"Toda mulher que eu vejo na rua
reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria
dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem
que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço".
Essa e tantas outras piadas do comediante Rafinha
Bastos, ex-integrante do programa CQC, da Rede Bandeirantes,
renderam-lhe uma série de críticas e denúncias, principalmente por parte de
grupos feministas, como a Marcha das Vadias em São Paulo, que, no ano passado,
pendurou cartazes com dizeres como "machismo não leva a nada, estupro não
é piada" em frente a um teatro na rua Augusta, onde o ex-apresentador fazia
seu show de stand-up comedy.
Há algum tempo atrás, seu ex-colega de CQC,
que hoje apresenta o programa Agora É Tarde, na mesma emissora,
também chegou a ser denunciado por ter feito a já antiga analogia racista entre
negros e macacos, quando disse em tom humorístico: "King Kong, um macaco
que, depois que vai para a cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha
que é? Jogador de futebol?".
"É preciso saber de que lado você
está da piada", diz o ator e palhaço Hugo Possolo, no documentário O
Riso dos Outros, dirigido por Pedro Arantes. A reflexão é bem colocada em
um momento em que, comediantes e emissoras da TV brasileira, referenciam-se na
linguagem do humor, para, muita vezes, fugir dos debates de conteúdos
conservadores contidos em seus discursos humorísticos.
A defesa, muitas vezes, é de que, no
humor, tudo não passa de uma brincadeira. De que ele não pode ser confundido
com "opinião". E qualquer posicionamento contra o mesmo, seria uma tentativa
de patrulhamento ideológico do "politicamente correto". Isso vem
levantando algumas reflexões em torno do género. Se ele deve ter limites, responsabilidades,
e se, o que vem sendo produzido, trata-se realmente de humor, já que, muitas
vezes, este foi definido como uma linguagem questionadora do poder, que deve
subverter e transformar realidades.
"Humor
De Insulto"
O comediante e ator Bemvindo Sequeira
define esse tipo de humor como "humor de Insulto",e também analisa
que se trata de uma espécie de sensacionalismo do género, assim como o existente
no jornalismo, com relação à violência e à intolerância. "O máximo que o
'humor de insulto' consegue fazer é ofender pessoas. Mas não questionam nem o
sistema, nem as instituições", comenta.
Na sua concepção, a piada para ser válida precisa
ter graça e a ofensa não é engraçada. Isso seria um limite da linguagem. Para
explicar isso, faz uma diferença entre a "graça" e a "desgraça".
Para ele, a graça se dá em momentos de "elevação humana" e a
"desgraça" "em situações infernais, destruindo o ego das
pessoas".
O que se produz, por uma parte da nova
geração de humoristas do Stand-up Comedy, carrega, na opinião de Bemvindo,
características do humor estadunidense, marcado por uma violência doentia
própria de sua sociedade.
O stand-up, que não é novo no Brasil, foi
introduzido em 1949, pelo humorista José Vasconcellos, que foi adaptando o
género de acordo com as características do humor latino, criando caricaturas tipicamente
brasileiras. "Em toda a sua carreira, fez humor sem ofender ninguém",
conta o ator, que faz uma ressalva de que nem todos os humoristas atuais do
Stand-up Comedy se enquadram no que considera "humor de insulto".
O cartunista e jornalista Gilberto
Maringoni comenta que um outro limite do humor é aquele que esbarra no poder
económico, no poder de quem paga a piada. "Isso ficou claro quando Rafinha
Bastos fez a piada com a Wanessa Camargo. Ele não foi processado por ser
machista, mas por ter mexido com quem anuncia no CQC, por quem coloca limites",
diz. E complementa: "O CQC, sempre faz piadas com políticos no
Congresso Nacional, alguns merecem. Mas nunca vi fazer piada sobre os péssimos
serviços de telefonia ou sobre as filas nos bancos. Porque não vai atacar o
grande empresariado que é anunciante do programa dele".
Deboche
Os temas relacionados aos negros,
mulheres, homossexuais, deficientes, entre outros, sempre foram os preferenciais
do humor. Para Bemvindo, isso é natural, pois o humor trabalha com exceções, e
não com a regra. "Se você não fala dos anões, eles deixam de existir, se
você não fala de gay, eles vão para o gueto. E é possível fazer isso sem a
destruição do ego, sem transformá-los em anti-humano e antissocial. O humor
pode destruir, mas pode abraçar as pessoas", comenta.
O tratamento dado pelo humor brasileiro a esses
grupos, muitas vezes, não os aproxima de sua humanidade. Na TV, por exemplo, o
deboche em cima de estereótipos se dá, em grande parte, reforçando
preconceitos.
