“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Tabu, crime ou direito?

Praticado clandestinamente por mais de 1 milhão de mulheres anualmente no Brasil, segundo estimativas, o aborto é combatido há séculos, dividindo a sociedade.

Joana Maria Pedro

               Em 1560, o padre José de Anchieta, em carta a seus superiores, acusava as mulheres "brasiles" de provocarem o aborto bebendo certas ervas, apertando a barriga ou "tomando carga grande", ou seja, carregando pesos excessivos. Como ele, outros cronistas escreveram espantados sobre as práticas abortivas das mulheres brasileiras, desde o período colonial. Falavam de chás abortivos, golpes aplicados no ventre, pulos de grande altura, grandes esforços, provocação de vômitos e diarreias, introdução de objetos pontiagudos no útero - como fusos de broca, broches de ferro (espeto para cozinhar alimentos), colheres e canivetes.

               Um espanto sem muita justificativa: o aborto é uma prática muito antiga e era bem frequente na Europa naquele período. Qualquer mulher que quisesse interromper a gravidez encontrava na vizinhança a informação desejada. Infusão de arruda, plantas como sabina e fungos como cravagem de centeio estavam sempre disponíveis. No final de 1800, por exemplo, cerca de cinquenta abortadeiras profissionais anunciavam seus serviços nos jornais de Paris. E as mulheres da classe trabalhadora inglesa usavam pílulas de chumbo ou recorriam a sangrias, banhos quentes e exercícios violentos para interromper a gravidez.

               A reação dos cronistas em relação ao Brasil talvez se devesse ao fato de, aqui, a prática ser abertamente divulgada, enquanto na Europa leis punitivas as tornaram secretas. Aqui, no século XIX, vendedores de arruda - erva abortiva - eram figuras comuns nas ruas das cidades, chegando a ser retratados por Debret.

               Nem é só no Ocidente que há essa tradição. No subcontinente indiano, o aborto é praticado com a inserção de um graveto, raiz, ou casca, no colo do útero. E na Tailândia, Malásia e Filipinas, parteiras especializadas fazem aborto através de massagens. Mas o que as práticas relatadas pelos cronistas no Brasil e aquelas da Europa e de outros lugares tinham, e ainda têm, em comum? Tornam a mulher tão doente que provocam a morte do feto ou de ambos.

               Condenado pela Igreja Católica nos dias de hoje, o aborto já foi permitido ou pelo menos tolerado pela própria Igreja: até o século XIX, considerava-se que a alma só passava a existir no feto masculino após quarenta dias da concepção, e no feminino depois de oitenta dias. Tolerava-se o aborto até a "entrada da alma".

               Os visitadores da Inquisição no Brasil e os manuais dos confessores desde o século XVI recomendavam que fossem feitas perguntas sobre os métodos abortivos das brasileiras: quem as ajudou, o que tomaram etc. Desde a Contrarreforma, a reação católica ao movimento protestante, a Igreja estava se empenhando em divulgar o casamento como sacramento. Condenavam, assim, o aborto, dizendo que era resultado de ligações extraconjugais.

               Em relação ao Estado, a condenação dependia, entre outras coisas, da possibilidade de identificar o aborto como voluntário ou provocado. Nas leis do reino português, que começaram a vigorar no Brasil em 1512 e foram mantidas até a Independência, já havia penalidade para as abortadeiras. O Império criou, em 1830, leis para sentenciar - com penas de prisão e trabalho forçado, por um a cinco anos - as pessoas que provocavam o aborto com o consentimento da gestante, mas sem qualquer punição para a própria mulher que abortasse voluntariamente. Já o Código Penal da República, de 1890, previa de um a cinco anos de reclusão para as gestantes, o que poderia ser reduzido a um terço se estivesse ocultando sua "desonra" - o filho de uma relação extraconjugal. O Código Penal de 1940, ainda vigente [2005], estabelece a detenção de um a três anos para a gestante, sem qualquer redução da pena.

