“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 24 de março de 2021

Canibalismo em nome do amor

Mães devoravam filhos mortos, viúvas comiam os maridos, filhos banqueteavam-se com os pais. Nem sempre a antropofagia originava-se da luta entre rivais, poderia ser cerimônia fúnebre.

Ronald Raminelli

               Com frequência, os relatos de canibalismo vinculam a ingestão de carne humana à violência. Essa regra, porém, nem sempre é válida para todas as etnias americanas. Radicados entre o litoral dos atuais estados do Maranhão e São Paulo, os índios tupis do século XVI devoravam os inimigos depois de capturados em combates. Seus guerreiros travavam infindáveis batalhas para vingar antepassados mortos em guerras ou em rituais antropofágicos. Os homens enfeitavam suas cabeças e armas com penas de aves tropicais e muniam-se de tacapes, arcos e flechas, partindo em busca da desforra. A captura do oponente era, portanto, a conciliação com o passado, com os entes mortos nos campos de batalha. Depois do confronto, os vencedores retornavam à aldeia, trazendo os corpos, vivos ou mortos, de seus inimigos. Os nativos, assim, iniciavam um rito destinado a consumir a carne do oponente e renovar o ciclo da vida para essas comunidades. Na cerimônia, a memória da vingança perpetuava-se criando elos entre passado e futuro, sendo a única tradição transmitida para a posteridade. A obsessão da desforra permanecia como vínculo entre as gerações.

               Mas esse não era o único motivo da antropofagia. Entre os tapuias era o amor o responsável pela ingestão de carne humana. Tapuia era a denominação tupi para as demais etnias, que não se restringiam ao litoral como os tupis. Estavam em grande parte no interior, com ampla dispersão geográfica. Entre os séculos XVI e XVII, vagavam nos sertões do Nordeste ou, como os goitacás, botocudos e aimorés, na atual área entre o norte fluminense e o estado do Espírito Santo. Ao comparar registros escritos e visuais das práticas canibalescas tapuias e tupis, percebe-se que as últimas são mais conhecidas, fartamente difundidas e imortalizadas nas gravuras do holandês Theodore de Bry (1528- 1598) e no filme Como era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de pouco explorado, o canibalismo dos tarairius (tapuias do sertão nordestino) presta-se a muitas controvérsias e à admiração por não ser o ódio o responsável pela morte e ingestão de carne humana. Entre esses tapuias, antropofagia era um ato de amor. Para nós seria impossível pensar que o sentimento maternal levaria uma mãe a consumir um filho morto. A relação entre amor e canibalismo também intrigou os colonos holandeses e luso-brasileiros, que ouviram e registraram histórias e imagens sobre os tarairius.

               Integrante da missão artística do príncipe João Maurício de Nassau, o pintor Albert Eckhout (1612- 1665) representou os índios tarairius em várias obras: Dança dos tarairius, índio tarairiu e índia tarairiu (c.1641 e 1643). Nesses quadros, o artista pintou o grupo sem os vestígios da colonização, sem roupas e instrumentos de trabalho. Seus corpos nus simbolizam a condição de bárbaros, de seres desprovidos de regras e vergonha. A nudez e a fidelidade da expressão facial marcavam a fronteira entre o selvagem e o cristão, ou entre o selvagem e o índio submetido à colonização. Para além da nudez, o índio tarairiu apresenta-se com as marcas de sua cultura, enfeitando-se de penas coloridas sobre a cabeça, de corda presa à cintura e de frágeis sandálias. No rosto estão duas hastes perfurando a pele nas extremidades da boca e, talvez, uma pedra verde incrustada no lábio inferior. Nas mãos segura um tacape, flechas e uma lançadeira, demonstrando as suas potencialidades de guerreiro. Sem dúvida, as feições do ameríndio são o detalhe mais original do mestre. No entanto, a fidelidade da representação afasta-o dos padrões de humanidade aceitos pelos europeus do tempo de Eckhout. Um índio que apresentasse os traços da beleza clássica pareceria menos estranho aos olhos da Europa.

