“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Escravos de escravos

Índios e negros lutaram séculos para se libertar no Brasil, mas eles próprios exerceram a escravidão antes da chegada dos portugueses e do tráfico negreiro na África.

Antonio Risério

          
     Quando se fala de escravidão no Brasil, o que costuma vir à cabeça das pessoas é um quadro bastante simples. O colonizador português desembarcou na orla marítima, escravizou inúmeros índios e, em seguida, passou a importar levas e mais levas de escravos africanos, que faziam a travessia atlânti­ca a bordo dos célebres navios negreiros. Além disso, todos sabem que, durante séculos, índios e negros lutaram bravamente para se libertar de seus senho­res. Como em Palmares e na Revolta dos Malês. O quadro não é falso. Mas, também, não é inteiramente verdadeiro. Ou, antes, não está completo.

               A prática da comercialização de negros começou, em Portugal, no século XV. Em 1444, o navegador Gil Eanes, que dez anos antes havia ultrapassado o Cabo Bojador, levou para lá uma carga de duzentos indivíduos, entre pretos retintos e outros algo clareados, pela mistura com sangue árabe ou berbere. A partir daí, cresceu o número de aventureiros envolvidos no transporte e na comercialização de sucessivos lotes de africanos escravizados.

               O comércio europeu de gente negra começou, portanto, antes da descoberta do Brasil, como uma espécie de subproduto da exploração marítima da costa ocidental africana pelos capitães que o infante d. Henrique despachava do seu promontório de Sagres. Mais ou menos por essa época, o infante iniciou a colonização das ilhas atlânticas que descobrira. O mo­delo colonizador aplicado na Madeira e nos Açores con­jugava monocultura açu­careira e mão-de-obra es­crava, sob a gerência de um capitão donatário - o primeiro deles, Gonçalo Velho Cabral, descobridor dos Açores, era tio-avô de Pedro Álvares Cabral.

               Antes disso, índios já vinham sendo reduzidos ao cativeiro. Quando as naus cabralinas fizeram escala na região de Porto Seguro, a caminho de Calicute, na índia, o escravismo já era coisa comum e antiga no Brasil. Entre os povos tupis, era uma prática ancestral, sacramentada pelos seus códigos de existência social. Os tupinambás conseguiam seus escravos, basica­mente, por dois expedientes: capturando adversários (objetivo principal de suas guerras incessantes) e aco­lhendo fugitivos. A escravização da massa indígena, pelos portugueses, assumiu caráter sistemático a par­tir do regime das capitanias hereditárias.  Isto é, quan­do a economia do escambo, a troca de pau-brasil por produtos europeus (de espelhos à utensilagem metá­lica), foi superada pela agricultura, os lusos intensifi­caram as atividades de captura e escravização de ín­dios. A mão-de-obra indígena se tornara vital para o sucesso do empreendimento colonizador. O próprio comércio de índios passou a ser um negócio lucrati­vo. Foi também nessa época que a visão lusitana do índio principiou a destoar, mais e mais, da aquarela traçada por Pero Vaz de Caminha.

               A escravidão existia na África des­de tempos imemoriais. Era uma rea­lidade institucional, não somente exercida na prática, mas sancionada pelas leis e pelos costumes. Nos impé­rios do Mali e do Gao, escravos esta­belecidos em colônias agrícolas cui­davam das grandes propriedades dos príncipes e dos ulemás, grupo islâmico da região de Gabu, oeste da África. Na primeira metade do século XV, o grão-vizir de Kano, localizada no Golfo do Benin (atualmente na Nigéria), fundou 21 cidades, instalando, em cada uma delas, mil escravos. Esses es­cravos, em toda a África, eram obtidos pelos mais di­versos meios, do sequestro à guerra dirigida especifi­camente para caçar e capturar gente, cativos que eram conduzidos a pé pelas estradas, amarrados uns aos outros pelo pescoço. Foi na África, de resto, onde a instituição escravista mais durou - e não no Brasil, como se costuma dizer - chegando até o século XX.