               Em relação aos casos em que o aborto era permitido, os chamados "permissivos", o código de 1830 nada informava. Mas o de 1890 considerava aborto legal, ou necessário, aquele praticado para salvar a vida da gestante. Já o de 1940, em vigor, define como aborto necessário o que impede a morte da gestante ou a gravidez resultante de estupro. Este acréscimo nos permissivos foi motivado pelas preocupações com a degeneração da raça, tão presentes na primeira metade do século XX, quando acreditava-se que um homem que estuprasse uma mulher estaria gerando nela um filho que seria, certamente, criminoso.

               A maior dificuldade nos processos judiciais instaurados era comprovar a existência ou não de aborto voluntário. Era muito mais fácil condenar as abortadeiras. Mas a crescente participação dos conhecimentos médicos permitiu a punição das gestantes. Este saber, fornecido ao Judiciário pela Medicina, dependeu do conhecimento que, por volta do século XVIII, os médicos buscaram obter sobre o corpo feminino e a reprodução, promovendo a expulsão das parteiras dos espaços de poder, e transformando-as em auxiliares assalariadas dos médicos nos hospitais.

               Este conhecimento era anteriormente controlado pelas mulheres - e transmitido através de gerações. Observa-se, então, o crescimento do poder dos médicos na instauração dos inquéritos através dos Códigos: no do Império, o exame de corpo de delito podia ser realizado por boticários e outros profissionais, mas o Código da República exigia que os "peritos oficiais" fossem médicos.

               Várias inovações na Medicina Legal foram adotadas no Brasil, a partir de 1894. Novos métodos foram introduzidos, especialmente os exames químico-toxicológicos de aborto, em que a urina da acusada era injetada numa coelha - se houvesse alterações nos ovários do animal, o aborto estaria confirmado. Eles permitiram que a justiça identificasse a diferença entre aborto e infanticídio (assassinato do próprio filho) - confusão muito comum até o início do século XX. Além disso, permitiram saber se o aborto havia sido provocado e qual o tempo de gestação do feto.

               Mesmo com todo este aparato, poucas mulheres foram punidas por aborto voluntário. Quando acusadas, o escândalo as colocava em situação bastante difícil, com a presença da polícia na casa e depoimentos de parentes e vizinhos, servindo de exemplo para as moças da época. Acreditava-se que haviam recorrido ao aborto por estarem envolvidas em casos extraconjugais. E os homens que as engravidaram sequer eram citados.

               Embora fossem acusadas de relacionamentos sexuais fora do casamento, não é isso que se constata nas pesquisas. Mulheres casadas com vários filhos narram que tentavam e tentam, ainda hoje, apesar do aborto ser crime, impedir o crescimento da família já numerosa e sem condições de sobrevivência digna. Muitas delas narram suas experiências e citam "receitas" de como "fazer descer as regras", e lembram chás de diversas ervas: artemijo, cipó milone, maçanilha, rainha das ervas com noz-moscada e cachaça, cominho, feijão insosso, casca de romã. São "beberagens" que, em geral, causavam náuseas e provocariam, através do vômito e da diarreia, o adoecimento da mulher e, esperava-se, "a saída das regras". Estes métodos, entretanto, nem sempre são eficientes. Fazem parte de um conhecimento de longa tradição, que foi sendo perdido pelo mesmo processo que desqualificou a cura popular que as mulheres, em especial as parteiras, possuíam. Práticas anteriormente consideradas "coisas de mulher", transmitidas entre gerações, como parto, aborto e contracepção, tornaram-se parte do conhecimento médico. Assim, mesmo que muitas mulheres ainda hoje lembrem "receitas" para "fazer descer as regras", perdeu-se o conhecimento sobre a quantidade, a qualidade e a forma de fazer que transformavam o "veneno" em "remédio".

