Entre os aspectos importantes para a compreensão da história do
Império o mais significativo e de longa duração, porque ainda persiste em
nossos dias, sob várias formas, é o sistema de patronagem e clientela.
Emília Viotti da Costa
O Império tem sido sempre
uma referência nos momentos de crise política. Diante de perturbações da ordem
pública, golpes militares, fraude eleitoral ou outras formas de corrupção,
aparecem sempre saudosistas a louvar o passado e denegrir o presente. A
idealização da monarquia não é fato novo. Teve início logo após a Proclamação
da República (1889), quando monarquistas e alguns republicanos, desiludidos com
o rumo que os acontecimentos tomavam, se associaram na construção de uma imagem
idealizada do Império. Argumentavam que o regime monárquico dera ao país
setenta anos de paz interna e externa, garantira a unidade nacional, o
progresso, a segurança individual, a liberdade e o prestígio internacional, sob
a direção sábia de um imperador digno, ilustrado e generoso. Consideravam que,
alheia à vontade do povo, a Proclamação da República não passara de um levante
de militares indisciplinados, instigados pelos republicanos que contaram com o
apoio de fazendeiros descontentes com a Abolição. A República restringira as
liberdades individuais, fora incapaz de garantir a segurança e a ordem ou de
promover o equilíbrio econômico e financeiro.
Com o passar dos anos a
versão monarquista se tornou mais complexa, embora continuasse a ignorar os
problemas que o Império teve de enfrentar, nem sempre com o sucesso que seus
adeptos alardeavam: as constantes insurreições que tumultuaram o Primeiro
Reinado e o período regencial, tais como a Confederação do Equador e a Praieira
no Nordeste, Farrapos, no Sul, levantes em São Paulo e Minas em 1842, e Cabanos
e Balaios no norte do país. Também ficaram esquecidos os protestos populares
durante o Segundo Reinado, a revolta dos imigrantes nas fazendas, as agitações
do proletariado incipiente, as lutas dos escravos no campo e na cidade.
Olvidada também foi a repressão violenta contra escravos e rebeldes, os abusos
da Guarda Nacional, o injusto recrutamento militar, a corrupção da justiça, a fraude
eleitoral, o nepotismo endémico, o apadrinhamento nas concessões de monopólios,
as desastrosas guerras contra a Cisplatina, Rosas, e o Paraguai, o precário
estado em que se encontrava o Exército, o analfabetismo beirando os 80% da
população, as constantes epidemias de varíola, cólera, malária e febre amarela
que assolavam periodicamente as populações, a dependência em relação aos
mercados externos e às potências estrangeiras, os onerosos empréstimos
realizados no exterior, a permanência da escravidão até praticamente o fim do
Império, uma política de terras que permitiu sua concentração nas mãos de uma
minoria, o elitismo e a exclusão política da grande maioria do povo brasileiro.
A República também teve
seus defensores. Estes projetavam uma imagem oposta. A República sempre fora
uma aspiração nacional, desde os tempos da colónia. A Monarquia era uma
instituição alheia à América, onde só existiam Repúblicas. Baseando-se nas
críticas feitas durante o Império, pelos próprios monarquistas ao imperador e
ao Poder Moderador, que aquele exercia juntamente com o Poder Executivo, os
republicanos afirmavam que as liberdades tinham sido cerceadas com grande
prejuízo para a nação. Criticavam as deficiências do imperador como estadista.
Condenavam a excessiva centralização do governo monárquico. Repudiavam a
vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado que impediam a sua renovação.
Denunciavam a fraude eleitoral, que permitia ao governo vencer sempre as
eleições.
Na avaliação da Monarquia
ignoravam suas realizações: o patrocínio das artes e das letras, a
multiplicação das escolas primárias, os subsídios concedidos aos interessados
em promover uma política imigratória ou a construção de ferrovias e o
desenvolvimento de indústrias. A manutenção do território nacional, sem dúvida
uma das realizações mais importantes da Monarquia que conseguiu evitar seu
esfacelamento, também não foi valorizada. De fato, ao contrário das províncias
espanholas envolvidas em lutas fratricidas que romperam a unidade do antigo
império espanhol, o Brasil conseguiria não só manter intacto seu território
como evitar o caudilhismo que imperava nos países vizinhos.
Baseadas nos testemunhos
dos contemporâneos, ambas as versões, a do vencedor e a dos vencidos, a
republicana e a monarquista, igualmente parciais, superficiais e incompletas,
forjadas no calor das lutas políticas do Império, estabeleceram os parâmetros
da historiografia que vigoraria por muito tempo depois da implantação da República.