               Muito antes de europeus colocarem o pé no con­tinente africano, havia escravos no Reino do Congo. A estratificação social do reino, por sinal, era de uma nitidez absoluta. Havia a aristocracia, um seg­mento intermediário de homens livres e a massa escrava. A aristocracia formava uma casta, desde que seus membros eram impedidos de se casar com plebeus. A parte pesada dos trabalhos agrícolas re­caía, evidentemente, sobre os escravos.

                           Os nagôs ou iorubás - cujo território, a chamada Iorubalândia, apresentava notável grau de urbanização e apresentou ao mundo uma das mais belas e profun­das tradições esculturais do planeta, com a estatuária de Ifé - não ficavam atrás. Conheciam o comércio, a moe­da, a escravidão. Possuíam vasta escravaria, na verdade. E o escravo re­querido em sacrifício pelos orixás era degolado, enterrado vivo ou tinha os membros amputados.

               Quando os portugueses se instala­ram de vez no território brasileiro, a massa amerín­dia praticamente se dividiu entre aliados e inimigos. Não foram raros os índios livres que, em suas trocas com os lusitanos, negociaram índios que haviam capturado em suas expedições bélicas. Na verdade, a prática comercial lusa modificou a atitude amerín­dia perante a escravidão. Em Duas viagens ao Brasil, Hans Staden (que chegou, ele mesmo, a ser escravo dos índios) registra que, certa vez, quando os tupiniquins prenderam um lote inteiro de tupinambás, de­voraram apenas os mais velhos, vendendo os jovens aos portugueses. Antes desse comércio, tais jovens teriam sido escravizados e posteriormente submeti­dos ao ritual antropofágico. Vender tornara-se me­lhor do que comer.

               Os africanos não foram apenas envolvidos pelo tráfico de escravos. Eles também se envolveram ativamente no grande comércio transatlântico. Isto é: uns foram vítimas, outros foram agentes do tráfico. "Os negros começaram logo em África uma luta fratrici­da, incessante, bárbara, a fim de arrebanharem e fazerem prisioneiros, que vinham trazer aos negreiros", observou, já nos anos de 1860, o abolicionista brasi­leiro Agostinho Marques Perdigão Malheiro, em A escravidão no Brasil - Ensaio histórico, jurídico, social. Eram os próprios africanos que controlavam as fon­tes de fornecimento de escravos negros. Agiam como intermediários e traficantes, carreando corpos para as embarcações europeias. Vendiam seus "irmãos de cor", como hoje se costuma dizer.

               Portugal impôs um regime de exclusividade co­mercial à sua colônia ultramarina - isto é, o Brasil só podia negociar com Lisboa. Na prática, esse ex­clusivismo nunca vingou de forma absoluta. A Bahia não vivia unicamente em função da metró­pole, no plano das trocas internacionais. O comér­cio de escravos foi um exemplo definitivo disso. Apesar de reverências oficiais à Coroa lusitana, o tráfico foi, principalmente a partir do século XVIII, um negócio bilateral que, envolvendo africanos e baianos, passava muitas vezes ao largo de Lisboa. Era uma atividade comercial que, em alguns mo­mentos, mediu forças com o poder lisboeta, espe­cialmente depois que a Inglaterra entrou no jogo para dar um basta ao negócio.

               Não se presta maior atenção a esse fato. Mas foi um fato - e não se deve perdê-lo de vista. Nos séculos XVIII e XIX, o tráfico foi uma relação direta entre baianos e africanos (assim como entre cariocas e angolanos), vinculando, particularmente, a cidade da Bahia e o Reino do Daomé. Era uma relação altamente lucrativa para ambas as partes. A Bahia comprava os escravos porque necessitava deles para funcionar. E o tráfico, em si mesmo, era um grande negócio, exigin­do investimentos pesados e gerando lucros imensos.

               O papel da África, no comércio de negros escravi­zados, nada teve de passivo. A parceria da Bahia e do Daomé é exemplo irrefutável do nexo orgânico que conectava as duas margens do Atlântico Sul. Em seu livro Em costas negras - Uma história do tráfico de es­cravos entre a África e o Rio de Janeiro, o historiador Manolo Florentino diz que "ao consumo do escravo [no Brasil] precedia um movimento típico da face africana do tráfico, o da produção social do cativo". O problema é que - por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia de que os negros, seres essencialmente bons, haviam caído, desde o século XV, nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus. A África conheceu a guerra, a estratificação social, a es­cravidão, a moeda e a tortura muito antes de os eu­ropeus aparecerem por lá. Em verdade, achar que não havia exploração do homem pelo homem na África, antes da chegada dos europeus, é considerar que os africanos eram seres inferiores.