               O aborto, descriminalizado em países como Japão, EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Itália, ainda é crime no Brasil [2005]. Mesmo assim, tem sido praticado de forma clandestina e insegura. Dados do ano 2000, pesquisados pela ONG norte-americana Instituto Alan Guttmacher, mostram que o total de abortos pode variar entre 750 mil e 1,4 milhão por ano, no Brasil. São realizados por mulheres pobres, sem recursos para ampliar a família, recorrendo a métodos que colocam a vida delas em risco. Muitas dessas mulheres engrossam as estatísticas de mortalidade no Brasil: o aborto clandestino e inseguro figura entre as principais causas de morte materna. Dados de 1998 da Rede Feminista de Saúde, a partir de números do SUS, informam que, no Brasil, morre, de complicações do aborto, uma mulher a cada três dias.

JOANA MARIA PEDRO é professora de História na Universidade Federal de Santa Catarina e organizadora do livro Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século XX, Florianópolis: Cidade Futura, 2003

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio & Edunb, 1993.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Remo de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Trad. Paulo Froes. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.

 Saiba Mais: Link

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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Cabra da peste!

Coronel, jagunço, cangaceiro. Criado para atender a interesses políticos regionais, o estereótipo do sertanejo machão não tem contribuído para a felicidade do homem nordestino.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

               A identidade regional nordestina nem sempre existiu. Ela surgiu historicamente há menos de um século, entre 1910 e 1930. A própria Região Nordeste, da qual é habitante e sujeito, só surgiu na geografia e na cultura brasileiras no início do século XX. Antes, a divisão regional do Brasil se resumia às Regiões Norte e Sul. Só em 1941, com a primeira divisão regional do país, definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, é que o Nordeste passa a figurar no mapa do Brasil. É por isso que, ainda hoje, grande parte dos moradores do Sudeste usa o termo Norte para designar os estados nordestinos, e o termo nortista para se referir aos migrantes que vêm desta área do país. Antes da emergência desta identidade regional, os habitantes desta área eram conhecidos através de diferentes designações, tais como nortistas, sertanejos, brejeiros, praieiros, retirantes, além da referência à província ou estado de origem (pernambucanos, baianos, paraibanos, cearenses etc).

               Em 1924, um grupo de intelectuais e líderes políticos encabeçados por Gilberto Freyre - entre outros Odilon Nestor, Amaury Medeiros, Alfredo Freyre, Luiz Cedro, Carlos Lyra, Aníbal Fernandes, Ulisses Pernambucano, Moraes Coutinho, Pedro Paranhos e Julio Bello - fundou, no Recife, o Centro Regionalista do Nordeste, com o objetivo, explicitado em seu estatuto, de promover o sentimento de unidade do Nordeste e de trabalhar em prol dos interesses da região em seus diversos aspectos econômicos, sociais e culturais. Em 1926, o Centro Regionalista promoveu a realização do Congresso Regionalista, que visava a se contrapor ao movimento modernista, marcado pela Semana de Arte Moderna, ocorrida quatro anos antes em São Paulo. Este era percebido como sendo a tentativa paulista de generalizar padrões culturais urbanos e estrangeiros para todo o país, completando, com a supremacia cultural, a sua hegemonia econômica e política. O regionalismo e tradicionalismo, como foi denominado por Freyre, em seu Manifesto regionalista de 1926, o movimento que encabeçava, visava, pois, dar ao Nordeste uma identidade, torná-lo mais do que um simples recorte político ou geográfico. A ideia era dotá-lo de uma memória, de uma história e um conteúdo cultural, definindo um modo de ser e uma estética - ou seja, uma identidade.