Contribuíram para obscurecer aspectos importantes para a compreensão da
história do Império que vieram a marcar profundamente a cultura política do
brasileiro. São alguns desses aspectos que queremos focalizar. O mais
significativo e de longa duração, porque ainda persiste em nossos dias, sob
várias formas, é o sistema de patronagem e clientela, cujas raízes remontam ao
período colonial, embora se tenham desenvolvido e adquirido real importância
durante o Império. Foi este talvez seu mais importante legado.
Originando-se no período
colonial, nos monopólios e privilégios conferidos pelo poder real a alguns
colonos e negados a grande maioria da população; reforçado pela economia de
exportação baseada na grande propriedade e no braço escravo, e consagrado pelos
preconceitos e pela lei, que criaram uma sociedade de profundos contrastes
entre poderosos e os sem poder, entre ricos e pobres, brancos e negros,
letrados e analfabetos, o sistema de patronagem e clientela floresceu durante o
Império.
A persistência das
estruturas económicas e sociais e a organização política e institucional do
país independente criaram condições ideais para a formação de um regime
oligárquico. De fato, qualquer que seja a opinião que se tenha do imperador é
preciso reconhecer que quem de fato assumiu o poder foram as oligarquias e seus
asseclas. O sistema de patronagem e a "ética do favor" foram ao lado
do Exército e da Guarda Nacional, os instrumentos utilizados por elas para se
manterem e se reproduzirem no poder. Embora a composição social das oligarquias
tenha se alterado ao longo do tempo, especialmente à medida que grupos novos
surgiram na sociedade nas últimas décadas do Império, as oligarquias se
reconstituíram em bases novas e sobreviveram à Proclamação da República.
O sistema político
instituído depois da Independência era altamente centralizado, deixando pouca
autonomia às províncias. O Ato Adicional (1834) e a reforma do Código de
Processo Criminal (1841) foram as únicas medidas que tentaram minimizar um
pouco essa situação. No entanto, até mesmo essas concessões, nascidas no
período turbulento da Regência, foram reduzidas pela lei de 1840 que
interpretou o Ato Adicional. D. Pedro II governou com a assistência da Câmara,
do Senado e do Conselho de Estado. Nas duas últimas instituições os cargos eram
vitalícios. Os membros do Conselho eram nomeados pelo imperador, os demais eram
eleitos. Apenas a Câmara se renovava periodicamente, através de eleições, mas o
sistema de eleições indiretas, baseado na renda pessoal, excluindo os
assalariados (com algumas exceções), as mulheres e os escravos, reduzia o
eleitorado a uma mínima parcela da população. Durante o Império, a despeito das
várias reformas eleitorais, o número de eleitores variou entre um e meio e dois
por cento da população.
Conselheiros, senadores e
deputados do Império e das províncias constituíram um grupo poderoso. Alguns
chegaram a receber títulos de nobreza. Ocuparam posições de ministros, foram
nomeados presidentes de província. Usaram de suas posições para exercer
influência na imprensa, junto aos bancos, nas concessões de terras e subsídios
a empreendimentos vários, no preenchimento dos cargos públicos, na Justiça, e
na legislação. Os políticos intervinham no Exército, na Guarda Nacional, na
Igreja. Constituíram uma verdadeira oligarquia que governava em nome do povo e
da nação. O político era eleito através de uma rede de clientela e quando no
governo esperava-se que servisse aos interesses de seus eleitores. Não é de
espantar, portanto, que o político não fosse visto como representante do povo,
mas como seu benfeitor. Nessas condições, os direitos constitucionais do
cidadão passavam a ser vistos como concessões das elites políticas. A troca de
favores governava todas as relações. Sem patrono, político não fazia carreira,
magistrado não permanecia no cargo, funcionário público não conseguia emprego,
escritor não ficava famoso, empresário não conseguia criar empresa, banco não
obtinha permissão para funcionar. Essa situação ficou bem caracterizada no
ditado popular: "Quem não tem padrinho morre pagão".
Os grupos que assumiram o
poder representavam os interesses da grande lavoura e do comércio ao qual
estavam ligados por laços de família ou de amizade. Liberais e conservadores
embora divergissem quanto a sua plataforma, na realidade se revezaram no poder
sem exibir diferenças fundamentais. Abolição da vitaliciedade do Senado e do
Conselho de Estado, sufrágio universal, separação da Igreja do Estado, por
exemplo, reformas que constavam do programa liberal, não chegaram a ser
concretizadas durante o Império. A emancipação gradual dos escravos que já fora
proposta por José Bonifácio e outros, na época da Independência, somente
começou a ser realizada cinquenta anos mais tarde com a Lei do Ventre Livre. A
abolição definitiva somente ocorreu quando a libertação dos escravos já era
praticamente fato consumado. A política do Império foi basicamente
conservadora. Conciliar a ordem com o progresso, a modernização com a tradição,
o liberalismo com a patronagem foram seus objetivos.