                              Na África, o tráfico gerou riquezas, incrementou divisões sociais preexistentes, consolidou formações estatais. Os reis do antigo Daomé e a classe domi­nante dos grupos nagôs ou iorubás disputaram en­tre si o monopólio da exportação de escravos para o Brasil, despachando até diversas embaixadas oficiais à Bahia e a Portugal para tratar do assunto. Em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, Pierre Verger, pioneiro da chamada "antropologia visual", informa que, de 1750 a 1811, foram enviadas à Bahia pelo menos quatro embaixadas do Daomé, duas de Onim (Lagos, Nigéria) e uma de Ardra (Porto Novo, Daomé). Seu objetivo, de um modo geral, era estreitar rela­ções comerciais com o Brasil.

               Por ocasião da embaixada daomeana de 1750, os enviados do rei Tegbessu presentearam o conde de Atouguia, então vice-rei do Brasil, com uma caixa de panos-da-costa e quatro negras, três das quais foram parar em Lisboa, servindo no quarto da rainha de Portugal (a quarta ne­gra ficara cega ao desembarcar em Salvador). Adiante, os dois embaixadores daomeanos de 1795, remetidos pelo rei Agonglô, deixaram os seus aposentos no Convento de São Francisco de Assis, onde estavam hospedados, para, em audiên­cia oficial, propor ao governador da Bahia, Fer­nando José de Portugal, a exclusividade do comér­cio de escravos em Uidá. O governador rejeitou a proposta do comércio privativo Bahia/Uidá, alegan­do que tal monopólio prejudicaria interesses baia­nos. Em 1805, por iniciativa do rei Adandozan, os daomeanos (aqui, chamados "jejes") voltaram a in­sistir, sem êxito, na pretensão do comércio exclusi­vo. Ou seja: assim como índios escravizavam e ven­diam índios, negros escravizavam e vendiam ne­gros. E queriam lucros cada vez maiores.

               É evidente que o objetivo das revoltas escravas no Brasil era se livrar do sistema econômico e social da escravidão. Mas - e isto é que é da mais funda im­portância - sempre em termos restritos, singulares. O sujeito não queria de modo algum ser escravizado por alguém, mas jamais hesitaria em fazer de alguém escravo seu. Triste ou lamentável, esta era a realida­de. Foi o que predominou no Brasil, pelo menos até à primeira metade do século XIX, quando começou a ganhar corpo o movimento abolicionista.

               Havia escravos até em Palmares. Os palmarinos li­bertários não abriram mão de contar com os seus próprios cativos. A documentação disponível fala da existência de homens que, sequestrados em investidas de guerrilheiros palmarinos, eram levados para os ar­raiais rebeldes, passando a trabalhar como escravos nas plantações. Nenhuma surpresa no fato, ao contrá­rio do que podem pensar aqueles que ainda cultivam o mito de que um Estado Negro Ideal se teria forma­do, no século XVII, em terras alagoanas.  Ganga Zumba e Zumbi vinham de áreas congo-angolanas onde o regime de trabalho escravo era uma institui­ção antiga, aceita social e culturalmente. E quanto mais as atividades agrícolas se foram desenvolvendo em Palmares, mais o escravismo se enraizou naquela "república".

               Num universo de povos que ad­mitiam com tranquilidade a existên­cia de escravos, o desejo índio e negro de reduzir brancos ou mulatos ao cativeiro foi intenso e comum na his­tória brasileira. Na hoje célebre Santidade de Jaguaripe - estudada por Ronaldo Vainfas em A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial -, o projeto era escravizar ou mesmo eliminar os brancos. Para sair do meio rural e dar um exemplo urbano, os negros malês, muçulmanos vindos de diversas regiões da África, que se insurgiram violentamente contra a ordem estabelecida, em 1835, que­riam alcançar a sua libertação do regime, mas não destruí-lo. A escravidão estava ins­crita em seu projeto de instalação de um "califado" na Bahia do século XIX.