               O movimento contribuiu para que as elites políticas e econômicas desses estados, em processo de declínio econômico, se articulassem politicamente e passassem a agir de forma integrada, principalmente no Congresso Nacional. Tal articulação permitiu que, mesmo perdendo importância econômica em relação às Regiões Sul e Leste (depois Sudeste), as elites nordestinas conquistassem uma importância política sempre decisiva na montagem dos blocos políticos responsáveis pela sustentação dos governos federais, notadamente daqueles mais conservadores, como a ditadura Vargas, durante o Estado Novo, e o regime militar após 1964. Ao servirem de base de apoio para sucessivos governos, essas elites conquistaram recursos e benesses para suas áreas de atuação e benefícios privilegiados para suas atividades econômicas. Conseguiram do governo Vargas (1930-1945), por exemplo, a criação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e do Banco do Nordeste, no governo Juscelino Kubitscheck (1956-1961). O discurso regionalista nordestino continua, até hoje, aglutinando políticos e intelectuais das mais diferentes tendências políticas. Quando se fala em nome do Nordeste, o senso crítico parece desaparecer e, como vimos em episódio da década passada - a falência do Banco Econômico, apresentado como única instituição financeira privada do Nordeste -, sua salvação pelos cofres públicos da União foi defendida com irados e revoltados discursos por pessoas de tendências políticas tão díspares como Antônio Carlos Magalhães e Jorge Amado.

               É este Nordeste, ainda tão presente nos embates políticos atuais, e o seu habitante, o nordestino, que passam a ser definidos e caracterizados por uma série de textos, sejam políticos, jornalísticos, literários, sociológicos, históricos ou artísticos, a partir dos anos 20 do século passado. O nordestino vai ser descrito tendo como base um conjunto de imagens e de caracteres que são definidores dos tipos regionais anteriores, notadamente do sertanejo. Este, que vinha sendo caracterizado desde o século XIX, por autores como José de Alencar e Franklin Távora, em obras como O sertanejo (1876) e O Cabeleira (1876), encontrara em Euclides da Cunha e em seu Os sertões (1902) o formulador de um tipo inesquecível. Este seria o cerne de nossa nacionalidade, o verdadeiro brasileiro, esquecido pelo Estado e retardado no processo civilizatório pela desatenção dos homens do litoral, sempre voltados para Paris e Londres e encantados com as novidades europeias. O nordestino vai herdar do sertanejo de Euclides uma série de traços, mas, o mais importante deles, é sua coragem, seu destemor, sua valentia, sua virilidade, que o ajudava a enfrentar uma natureza e organização social tão inóspita e violenta. O nordestino vai ser apresentado em artigos de jornais, discursos parlamentares, obras literárias e sociológicas como um "cabra macho", um "cabra valente”, um "cabra da peste", que, mesmo entregue à sua própria sorte, esquecido às vezes até pelos céus, era capaz de resistir a tudo para não deixar a terra e a família, para defender a sua honra e a daqueles a quem servia.

               Analisando os discursos que foram formulando a identidade de nordestino, o que mais salta aos olhos é que esta figura é sempre pensada no masculino. Não há lugar para o feminino no Nordeste - até a mulher é "macho, sim senhor". Embora esta imagem da mulher-macho tenha sido consagrada pela música Paraíba (1958), composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, encontramos referências de que a mulher nordestina seria uma virago, uma mulher masculinizada por exercer tarefas masculinas nas ausências do marido, provocadas pela migração e pela seca desde os anos 20. A própria imagem que as elites procuraram criar da região, como sendo seca e inóspita, vítima da natureza, para com esta imagem conseguir carrear recursos e conseguir investimentos e cargos públicos em suas áreas de domínio político, faz com que o nordestino seja sempre desenhado como este homem que precisa ser forte, rústico, resistente, quase um homem-cacto, para poder resistir a um ambiente que é sempre descrito como hostil. Até os personagens femininos da literatura regional costumam ganhar contornos masculinos, já que somente uma mulher-macho seria capaz de sobreviver em um ambiente árido e violento: veja os casos de Luzia Homem (Domingos Olímpio, 1903) ou de Maria Moura (Rachel de Queiroz, Memorial de Maria Moura, 1992).