               Esse afastamento dos padrões europeus torna-se ainda evidente nas paisagens que servem de fundo dos quadros. Enquanto os tupis de Eckhout foram pintados próximo à casa-grande ou às plantações, os tarairius encontram-se junto à natureza selvagem. A vegetação em torno do índio reforça, mais uma vez, o distanciamento, pois a representação não enfatiza os vínculos de subserviência aos europeus. Os arbustos, as folhas e as pequenas frutas constituem uma natureza selvagem, sem interesse comercial. E assim estavam livres do comércio colonial e dos colonizadores. O espaço dos tapuias localizava-se além das fronteiras da expansão econômica. Em compensação, eles lutaram junto aos holandeses nos combates aos luso-brasileiros, contra os quais adotavam práticas animalescas, pois corriam como as feras, capturavam-nos e, em seguida, devoravam os seus corpos.

               Também representada pelo pintor Albert Eckhout, a mulher tapuia estaria inteiramente nua, caso não houvesse um tufo de folhas preso à cintura para lhe cobrir a genitália. A mão direita segura a mão decepada do inimigo vitimado talvez em combate. Nas costas há um cesto de palha contendo um pé, que certamente tem a mesma origem da mão. O rosto é europeu, com um nariz fino e muito diferente das narinas dos ameríndios. No plano posterior da tela, há índios munidos de lanças e preparados para uma guerra. Os nativos movimentam os braços para frente, dando dinamismo à cena. A tela, por conseguinte, seria dividida em duas partes: a primeira seria uma alegoria da guerra; a segunda, uma representação do canibalismo.

               O combate entre as hordas poderia ser a sequência anterior à cena dominada pela índia antropófaga. Assim, o campo de batalha seria a origem dos membros esquartejados em poder da tapuia. A vegetação em torno da índia também não possui vínculos com o dia a dia dos colonizadores. A árvore rondosa, os arbustos, os campos e as flores conformam uma natureza sem frutos e estranha às necessidades da colonização. A vegetação, a nudez, a guerra e as marcas do canibalismo retratam, enfim, o afastamento da índia do universo europeu, reduzindo-a à barbárie, concebendo-a como ser decaído.

               A célebre tapuia pintada por Eckhout possui traços comuns ao grupo linguístico Jê, como o apego aos cães, as sandálias confeccionadas com cordas e o corte do cabelo em forma de prato, comuns aos timbiras atuais. O retrato seria de uma mulher da etnia tarairiu. Entre esse grupo, segundo os cronistas do século XVII, ao nascer uma criança, cortava-se o cordão umbilical com um caco afiado e depois cozinhava-o para que a mãe o comesse juntamente com o pelico (placenta). Caso uma mulher abortasse, imediatamente o feto era devorado, pois alegavam que não poderiam dar-lhe melhor túmulo. Por certo, as entranhas de onde veio - o corpo da mãe - eram preferíveis à cova na terra. Depois da morte de uma criança, os índios choravam a perda, em seguida, cortavam a cabeça e retalhavam o corpo, inserindo tudo em uma panela. Muitos parentes eram convidados para o evento e juntos comiam a falecida. Ao término da refeição, punham-se a gritar e a chorar.

               Aos sacerdotes cabia talhar, membro a membro, os mortos, fossem eles abatidos nas guerras ou acometidos por morte natural. Enquanto isso, as velhas acendiam a fogueira para assar os membros e todos juntos celebravam o "enterro" com lágrimas e lamentações. As mulheres comiam as carnes do esposo, as raspavam até os ossos, não em sinal de inimizade, mas de afeto e fidelidade. Os cadáveres dos grandes chefes eram consumidos pelos demais chefes. Não ingeriam todo o corpo e guardavam cuidadosamente os ossos até a celebração do festim solene seguinte, pois somente em rituais era possível a antropofagia. Na ocasião, os ossos tornavam-se carvão, raspados em seguida para serem reduzidos a pó e dissolvidos em água. O mesmo se fazia com os cabelos do defunto. Os parentes bebiam essa mistura e não voltavam a suas danças e cantos depois de consumirem todos os restos do cadáver.

               Os cronistas procuram enfatizar as fronteiras entre a antropofagia amorosa tapuia e a vingativa tupi. O dado permite entender a tela de Albert Eckhout de modo diverso. A índia tarairiu carrega consigo partes do corpo humano e próxima à nativa encontra-se uma cena de guerra. Em princípio, a mão e o pé decepados, em poder da mulher, pertenceriam ao inimigo morto no combate. Os relatos sobre a antropofagia tapuia permitem, porém, traçar outras relações. Assim, as partes do corpo pertenciam a um parente: irmão, marido ou filho da índia. O campo de guerra é o local de morte de um guerreiro da tribo e a índia carrega seus restos mortais para serem consumidos na aldeia em sinal de afeto e fidelidade.