Uma das personagens mais recentes neste sentido, e que causou também
polémica, é a Adelaide, interpretada pelo ator Rodrigo Sanfanna, no programa
humorístico Zorra Total, exibido aos sábados pela Rede Globo.
Adelaide entra em cena como mendiga para pedir
esmola dentro do metro. Para representá-la, o ator pinta a cara de preto,
coloca dentes estragados e separados e exibe um nariz exageradamente alargado.
Adelaide concentra em sua figura características historicamente utilizadas pelo
humor para se referir aos negros como forma de inferiorização: é desdentada,
pobre, inculta e feia.
Em um dos episódios veiculados em 2012, Adelaide
comentou, por exemplo, que, durante uma enchente, quando foi resgatar sua palha
de aço viu que, na verdade, eram os cabelos da sua filha, repetindo a piada de
que cabelo crespo é um cabelo "ruim". Durante sua performance e diálogo
com outros personagens, outros atributos relacionados aos negros são inferiorizados.
Para a psicóloga Sandra Sposito, se as mulheres negras aparecem nas novelas
sempre como subalternas ou erotizadas, no humor, assumem sempre o papel do
grotesco. Suas características físicas são sempre ridicularizadas, e o seu
lugar na sociedade, naturalizado.
Para o humorista Bemvindo Sequeira, a
apresentação de Adelaide não chega a ser racista, mas, para ele, deprecia as
mulheres negras. Além de achar um cliché velho, que passa uma imagem de humor
da década de 1950.
Diversas entidades denunciaram o quadro à Ouvidoria
Nacional da Igualdade Racial. Não foi a primeira vez que o conteúdo do Zorra
Total foi questionado. Em 2011, o Sindicato dos Metroviários de São Paulo
formalizou um pedido à rede Globo, para que a mesma retirasse do ar o quadro "Metro
Zorra Total", por naturalizar a violência sexual contra as mulheres.
Durante o quadro, a personagem de Thalita
Carauta, Janete Balbuína, era sempre bolinada por algum homem no vagão do
metro. Em um dos episódios, ao comentar para a sua amiga, a transexual Valéria
Vasques, que um homem passava a mão em suas partes íntimas, esta respondia para
Janete não reclamar, pois ela tinha que aproveitar por "ser feia
demais". Em diversas vezes, as duas personagens riam da situação que, na
realidade, é trágica para muitas mulheres. Para as que já passaram por essa
humilhação, esse discurso humorístico não é engraçado.
Assim como a piada de Rafinha Bastos, a
cena humorística naturaliza a cultura do estupro da sociedade,
pois não se propõe a
problematizá-lo. Se muitos acreditam que não é papel do humor denunciar problemas
sociais, poderiam, pelo menos, deixar de construir discursos cómicos que tornam
natural e risível uma violência que atinge milhares de mulheres brasileiras.
Esses questionamentos são vistos, muitas
vezes, como um exagero. Tanto os atores do Zorra Total, como Rafinha Bastos,
deram declarações de que somente se tratava de "humor" e que, claro, não
são a favor do estupro.
As emissoras de televisão costumam ter a mesma
postura. Frente ao episódio, a Globo respondeu: "O Zorra Total é um
programa humorístico cujos quadros trazem situações fictícias dissociadas da
realidade. O quadro em questão não incita qualquer comportamento, muito menos a
violência contra a mulher. Seu objetivo é entreter o telespectador, no que,
acreditamos, é bem-sucedido".
É Só Uma Piada
A desculpa da suposta neutralidade e
descompromisso do humor é recorrente. Danilo e Rafinha também em diversas
ocasiões deram declarações de que não se pode confundir "piada" com
"opinião
pessoal". E que o
objetivo do humor é somente fazer as pessoas rirem.
Sobre essa questão, o escritor Antonio
Prata em Riso dos Outros, faz algumas observações: "O humor é
sempre conteúdo disfarçado, então ele pode dizer que é só uma brincadeira.
[Mas] As piadas não têm fundo de verdade, elas são a verdade com um nariz de
palhaço". E completa: "Quando você faz uma piada, você joga ela no
mercado de ideias, está ajudando a criar a massa de cultura." Por ser um
discurso, o humor também é ideológico, expressa opiniões e visões sobre o
mundo.
Para Bemvindo, os comediantes, além de
terem a função de divertir o público e de serem, "antes de mais nada, um pronto-socorro
dos trabalhadores cansados", seu papel é realizar a critica política, da sociedade,
de seus costumes, etc. "O humor trabalha com a negação. Tudo o que é
proibido e rígido, deve ser desmontado e amaciado por ele", comenta.
Através da citação de alguns momentos
históricos, Bemvindo explica a relação do humor com a ideologia política. Conta
que foi durante a Revolução Francesa, por exemplo, que os palhaços conquistaram
o direito à palavra no circo. Antes, seus processos cómicos estavam ligados
somente à mímica e pantomima, explica.