               Palmares e a revolta dos malês ja­mais incluíram, em suas práticas ou em seus programas, a abolição da escravidão. Se o pequeno bando nômade de cinco ou seis quilombolas podia contentar-se com assaltos e roubos, pilhando fazendas de gado ou plantações, a ins­tituição de um macroquilombo significava outra coisa. E pedia escravos para tocar o seu dia-a-dia.

              Quando um africano ou descendente de africano conseguia a alforria, no Brasil, uma das suas primei­ras providências era comprar ou tentar comprar es­cravos. É impressionante o número de negros forros que possuíam cativos, como demonstram, irrefuta­velmente, as pesquisas documentais sobre a matéria. Os arquivos da Bahia estão cheios de exemplos, co­mo mostram as pesquisas de historiadoras como Kátia Mattoso e Maria Inês Cortes de Oliveira. Havia muitos testamentos em que escravos aparecem arro­lados entre as propriedades de negros alforriados. Mas não era exclusividade baiana. Era coisa corri­queira em todos os cantos e recantos da colônia, de Pernambuco a São Paulo, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro. E continuou sendo na nação independente até quase às últimas décadas do século XIX, quando, finalmente, o regime escravista caiu por terra.

               Em A vida dos escravos no Rio de Janeiro -1808-1850, Mary Karasch registrou: "Alguns tinham até propriedades, inclusive outros escravos." Depois de observar que "os africanos libertos que compravam escravas estavam indiscutivelmente perpetuando uma forma africana no Rio", a estudiosa prossegue: "Uma vez que a posse era um fator determinante tão essencial da posição de uma pessoa no Rio do século XIX, os es­cravos buscavam ser donos de escravos... Eles compra­vam muitas vezes outros para ajudá-los a obter sua própria liberdade, ou para trocá-los pela sua pessoa."

               A Inconfidência Mineira foi uma conjuração de proprietários de escravos. "Cafre vil" é como Cláudio Manuel da Costa classifica o quilombola. Pouco antes de ser preso, Tiradentes vendera um mulato que era sua propriedade. O primeiro brado contra a escravidão só foi ouvido em 1798, com a chamada Revolução dos Alfaiates ou Conspiração dos Búzios, na Bahia. Mas a maré abolicionista ain­da tardou. O fato de todos terem sido proprietários, durante tanto tempo, teve repercussão profunda na vida nacional, com desdobramentos que ainda hoje marcam o cotidiano. Não deixa de ser ainda forte entrave à conquista da cidadania plena no Brasil.

Antonio Risério é antropólogo, poeta, ensaísta e historiador.

Fonte: Revista Nossa História - Ano I nº 04 – Fevereiro/2004

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O poder das letras - Medo de alfabetização

A face negra da Abolição

Especial - Abolição da Escravatura 13-05-1888

Indústrias na colônia, não.

               "Para preservar Portugal, o rei precisa da riqueza do Brasil mais que da do próprio Portugal." Estas palavras, escritas em 1738 por d. Luís da Cunha - um dos mais célebres ministros portugueses -, revelam uma estranha situação: sem o Brasil, Portugal não sobreviveria diante das acirradas disputas entre as potências. A afirmação profética de d. Luís da Cunha serve de inspiração à apreciação do Alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia a instalação de manufaturas de tecidos no Brasil.

          Na época do Iluminismo, Portugal desperta para a urgência de mudar a forma de lidar com sua colônia na América. Das novas ideias aproveita a teoria da fisiocracia que via na agricultura a principal fonte de riqueza de uma nação. O Brasil recebeu várias determinações baseadas nestas doutrinas, o que resultou em um aumento da exportação de produtos tradicionais como o açúcar, e de novos, como o algodão. Na mesma proporção, atiçava a cobiça de rivais europeus, como a Inglaterra, que via no mercado colonial a garantia de escoamento de sua produção têxtil.