               Deste modo, a tela de Albert Eckhout possui duas interpretações possíveis. Em princípio, a índia tarairiu poderia carregar tanto o corpo de um parente morto quanto os restos do inimigo para serem devorados em cerimônia grupal. Mas uma terceira leitura é também plausível. Os registros escritos e visuais europeus, e o pintor em particular, pareciam mais preocupados em constatar a existência da antropofagia do que compreender a sua modalidade ou os motivos capazes de levar nativos a praticá-la. Talvez o artista estivesse mais interessado em compor uma bela imagem, contendo elementos variados da realidade americana, sem se ater à coerência dos estudos étnicos. Devemos admitir que o rigor científico da imagem não era o maior atributo dos artistas seiscentistas, nem mesmo dos holandeses. O historiador Peter Mason comentou que a preocupação com a descrição da realidade, comum entre os holandeses, não pode ser confundida com realismo ou rigor científico. Mesmo sem se ater ao rigor étnico, Albert Eckhout pintou a mulher tarairiu, composição rica em informações que, ao ser comparada às descrições contemporâneas sobre os costumes tapuias, alimentam ainda hoje essa interessante controvérsia.

RONALD RAMINELLI é professor de História Moderna, História da América e do Brasil Colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Imagens da colonização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

VALLADARES, Clarival do Prado e MELLO FILHO, Luiz Emygdio de. Albert Eckhout; presença da Holanda no Brasil. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1998.

Saiba Mais: Link

Santos e rebeldes

Índio falou, tá falado

Guarani, a língua proibida  

Guerreiros em transe

Saiba mais – Documentário

Histórias do Brasil a Série

Episódio 01– Antes do Brasil, Cabo Frio, 1530

sábado, 13 de março de 2021

Guerreiros em transe

Tradicionais entre os índios da América portuguesa, especialmente os tupinambás, os rituais regados a cauim chocavam e preocupavam o colonizador europeu.

João Azevedo Fernandes

               O ano é 1500. O lugar, uma praia qualquer do litoral brasileiro. Na maloca, iluminada por fogueiras, vários homens se reúnem em volta de uma grande panela, uns sentados no chão, outros sobre pedaços de madeira. Algumas mulheres muito ágeis trazem cuias cheias de uma bebida densa e clara. Um dos homens se levanta e, vibrando um pequeno maracá, começa a dançar e cantar em torno da panela. Sua canção fala de um irmão morto, capturado quando da última expedição contra os inimigos do outro lado da montanha. O homem pede às vozes do maracá que o ajudem a vingá-lo, matando e devorando os odiados vizinhos.

               De repente, um velho que estava afastado se aproxima, um tanto trôpego, e começa a discursar. Fala de seu parentesco e afinidade com o morto, de quem era tio e cunhado. Conta que já havia matado, e comido, muitos daqueles inimigos, e que eles não eram grandes guerreiros, sendo mais afeitos às emboscadas do que ao combate direto. Os homens, e muitas mulheres, respondem ao discurso com risos e gritos altos. As cuias esvaziam-se em um ritmo cada vez mais rápido, e agora muitos estão dançando e discursando sobre lutas e sonhos. Alguns gritam e pedem mais cauim às mulheres, mas a bebida daquela maloca já está esgotada. Cambaleantes, mas ainda bastante dispostos a continuar a bebedeira, os homens levantam-se e vão para a maloca seguinte, onde os esperam vários potes cheios, e a promessa de uma grande noite de cantos e danças e de um dia de vitória e cabeças inimigas esmagadas.

               A colonização europeia do Brasil foi marcada pelo choque entre culturas e pela luta dos recém chegados contra vários costumes dos povos nativos. Entre esses costumes estavam as cauinagens, festas em que se consumiam bebidas feitas de mandioca, milho e frutas. Os índios, especialmente os tupinambás, se relacionavam com as bebidas alcoólicas de uma forma bastante diferente da que os europeus estavam acostumados no Velho Mundo. Aos olhos dos recém-chegados, os tupinambás produziam e consumiam suas bebidas fermentadas de uma maneira nauseante, pecaminosa e profundamente perigosa.

