No leito de morte, Leopoldina recebeu a visita da amante de seu marido. Ainda assim, teve forças para atacá-la.
Mary del Priore
Nesse dia, a Irmandade de Nossa
Senhora da Glória organizou procissão e o esquadrão de cavalaria de Minas
Gerais uniu-se aos moradores em preces, em Mata-Porcos. Chovia no Rio de
Janeiro, e os súditos, com vestes ensopadas, choravam. No oitavo dia,
Leopoldina começou a suspeitar dos remédios que lhe davam. Delirava,
amaldiçoando a amante do marido. Atribuía-lhe poderes de feitiçaria negra.
Reagia com gritos ao vê-la. Os sentimentos da submissa imperatriz, contidos por
tanto tempo, explodiam. Foram anos em que dividira a cena com a paulista,
escondendo sob uma capa de cordialidade o ódio e o desprezo que sentia.
No dia 9, mencionou-se a expulsão dos
restos de placenta. Piorava de hora em hora. Na tarde do dia 10, o capelão foi
chamado para ministrar-lhe a extrema-unção. O barão de Mareschal, ministro
diplomático da Áustria e um dos que podiam ficar no quarto da imperatriz,
acrescentou que, “quando o Bispo começou a recitar a prece dos agonizantes, Sua
majestade se encontrava em estado convulsivo, o abatimento aumentando a cada
instante, o que somente lhe permitia gemer fracamente”.
O boletim do 17º dia trouxe a notícia:
“pela maior das desgraças se faz público, que a enfermidade de Sua majestade e
a imperatriz resistiu a todas as diligências médicas empregadas com todo o
cuidado por todos os médicos da imperial Câmara. Foi Deus Servido chamá-la a Si
pelas dez horas e um quarto”. Nenhuma palavra oficial sobre o aborto de um feto
do sexo masculino de três meses.
Não se sabe ao certo quando, acamada, Leopoldina ditou uma última carta endereçada à sua irmã mais velha, Louison. Traçou-a a marquesa de Aguiar, sua camareira. “Minha adorada mana, reduzida ao mais deplorável estado de saúde e chegada ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam em minha alma, minha mana. Não vos tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que vos amava, que vos adorava! Pois, já que não posso ter essa tão inocente satisfação, igual a outras muitas que permitidas me não são, ouvi o grito de uma vítima que vos reclama não vingança, mas piedade e socorro do fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar em poder de si mesmos ou das pessoas que foram os autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho”.
Ela, que sempre fora resignada e muda, mergulhada numa tristeza que a deixava à beira da loucura, não tinha só a preocupação de alertar a família para os riscos que corriam os filhos – sua única fonte de alegria e razão política do casamento. Aos 29 anos, mãe de cinco filhos vivos, a moribunda acusava: “Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, por amor de um monstro sedutor, me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-vos, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte”.
Contou Francisco Gomes da Silva, o
Chalaça, que D. Pedro, seu amigo, sentiu o golpe. Apesar de atarefado em meio a
mapas, tropas e projetos de campanha no sul do país, recebeu a notícia com
“profunda mágoa”, “tremeu e arrancou os cabelos”. A comitiva que o acompanhava
reuniu-se. Em sua correspondência, o Conselho de ministros foi mais específico.
Depois de apresentar pêsames, confessava-se no dever de comunicar que a jovem
imperatriz, em seus delírios, deixara perceber as causas de seu mal. Eram de
ordem moral: desgostos e ressentimentos. A opinião pública também já tinha
conhecimento desses fúnebres queixumes ditos no momento de sua despedida. Para
piorar, os inimigos republicanos de D. Pedro aproveitaram para lançar uma
campanha difamatória e retomar a cena política. No dia 4 de janeiro, a nau D.
Pedro I largava de Santa Catarina, trazendo a bordo o viúvo.