"Ao se engajarem na Revolução,
precisavam fazer discursos políticos no picadeiro e, com isso, conquistaram a fala
em cena", diz, relembrando também a importância do humor produzido durante
a ditadura militar, feito por humoristas como Millôr Fernandes, Henfd, Ziraldo,
entre diversos outros, como forma de combate e resistência ao regime.
O cartunista e jornalista Gilberto
Maringoni ressalta que, mesmo que o humor seja sempre crítico, não é necessariamente
libertário. "Ele, muitas vezes, compactua com o que que há de pior na
sociedade, com preconceitos arraigados. Se a sociedade é preconceituosa, o que
domina, tanto no humor televisivo, radiofónico, impresso, e mesmo no humor nas
ruas, é a repetição de preconceitos", diz o cartunista.
A
cumplicidade do público com o
discurso humorístico é também um limite do humor. A "graça" da piada
também ocorre quando há um compartilhamento de opiniões, ideias entre o
telespectador e o humorista.
Para Maringoni, o humor é também reversão de
expectativas. E se utilizar de elementos da realidade
dada, criando uma outra
percepção sobre ela que, de tão repentina, torna-se engraçada.
No mesmo documentário, Antonio Prata
comenta que, quando se faz uma piada racista, por exemplo, não se está fazendo
nada de inovador. Ri-se que o mundo é desigual. A construção do discurso cómico
que desconstrói a realidade dada, seria mais difícil. "Quando você ofende
alguém que não pode ser ofendido pelo poder dessa pessoa (aquele que faz a
piada), esse humor é grande. Se você passa a mão na bunda do guarda, isso é
engraçado, porque você está se arriscando. Ele tem uma arma e um cassetete na
não", comenta o escritor, que depois questiona qual seria a graça de
passar a mão na bunda do mendigo?
Politicamente
(In) Correto
As diversas denúncias e o questionamento em torno do humor preconceituoso
é tido, atualmente, como um patrulhamento ideológico e uma tentativa de
censura. Sobre isso, Maringoni opina: "O 'politicamente correto', que
alguns denominam como uma tentativa de camisa de força é um dos nomes que se dá
à reação social ao preconceito, inclusive a contida no humor. Nada tem a ver
com o cerceamento da liberdade de expressão. O que não pode haver é a liberdade
do exercício da bossalidade. A justiça não tem nada a ver com liberdade de
expressão. Se eu sou agredido em qualquer situação, o canal democrático que eu
tenho é entrar na justiça e processar o sujeito. Faz parte do regime
democrático", opina o cartunista.
Em entrevista ao Blog do Sakamoto, o
diretor Pedro Arantes, dá um depoimento interessante sobre essa questão:
"Com a organização desses grupos (de mulheres, negros, homossexuais, etc)
e a conquista gradual de direitos, é cada vez menos aceitável que se faça
piadas desse tipo, ridicularizando um negro por ser negro, uma mulher por ser
mulher, um homossexual por ser homossexual. E menos aceitável não porque o
mundo está mais chato ou careta, mas porque esses grupos historicamente
ridicularizados, ao se organizarem, conquistaram direitos e voz para reagir. A
partir do momento que esse humor passa a ser menos aceitável, existe uma reação
daqueles que querem continuar fazendo essas velhas piadas. Essa reação, que se
diz libertária, a medida em que combate a 'ditadura do politicamente correto',
de fato está reagindo contra a perda de uma liberdade: a liberdade de um grupo
historicamente dominante de oprimir, pela via do humor, os outros grupos
sociais. A liberdade de alguns em limitar a liberdade e o direito dos outros.
Uma liberdade que, no fim das contas, não passa de privilégio."
Para a psicóloga Sandra Sposito, não deve
haver um dispositivo legal que proíba as piadas de circularem. No entanto, a
manifestação de grupos sociais deve ser legítima e encarada como natural, principalmente
pelas grandes emissoras da TV brasileira que, por atuarem através de concessões
públicas, deveriam abrir canais de discussão sobre produção de conteúdo.
Para o jornalista e professor de
comunicação social da PUC-SP, Silvio Mieli, além de grande parte do humor estar
tomado por um neoconservadorismo, falta debate em torno de sua linguagem, que
compromete sua inovação. "O fluxo de debate sobre a produção humorística
foi enterrada pela indústria cultural", tanto na academia como dentro das
produtoras, emissoras, opina o professor. "Você não encontra produções críticas
sobre o humor que é feito no Brasil. Nós estamos infantilizados culturalmente, daí,
as características desses programas de trabalharem nesse registro baixo",
conclui.
Documentário
“O Riso dos Outros” de Pedro Arantes.
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