               Durante e após essas cerimônias, os europeus viam suas nascentes estruturas de poder, e seus instáveis mecanismos de controle, serem desafiados por nativos que pareciam "possuídos" por uma força demoníaca, que aparentemente fruía das jarras nas quais suas estranhas bebidas espumavam. Grande parte dos esforços dos colonizadores, especialmente dos missionários, foi dirigida à extinção das práticas etílicas dos índios, vistas como uma ameaça à colonização de seus corpos e mentes.   

               Durante essa luta contra o beber indígena, defrontaram-se lógicas mentais e práticas sociais bastante distintas, construindo-se identidades étnicas e estereótipos que permitiram a elaboração de discursos que legitimavam o domínio dos "civilizados". A visão do "índio bêbado", ainda bem presente nos dias de hoje, foi construída com base nas primeiras experiências dos europeus com as festas dos tupinambás.    

               Contudo, para compreendermos o significado cultural das cauinagens, é necessário abandonar um olhar sobre os prazeres etílicos que vê as bebidas unicamente a partir de um ponto de vista "patológico", como uma fonte de problemas sociais, ou mesmo como algo apenas recreativo. No mundo pré-industrial, e mais ainda naquelas sociedades chamadas de "primitivas", as bebidas fermentadas eram parte integrante da dieta e uma importante fonte de nutrientes essenciais. Além disso, até o advento da era moderna, não se conheciam as bebidas destiladas, que são a principal fonte dos problemas relacionados ao abuso do álcool.

               Desconhecer esses fatos, e lançar para o passado as nossas preocupações contemporâneas, pode levar-nos a equívocos, como o de considerar que o álcool representou um simples instrumento do domínio europeu sobre os povos indígenas, como se estes fossem vítimas passivas de um processo que estava além de seu controle.  

               Na verdade, os índios tinham ideais bastante firmes a respeito do que seria uma boa bebida, e deixaram esse ponto bem claro ao recusar o vinho que lhes foi oferecido pelos portugueses da armada de Pedro Álvares Cabral. Nas palavras do escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, “trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais”. Alguns dias depois, mesmo que os nativos estivessem mais à vontade entre os portugueses, continuavam resistindo ao vinho: o capitão Sancho de Tovar levou, ao seu navio, “dous mancebos, despostos”, que comeram tudo que lhes foi oferecido (inclusive presunto), mas não receberam vinho “por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem”.

               Não é de se estranhar que os índios tivessem rejeitado (pelo menos em um primeiro momento) o vinho das caravelas, já velho e, possivelmente, avinagrado. Em comparação com sua própria bebida, o cauim, o vinho português era algo tão estranho quanto os “fartéis e confeitos”, que também lhes foram oferecidos e recusados sem qualquer cerimônia. Aquela bebida era muito diferente de suas suaves cervejas nativas, feitas de mandioca e milho, e de seus saborosos vinhos de frutas, dos quais se destacava aquele feito com o caju.

               Muitos homens da Europa, e seus descendentes nascidos no Brasil, adoravam as bebidas indígenas: no Tratado descritivo do Brasil em 1587, o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa chamava a atenção para os portugueses e “mestiços” que bebiam os cauins “muito valentemente”. O missionário francês Claude d’Abbeville, que esteve no Maranhão em 1612, provou a bebida feita de milho e achou-a “ótima, saborosa, com um gosto picante nada desagradável”. Outro francês, o padre Yves d’Evreux, que também esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou que a cerveja de milho era “muito mais saborosa e saudável, por causa do contínuo calor, do que o vinho e a aguardente”.

               Não nos enganemos, contudo, com essas opiniões favoráveis. O processo de elaboração do cauim causava asco aos europeus, e isso por uma razão bem simples: a massa, de mandioca ou milho, era mastigada pelas mulheres e cuspida nos vasos, onde era deixada a fermentar. O jesuíta José de Anchieta, grande inimigo das cauinagens, descreveu desta forma, em 1584, a fabricação do cauim: “este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais”.

