Juliana Barreto Farias
Praça das Marinhas, tarde de 2
de maio de 1872. Mais de cinquenta "pretos ganhadores",
armados de cacetes (um deles com uma foice), atacam 12 trabalhadores brancos
que transportavam carne-seca das canoas e lanchas. Poucos dias antes, os
pretos, que costumavam fazer as descargas ali no porto, haviam exigido um
aumento de vinte réis. Mas os donos das carnes não só ignoraram as
reivindicações, como logo contrataram brancos para o serviço. Inconformados com
a nova situação, os negros fizeram uma "parede [greve], à moda
[africana] da Costa da Mina", como noticiou o jornal Diário do Rio de
Janeiro. A "luta renhida" que levou alguns homens ao mar só foi
debelada com a chegada do capitão Marques Sobrinho e de praças da guarda
urbana. Sete escravos e um liberto, tidos como os principais agressores, e mais
cinco trabalhadores brancos, dentre os quais alguns portugueses, foram detidos
e conduzidos para o xadrez da 2ª Delegacia Urbana.
Percorrendo as vielas da Corte,
os chamados escravos de ganho vendiam frutas, legumes, peixes, louças e
todo tipo de mercadoria que levavam nos cestos e tabuleiros à cabeça;
transportavam sozinhos, ou em grupos, desde sacas de café até pesados pianos;
ofereciam-se para levar pessoas em seus ombros nos dias de chuva ou ainda
carregavam barris com os dejetos das residências para jogarem à noite no mar.
Quase todos os estrangeiros que passaram pelo Rio de Janeiro no século XIX se
surpreenderam com a multiplicidade de ofícios exercidos por esses escravos.
Eram trabalhadores indispensáveis, conforme registrou o francês Jean-Baptiste
Debret (1768-1848) - que viveu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831 -, já que
o português, e também os senhores brasileiros, com seu "orgulho e
indolência", consideravam desprezível quem carregasse um "pacote na
mão, por menor que seja". A inglesa Maria Graham (1785-1842) estimou que
praticamente a metade dos escravos ganhadores no Rio era composta de
africanos recém chegados. Eles trabalhavam em grupos, capitaneados por um líder
que marcava o tempo e os compassos ao som de chocalhos, marimbas ou peças de
ferro, e, em coro, entoavam canções de sua terra natal.
Esses cativos eram mandados às
ruas por seus senhores e, ao final do dia ou a cada semana (o que parecia ser
mais comum), deveriam entregar uma quantia - o jornal - previamente
estabelecida; daí o nome escravo de ganho. Mas para isso antes era
preciso encaminhar um pedido por escrito à Câmara Municipal, identificando o
proprietário ou seu procurador legal, seu endereço, além de informações básicas
sobre o escravo, ou escravos, como nome, nação africana ou idade. Era
necessário ainda pagar um alvará e adquirir uma chapa metálica com o número de
inscrição: se fossem encontrados trabalhando sem a chapa no pescoço, os
escravos eram recolhidos pelas autoridades municipais. Entre os anos de 1851 e
1870, encontramos no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro 2.653 licenças
concedidas pela Câmara indicando a nacionalidade do ganhador. Desse
conjunto, 2.225 eram africanos, e o maior grupo se constituía de procedentes da
África ocidental, genericamente conhecidos como minas no Rio.
Assim como os escravos, esses
homens livres deveriam apresentar um pedido por escrito, indicando seus dados
pessoais, como nome, "nação" ou nacionalidade, endereço e atividade a
ser exercida. Contudo, ainda era necessário que um profissional respeitado, proprietário
e com boa condição financeira - quase sempre um comerciante fosse apresentado
como fiador, confirmando a "boa conduta" do trabalhador e garantindo
o pagamento das despesas que porventura pudessem surgir, caso fossem
encontrados em situação irregular ou sem licença. Era comum que um espanhol ou
português, depois de abrir o seu negócio - uma padaria ou um armazém de secos e
molhados -, "chamasse" seus patrícios e ficasse responsável pelas
atividades que eles exerceriam, e ainda lhes desse abrigo em sua casa.
Entre 1879 e 1885, do total de
770 pedidos encaminhados, 394 (ou 51,5%) indicam a nacionalidade do ganhador.
Dos 376 restantes (48,5%), 355 solicitações não fazem quaisquer referências ao
país, região ou cidade de procedência, e tampouco apontam a cor dos indivíduos;
os outros 21 são referidos como "pretos livres", "pretos
libertos" ou "pretos forros" (decerto quase todos ex-escravos).
Os imigrantes europeus constituíam 63,2% dos trabalhadores de rua que tiveram
sua nacionalidade registrada dentre os quais se destacavam portugueses,
italianos e espanhóis. Acompanhando as médias de imigração estrangeira para o
Rio de Janeiro, os portugueses formavam o grupo mais estável e numeroso desde
pelo menos a década de 1820, e também o maior contingente registrado entre os
"ganhadores livres". Mesmo assim tinham que disputar - às
vezes até com violência - as poucas oportunidades disponíveis, especialmente
com os libertos minas, _ que ainda representavam um conjunto expressivo no
mercado de ganho do Rio de Janeiro.
Carregando cestos na cabeça ou
sobre os ombros, e algumas vezes andando descalços (uma marca registrada da
escravidão), esses estrangeiros perambulavam pela Corte, vendendo peixes,
legumes, vassouras e outros objetos, amolando facas ou tocando animados
realejos. Se foram muitos os imigrantes europeus que se tornaram prósperos
comerciantes, proprietários ou funcionários públicos, não foram poucos os que
não tiveram tanta sorte na nova vida construída do lado de cá do Atlântico.
JULIANA
BARRETO FARIAS é mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e autora, junto com Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, de No
labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, Prêmio
Arquivo Nacional 2003.
Fonte: Revista Nossa História – Ano
2 - nº 24 - outubro 2005
Saiba Mais: Bibliografia
ALENCASTRO, Luiz
Felipe de. "Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e cativos
africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872". In: Novos Estudos Cebrap,
julho/1988, n. 21, p. 3056.
CRUZ, Maria
Cecília Vel lasco. Virando o jogo: estivadores e carregadores no Rio de
janeiro da Primeira República. Tese de Doutorado, USP, 1998.
SOARES, Luís
Carlos. "Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX". In:
Revista Brasileira de História, n. 16, 1988, p. 107-142.
Saiba Mais: Link
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