Entre liberais e
conservadores não havia muita diferença. Martinho de Campos, renomado político
do Império, num discurso pronunciado em 1882 ao assumir o cargo de
primeiro-ministro, caracterizou bem a relação entre os políticos e os partidos:
"Hoje é que se pode dizer, como o finado visconde de Albuquerque - são
duas coisas muito parecidas um liberal e um conservador - e podia mesmo acrescentar-se
um republicano, porque têm todos os mesmos ares de família", dizia ele, e
continuava: "Vivemos às mil maravilhas na mesma canoa e não temos
dificuldades quanto as opiniões". Na realidade, a filiação partidária era
frequentemente mais uma questão de família e parentesco ou amizade do que de
ideologia. Isso não diminuía em nada a intensidade da competição política. Na
época das eleições os gabinetes no poder demitiam ou removiam funcionários
públicos; criavam distritos eleitorais onde tinham amigos e eliminavam outros
onde a oposição era majoritária; utilizavam a Guarda Nacional para perseguir
eleitores; roubavam urnas eleitorais que apareciam depois recheadas de votos
favoráveis ao partido situacionista e recorriam ao recrutamento militar para aterrorizar
a oposição. Enquanto os adversários eram combatidos por todos os meios, os
amigos e a parentela eram recompensados com favores de toda espécie. O
nepotismo imperava sem qualquer constrangimento numa sociedade em que o público
e o privado muitas vezes se confundiam.
Nessas condições, os
princípios liberais traduzidos de um documento produzido durante a Revolução
Francesa intitulado Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e
reproduzidos na Carta Constitucional de 1824 (incluídos a partir de então em
todas as constituições brasileiras) assumiram um caráter utópico. Os viajantes
que passaram pelo país desde os primeiros anos do Brasil independente
chocaram-se com a falta de correspondência entre a legislação e a realidade. A
Carta Constitucional afirmava a igualdade de todos perante a lei, assim como
garantia a liberdade individual. Mas durante o Império houve homens e mulheres
escravizados que nem sequer eram considerados cidadãos. A Carta Constitucional
garantia o direito de propriedade, mas na época da Independência a grande
maioria da população livre vivia em terras alheias, na qualidade de
"moradores", sem nenhum direito a elas. A Carta Constitucional
assegurava a liberdade de pensamento e de expressão, mas não foram poucos os
que pagaram com a própria vida o uso desse direito. A Carta garantia a
segurança individual, mas por uns poucos mil-réis podia se mandar matar
impunemente um desafeto. O lar era considerado inviolável, mas a polícia, em
desrespeito à lei, o invadiu muitas vezes sob os mais variados pretextos. A
independência da Justiça era teoricamente garantida pela Carta Constitucional,
mas, tanto a administração quanto a Justiça transformaram-se em instrumentos
dos poderosos. A Carta abolia as torturas, mas por muitos anos nas senzalas
continuava a se usar os troncos, os anjinhos, os açoites e as gargalheiras. O
direito de todos a serem admitidos aos cargos públicos, sem outra diferença que
a de seus talentos e virtudes, foi assegurado pela Carta Constitucional, mas o
critério de amizade e compadrio, típico do sistema de patronagem vigente,
continuaria a prevalecer na nomeação de cargos públicos. Em suma, os direitos
do homem converteram-se em privilégios de uma minoria e a luta pela sua
implementação foi deixada a cargo do povo. A este caberia a tarefa de converter
a promessa da Constituição em realidade.
Se bem que as classes
dominantes do Império tenham nos legado um sistema elitista e antidemocrático e
tenham conseguido reprimir projetos alternativos que se esboçaram no passado,
não conseguiram, no entanto, sufocar a voz daqueles brancos, mulatos e pretos,
que já na época da Independência tinham se reunido na Praça do Comércio para
forçar d. João VI a jurar a Constituição portuguesa que ainda seria escrita.
Suas vozes chegaram até nós. Também não conseguiram reprimir as aspirações dos
homens e mulheres que se levantaram, pelo Brasil afora, em inúmeras revoltas
visando a construir um país mais democrático, preconizando o parcelamento da
grande propriedade, a igualdade entre brancos e pretos, a eliminação do
preconceito racial, o sufrágio universal, a eliminação da fraude eleitoral, a
emancipação das mulheres, o desenvolvimento de uma economia nacional. A
realização dessas aspirações foi delegada às futuras gerações de brasileiros,
EMÍLIA VIOTTI DA COSTA é historiadora, Livre Docente pela USP e
professora emérita da mesma universidade. Atualmente leciona na Universidade de
Yale, nos Estados Unidos. Entre outros livros, publicou Da monarquia à
república - momentos decisivos. São Paulo: Ed. Unesp, 1977.
Fonte: Revista Nossa História. A Construção do Brasil. Brasil: Ed.
Vera Cruz, 2006
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