          Lido de modo superficial, o Alvará parece uma manifestação da política mercantilista, no sentido da manutenção do monopólio comercial. Mas, colocando uma lupa sobre o texto enxerga-se bem mais do que uma atitude opressiva: ele revela os dilemas enfrentados pela Coroa para a conservação de seus domínios de além-mar, especialmente necessários numa época em que estouravam crises e revoltas nas colônias americanas.

          Com isso entende-se como se apresenta dividido seu conteúdo. Na primeira, constata-se que no Brasil se difundiam muitas fábricas com "grave prejuízo [...] da lavoura" e "das terras minerais"; na segunda, vários argumentos justificam a atitude proibitiva que só apareceria na terceira parte: sendo as "produções da terra" a "verdadeira e sólida riqueza" base do comércio entre o reino e a colônia - era lícito que todas as "fábricas, manufaturas ou teares" fossem "extintas" do Brasil.

          O diagnóstico desse "surto" manufatureiro derivou, segundo o historiador Fernando Novais, de informações enviadas da colônia, mas, sobretudo, dos prejuízos verificados nas alfândegas portuguesas, como a diminuição da exportação de tecidos para o Brasil. Estes danos também eram sentidos na redução da extração de ouro e diamantes, e na consequente queda da arrecadação dos quintos. Os efeitos mais negativos à economia portuguesa estão, contudo, nas entrelinhas do Alvará: o intenso contrabando praticado nos portos coloniais, que, mais do que as manufaturas, ameaçava a estabilidade da economia portuguesa.

          Qual terá sido o impacto efetivo do Alvará na economia de todo o Brasil? Modestos 13 teares, no Rio de Janeiro, utilizados na produção artesanal de tecidos. Nas outras capitanias, a situação não foi diferente: em Minas, o governador constrangido diz que ali não tinha "notícias de fábricas de qualidade alguma", apenas teares de tecidos grossos para o vestuário dos escravos, permitidos no documento. Comumente considerado um golpe à economia colonial, o Alvará refletia, na verdade, o precário conhecimento que a metrópole possuía da realidade colonial. Além disso, o Brasil não possuía condições de competir com a produção têxtil europeia, considerando sua estrutura social escravista e seu reduzido mercado interno. Seu aspecto contraditório era o espelho das dificuldades dos dirigentes portugueses em administrar, por um lado, os interesses comerciais das potências europeias, mantendo, por outro, os laços que uniam Portugal e Brasil. Uma cópia do Alvará de 5 de janeiro de 1785 pode ser consultada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 1 nº 12 - outubro 2004

sábado, 1 de maio de 2021

Eldorado brasileiro

Fome, doença e matança de índios na busca do Eldorado brasileiro.

"Não fomos mais capazes de continuar a viagem por causa da cintilação que ofuscava os nossos olhos

Adriana Romeiro

               O sonho de um Eldorado encravado no coração da América portuguesa povoava a imaginação dos portugueses desde o Descobrimento. Narrativas fantásticas davam conta da existência de uma resplandecente serra de ouro, que os índios chamavam de Sabarabuçu, localizada na mesma latitude de Potosi, no Peru.

                Ainda em 1554, o padre Anchieta escrevia que na capitania de São Vicente havia grande abundância de ouro, prata, ferro, afirmando mesmo que os moradores tinham suas casas abarrotadas de metais preciosos. Por esta época, também o inglês John Whithall - conhecido por aqui como João Leitão - falava sobre a existência de ricas minas de ouro que estavam tão-somente à espera de mineiros práticos para explorá-las. Ou ainda Anthony Knivet, aventureiro dos tempos da rainha Elizabeth, autor de um curioso relato sobre suas viagens pelo continente, empreendidas a partir do Rio de Janeiro.

                Convencido de que ele e seus homens estavam próximos à costa do Pacífico, descreveu o seu encontro com o cerro de Potosi: "Chegamos numa região aprazível, e avistamos à nossa frente uma montanha reluzente, dez dias antes de alcançá-la; porque quando entramos na planície, deixando a região de montanhas, e o sol começou a atingir o seu pináculo, não fomos mais capazes de continuar a viagem, por causa da cintilação que ofuscava os nossos olhos".

