Secult, 1994.
SILVEIRA,
Rosa Maria Godoy. O regionalismo nordestino. São Paulo: Moderna, 1984.
Saiba Mais: Link
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