Não se sabe o que deu na amante, Domitila,
mas, no auge da crise, ela quis entrar na câmara da doente. “A concubina deu
provas de imprudência e loucura”, registrou Mareschal. “Seus ares imperiais ao
atravessar os cômodos, como se estivesse tomando posse, e o tom arrogante e
escandaloso de seus lamentos fizeram com que a dama de companhia incumbida,
segundo os costumes, de presidir a consulta dos médicos, não a recebesse”.
Conseguiram barrar-lhe a passagem, mas Titília, por sua vez, impediu que a
jovem mãe, em agonia, visse seus filhos.
A notícia correu sobre um
rastilho de pólvora. A aparência do povo não era mais desordenada, curiosa,
inquieta. Queria vingança contra aquela que era considerada a causa da morte da
querida imperatriz. Circulava que a concubina se mancomunara com o
cirurgião-mor para envenenar a imperatriz; que o verdadeiro príncipe tinha sido
trocado pelo bastardo. Cartas anônimas agora eram endereçadas aos ministros.
Estes reagiram, falando em afastar Titília da corte. Dois tiros foram
disparados contra um dos cunhados da marquesa de Santos, o coronel Oliva. Em fúria,
a multidão dirigiu-se a São Cristóvão. A casa da marquesa foi cercada e
apedrejada. Chamaram-se reforços. Vieram patrulhas de cavalaria proteger os
muros e as portas do palacete.
Por carta, a favorita não perdeu
tempo em contar ao amante que fora destratada e barrada à entrada do quarto de
Leopoldina. O imperador não perdeu tempo em consolá-la: “Minha querida filha de
meu coração e minha amiga. (...) Eu tomo nojo [luto] por oito dias, e esta é a
única razão que faz com que eu não vá logo. (...) Pedro I que é teu verdadeiro
amigo saberá vingar-te de todas as afrontas que te fizeram ainda que sua vida
lhe custe. É ao mesmo tempo com todo o gosto, e verdade que tenho o prazer de
poder dizer com toda a franqueza e contentamento que sou o teu mesmo amante,
filho e amigo fiel constante, desvelado, agradecido e verdadeiro, digo outra
vez, amante fiel”.
Se, por um lado, o povo culpava Domitila, por outro, santificava Leopoldina. Os jornais cobriam-na de adjetivos: virtuosa, bondosa, gentil. Enterrava-se a imagem da dona de convicções hereditárias: monarquia absoluta, autoridade real e obediência dos súditos eram princípios sacrossantos que a Habsburgo levou embora consigo. Do sobrado à senzala, do comércio ao zungu, onde se reuniam escravos, das ruas às estradas, o povo chorava. Silenciavam as ruas, sem os gritos das “vendeiras” e dos cativos prestadores de serviços, sem o peditório de mendigos e de irmãos de confrarias, sem o canto dos presos que carregavam água ou dos escravos carregadores de café.
No curto espaço de tempo que foi
de março de 1826 à sua morte, D. Leopoldina foi, além de imperatriz do Brasil,
rainha de Portugal. Entre seu casamento e a Independência do Brasil,
encontrou-se princesa do Reino Unido. Nenhum dos títulos lhe trouxe alegrias.
Civilidade, educação, compostura,
importados de uma das mais refinadas cortes europeias, iam-se para debaixo da
terra com o corpo sofrido de Leopoldina. Certa maneira de ser, baseada na
contenção dos sentimentos e no autocontrole em curso na vida burguesa que se
forjava além-mar, consumia-se. Sob o sol dos trópicos, os hábitos eram
outros.
Mary Del Priore é professora da Universidade Salgado de Oliveira e autora de A carne e o sangue (Rocco, 2012).
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 107 - agosto de 2014
Saiba mais - Bibliografia
LUSTOSA,
Isabel. D. Pedro I, um herói sem nenhum
caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
REZZUTI,
Paulo. Titília e o Demonão – Cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa
de Santos. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
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