               Claude d’Abbeville chegou a afirmar que muitos dos seus compatriotas, se vissem a fabricação do cauim, diriam “que os índios são pouco asseados” e que “prefeririam morrer de sede a experimentar essa bebida mastigada pelas mulheres indígenas”. Mas Jean de Léry (missionário protestante que participou da fracassada experiência colonial francesa na baía de Guanabara, entre 1555 e 1560) mostrou que o nojo dos europeus era bem infundado, ao comparar, de forma irônica, as práticas nativas com a técnica do Velho Mundo, na qual os vinhateiros, com seus “lindos pés, às vezes calçados de sapatões”, pisavam as uvas, processo no qual se passavam “muitas coisas talvez menos aprazíveis do que a mastigação das mulheres americanas”.

               Mais assustadora que a saliva das índias, porém, era a embriaguez provocada pelo cauim. No mundo católico europeu, de onde vinha a maior parte dos colonizadores do Brasil, a embriaguez era vista como um pecado, e grave, na medida em que demonstrava uma falta de controle sobre os impulsos e desejos que permitia, e incentivava, pecados piores, como a luxúria e a antropofagia. A temperança, por outro lado, era encarada como uma grande virtude, que sinalizava o domínio sobre atos e emoções que formava a base do comportamento de um verdadeiro cristão.

               Além disso, os povos mediterrâneos, como portugueses e franceses, tendiam a usar as bebidas como parte das refeições: vinho, azeite e trigo formavam a base da alimentação mediterrânea desde a antiguidade greco-romana. Beber fora das refeições e beber com o objetivo de se embriagar eram atos vistos como sinônimos de barbárie e selvageria.

               Nada mais diferente desse padrão do que o modo de beber dos índios. Para começar, os tupinambás (assim como muitos povos indígenas atuais) separavam radicalmente o comer do beber: quando se comia não se bebia, e vice-versa. Não é à toa que uma das afirmações mais comuns da documentação colonial, a respeito dos índios, é a de que “eles não bebem quando comem”, o que marca nitidamente o espanto dos colonizadores com uma atitude tão contrária aos seus pontos de vista.

               Os nativos bebiam, cotidianamente, suas tiquaras (água com um pouco de farinha) e mingaus, mas reservavam suas cervejas e vinhos para as ocasiões especiais, como nos casamentos e funerais, na recepção a convidados e visitantes, nas deliberações sobre guerras e alianças e, sobretudo, naquela que era a principal festividade dos tupinambás: a morte e devoração dos inimigos em seus rituais antropofágicos.

                              Nessas ocasiões, os índios bebiam até a última gota. O cristão-novo, e senhor de engenho, Ambrósio Fernandes Brandão, escrevendo em 1618 sobre os tupinambás de Pernambuco, dizia que a embriaguez era “seu costume mais ordinário”, e que, nas festas, os nativos ficavam “juntos em roda todo um dia e noite inteira, sem dormirem, bebendo sempre de ordinário muito vinho, até caírem todos por terra sem acordo”. Aos missionários, não passou despercebido o componente sexual daquelas festas, em que mulheres e moças também participavam alegremente, “parecendo bem difícil a presença de Baco sem Vênus”, como disse o francês Yves d’Evreux.

               Nas cauinagens, homens e mulheres se misturavam e se revezavam nas quedas e vômitos, mas também nos discursos, feitos em altos brados, relembrando os grandes feitos guerreiros de cada grupo em particular (“os vinhos são os memoriais e crônicas de suas façanhas”, disse um jesuíta em 1610). Tais festas representavam uma visão estarrecedora para muitos dos europeus, especialmente os missionários. O padre jesuíta Fernão Cardim, que viveu no Brasil entre 1583 até sua morte, em 1625, pareceu ficar mais horrorizado com a embriaguez do que com o canibalismo dos índios, ao descrever as festas que cercavam o sacrifício ritual do inimigo preso.

               Cardim observou os muitos “potes de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa grande” e a barafunda de pessoas que se aglomeravam em torno deles. Quando começavam a beber, era “um labirinto ou inferno vê-los e ouvi-los”, pois seus gritos e bailes duravam vários dias, enquanto restasse bebida nos potes. Lançando um olhar profundamente crítico aos modos dos nativos (“a cada passo urinam [...] todos fallão a quem mais alto, afora outros estrondos...”), o padre apontou a íntima ligação entre a festa do cauim e o canibalismo: as bebedeiras eram “a própria festa das matanças”.