               O nordestino seria o último dos machos, aquele homem que ficara protegido no sertão das mudanças que a cidade anunciava. Ele é assim caracterizado tanto na literatura sociológica, quanto no romance e artigos de jornais, a partir de figuras exemplares do ser masculino, como o coronel, o jagunço e o cangaceiro. O coronel é, ainda hoje, um mito do imaginário nacional. Há certa saudade dessa figura, talvez um desejo de ser coronel entre os homens brasileiros. Isto talvez explique o enorme sucesso de personagens como Ramiro Bastos do romance Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado, e da novela da Rede Globo de Televisão, baseada neste romance, Gabriela (1975) e Odorico Paraguaçu, da novela O bem-amado (1973), de Dias Gomes. Este homem, dono de um poder sem limites, que casava, batizava, mandava soltar e prender, que tinha a seu dispor a vida de homens e a virgindade das mulheres, parece povoar os sonhos de muitos no país. Para este imaginário nacional, embora tenha havido relações baseadas no poder político e econômico dos grandes proprietários em todo o país, bem como bandidos sociais não faltem em outros estados, o Nordeste é visto como a região exclusiva dos coronéis e dos cangaceiros. Ainda hoje, é comum, na imprensa política, demonstrando uma grande falta de imaginação, chamar qualquer político tradicional do Nordeste de "coronel". Lampião passou de facínora, enquanto vivia, a herói regional, com direito a estátua e tudo na cidade de Serra Talhada (PE), depois que foi morto.

               O nordestino é uma figura que articula, portanto, uma identidade regional e uma identidade de gênero: ser nordestino é ser macho. Esta ênfase na masculinidade parece ser uma forma de compensar a crescente impotência econômica e política das elites deste espaço (proprietários de terra, senhores de engenho, comerciantes ligados às atividades de exportação, intelectuais e políticos que representam estes setores da sociedade), que viam sua importância econômica e política se reduzir desde o final do século XIX. Esta identidade vai surgir nos discursos das elites como uma forma destas se articularem política e culturalmente, e tentarem enfrentar em conjunto o processo de declínio que sofriam. A maior prova que esta identidade foi formulada pelas elites é o fato de que a literatura de cordel, que é a única manifestação escrita da cultura popular da região, só vai incorporar este termo muito tardiamente.

               O primeiro folheto de cordel a usar o termo "nordestino" para se referir ao habitante da região é de 1937 e este uso se generaliza apenas nos anos 50, talvez fruto da migração em massa para as grandes cidades do país, onde os homens pobres egressos da região se descobrem conterrâneos. A identidade de nordestino parece ser uma descoberta dolorosa para aqueles que migram e que diante das condições adversas que enfrentam - inclusive os preconceitos explicitados nos estereótipos do "baiano" e do "paraíba" - reforçam o mito do cabra macho, do cabra da peste, como forma de dar uma resposta a esta situação de subalternidade e de discriminação.

               É evidente que esta identidade se apoia em uma realidade de relações bastante desiguais entre o feminino e o masculino, mas ao mesmo tempo ela alimenta a continuidade do funcionamento de códigos de gênero, ou seja, aqueles códigos sociais, bastante arbitrários, que definem como deve ser o comportamento de homens e mulheres, como devemos ser masculinos e femininos. Alimentar o mito do "cabra macho" é contribuir para a permanência, inclusive, da violência contra as mulheres e, ao mesmo tempo, alimentar um modelo de masculinidade que tenta manter um tipo de relação entre homens e mulheres que viria desde o período colonial e que, por isso mesmo, é vista como natural, como eterna. Este modelo vitima os próprios homens, já que os coloca em constantes situações de risco, e deles exige renúncias afetivas e emocionais importantes, como a do exercício da paternidade e da expressão de sentimentos e emoções. Em outras palavras, a macheza nordestina faz os homens infelizes.

DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de Nordestino: uma invenção do "falo" - uma história do gênero masculino (Nordeste, 1920-1940). Maceió: Catavento, 2003.

Fonte: Revista Nossa História – Ano 2 - nº 17 - março 2005

Saiba mais - Bibliografia

FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

MAINARDI, Diogo. Polígono das secas. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste. Fortaleza: Secult, 1994.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O regionalismo nordestino. São Paulo: Moderna, 1984.

Saiba Mais: Link

O guerreiro do sol

O eunuco do Morro Redondo

O pecado original da República

O Legado do Império: governo oligárquico e aspirações democráticas