                As notícias sobre a existência de metais preciosos, associadas à convicção inabalável da proximidade geográfica entre a América portuguesa e o El dorado peruano, bem cedo levaram Portugal a organizar uma série de expedições com o objetivo de encontrá-los. A descoberta do ouro tão almejado nos confins da capitania de São Vicente, ainda no século XVI, revelou-se um completo malogro: ouro ralo e escasso, de lavagem e não de mina - isto é, encontrado no leito dos rios —, em nada se assemelhava aos relatos correntes sobre minas riquíssimas e perenes.

                Ao longo dos séculos XVII e XVIII sucederam-se as histórias de expedições malogradas, perdidas no interior do continente, às voltas com tribos ferozes e febres mortais, vencidas muitas vezes pela fome mais atroz. A jornada inglória de Fernão Dias Paes (16081681) é emblemática: depois de se oferecer para chefiar uma bandeira em busca de esmeraldas, ele seguiu, acompanhado por grande séquito, em direção aos Cataguases, deixando atrás de si o caminho crivado de sepulturas.

                Foram longos anos de mil sofrimentos em meio aos sertões, nos quais os companheiros foram morrendo ou simplesmente abandonando a expedição, para fugir da miséria ou das "carneiradas" - as febres malsãs que assolavam os que andavam pelos matos. Houve até uma conspiração para assassinar o velho sertanista, liderada por um seu filho bastardo. Ao fim, no lugar das esmeraldas, a expedição carregou o corpo embalsamado de Fernão Dias Paes de volta à vila de São Paulo.

                Só na última década do século XVII é que o ouro dos sertões dos Cataguases foi finalmente descoberto. É quase certo que os paulistas já conheciam havia muito sua localização: em suas andanças pelo interior do continente, em bandeiras de apresamento de índios ou em expedições dirigidas ao Nordeste para lutar contra índios e quilombolas, eles haviam palmilhado todo o território que compreenderia depois a capitania das Minas Gerais, ultrapassando em muito as suas fronteiras.

                Basta lembrar a epopeia de Antônio Raposo Tavares (1598-1658), o célebre destruidor das missões dos índios guaranis. Ele chefiou, por volta de 1648, uma expedição que, partindo de São Paulo, atravessou o Paraguai e o Chaco, contornou em seguida o sopé dos Andes, para depois continuar rio Madeira abaixo, até o Amazonas, e alcançar finalmente Belém do Pará, em 1651.

                Não se sabe ao certo quando o ouro foi encontrado pela primeira vez. Se, a este respeito, as narrativas divergem entre si, a maioria delas aponta o nome de Antônio Rodrigues Arzão, paulista, "homem sertanejo, conquistador do gentio dos sertões da Casa". Percorrendo os sertões das Gerais, em busca de índios, ele teria encontrado, por volta de 1693, "alguns ribeiros com disposição de ter ouro". Munido de uma simples bateia, conseguiu apurar modestas três oitavas de ouro. A expedição, contudo, foi obrigada, diante da investida do "gentio bravo", a embrenhar-se pelos sertões da capitania do Espírito Santo, aonde Arzão chegou gravemente enfermo.

                De volta a São Paulo, pouco antes de morrer, ele entregou a um parente, Bartolomeu Bueno de Siqueira, um mapa com a localização do ouro, encarregando-o de organizar uma expedição para descobrir o metal. Em 1694, a expedição teria encontrado ouro em Itaverava. As descobertas se sucederão em ritmo vertiginoso, e em pouco tempo os três principais polos de povoamento da capitania - Ribeirão do Carmo, Ouro Preto e Sabará - já estavam consolidados.

                No começo, as técnicas de mineração eram rudimentares e atrasadas, tributárias da experiência dos escravos africanos que trouxeram para o Brasil a bateia - gamela de metal ou madeira - e outros instrumentos de garimpo. Todo o transporte do cascalho, desde o rio ou dos montes até os locais da lavagem, era feito única e exclusivamente por cativos. Animais de carga só tardiamente foram introduzidos. Nessas condições, os efeitos da mineração sobre o meio ambiente foram devastadores.

Adriana Romeiro é professora de História na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de Um visionário na corte de d. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 - outubro 2006

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A Febre do ouro