               Os jesuítas foram rápidos em perceber que as cauinagens representavam o pontapé inicial para as guerras e para os ritos canibais. Perceberam, também, que as festas formavam o arcabouço sobre o qual se construíam as relações políticas baseadas na hospitalidade entre os grandes chefes, chamados pelos cronistas de principais. Mais do que lutar contra “maus hábitos”, interessava aos jesuítas, e a outros colonizadores, romper as bases do sistema cultural dos índios, atacando ritos como a antropofagia, proibindo instituições como o casamento poligâmico e combatendo as cauinagens, por serem ocasiões em que toda a cultura indígena se expressava de forma entusiástica e, aos olhos dos colonizadores, incontrolável.

               Não é de espantar, portanto, que o abandono do “beber supérfluo” (isto é, beber para se embriagar) representasse uma condição sine qua non para a aceitação de determinado grupo no grêmio da Igreja. Em 1560, o padre Luis da Grã, delegado da Companhia de Jesus no Brasil, informou a alguns principais que queriam estabelecer boas relações com os padres que, entre “os pontos mais essentiais que avião de goardar”, estavam: “[...] que ninguem avya de ter mais [de huma molher], e outro que não avião de beber até se embebedar como custumavão, [...] e que não avião de matar nem comer carne humana”.

               Nessa difícil luta contra as bebidas, os padres tiveram a ajuda inestimável das mulheres nativas. Essa era uma estratégia importante, já que todo o processo de realização de uma cauinagem estava relacionado às mulheres. Além de produzir a saliva que fermentava as bebidas, eram elas que plantavam a mandioca e o milho, e que colhiam as frutas que seriam transformadas nos cauins.

               Às mulheres estava reservada a importante tarefa de fazer as igaçabas, grandes recipientes de cerâmica em que as bebidas eram fermentadas, e as cuias onde eram consumidas. No momento das festas, eram as mulheres que serviam os bebedores, e eram também as mulheres que procuravam impedir (nem sempre com sucesso) que as bebedeiras descambassem para a violência, escondendo armas e retirando maridos e filhos de situações de conflito. As índias cristianizadas ajudavam os padres, quebrando as talhas onde as bebidas espumavam e discursando sem trégua contra as bebedeiras.

               Outra estratégia era a de “cortar o mal pela raiz”. Desde cedo, os meninos nativos eram ensinados a evitar as cauinagens, ajudando as mulheres cristãs a quebrar potes e ridicularizar os bebedores. Contudo, o lugar cultural central das festas do cauim fica claro quando sabemos que os mesmos meninos, que destruíam as bebidas quando crianças, bebiam a mais não poder quando chegavam à idade adulta, “fazendo-se tão rudes e ruins” como seus congêneres pagãos, e fazendo das bebidas “o pecado mais difícil de ser extirpado”, como disseram vários jesuítas.

               Com todas essas dificuldades, os colonizadores acabaram por vencer as cauinagens. Espoliados de suas terras, impedidos de fazer suas guerras, e de comer seus inimigos, os tupinambás abandonaram suas antigas festas. As bebidas tradicionais perderam seu lugar central como espaço de congraçamento e hospitalidade, sendo substituídas por uma legítima invenção do Brasil colonial: a cachaça. Mas esta é uma outra história.

João Azevedo Fernandes é autor de “De cunhã a mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil”. João Pessoa: Ed. UFPB, 2003.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional – Ano 1- Edição nº 4 - outubro 2005

Saiba mais - Bibliografia

CAMARA CASCUDO. Luís da. História da alimentação no brasil. São Paulo: Global, 2004.

EVREUX. Yves d'. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano, 2002. FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec/Brasília: Edunb, 1989 (1948).

Saiba Mais: Filmes

Como era gostoso o meu francês. Direção Nelson Pereira dos Santos. Brasil/1970.

Hans Staden. Direção Luís Alberto Pereira. Brasil/1999.

Saiba Mais: Link

Antropofagias: a amorosa tapuia e a vingativa tupi

Santos e rebeldes

Solução caseira

Guarani, a língua proibida  

Pinga, cachaça, jeribita