A mistura de carnes e grãos que resultou no prato mais famoso do Brasil só
ocorreu no século XIX e - ao contrário do que diz a lenda - bem longe das
senzalas
Rodrigo Elias
Convencionou-se que a feijoada
foi inventada nas senzalas. Os escravos, nos escassos intervalos do trabalho na
lavoura, cozinhavam o feijão, que seria um alimento destinado unicamente a
eles, e juntavam os restos de carne da casa-grande, partes do porco que não
serviam ao paladar dos senhores. Após o final da escravidão, o prato inventado
pelos negros conquistou todas as classes sociais, para chegar às mesas de
caríssimos restaurantes no século XX. Mas não foi bem assim.
A história da feijoada - se
quisermos também apreciar seu sentido histórico - nos leva primeiro à
história do feijão. O feijão-preto, aquele da feijoada tradicional, é de origem
sul-americana. Os cronistas dos primeiros anos de colonização já mencionam a
iguaria na dieta indígena, chamado por grupos Guarani ora comanda, ora comaná,
ora cumaná, já identificando algumas variações e subespécies. O
viajante Jean de Léry e o cronista Pero de Magalhães Gandavo, ainda no século
XVI, descreveram o feijão, assim como o seu uso pelos nativos do Brasil. A segunda
edição da famosa Historia Naturalis Brasiliae, do holandês Willen Piso,
revista e aumentada pelo autor e publicada em 1658, tem um capítulo inteiro
dedicado à nobre semente do feijoeiro.
O nome pelo qual o chamamos,
porém, é português. Na época da chegada dos europeus à América, no
início da Idade Moderna, outras variedades deste vegetal já eram conhecidas
no Velho Mundo, aparecendo a palavra feijão escrita pela primeira vez, em
Portugal, no século XIII.
Apenas a partir de meados do
século XVI começou-se a introduzir outras variedades de feijão na colônia,
algumas africanas, mas também o feijão consumido em Portugal, conhecido como feijão-fradinho.
Os cronistas do período compararam as variedades nativas com as trazidas da
Europa e África, e foram categóricos, acompanhando a opinião de Gabriel Soares
de Souza, expressa em 1587: o feijão do Brasil, o preto, era o mais saboroso.
Caiu no gosto dos portugueses.
As populações indígenas
obviamente o apreciavam, mas tinham preferência pela mandioca, raiz que comiam
e até transformavam em bebida, o cauim, e que caiu também nas graças dos
europeus e africanos. A mandioca era o alimento principal dos paulistas, que
misturavam sua farinha à carne cozida, fazendo uma paçoca que os sustentava
nas suas intermináveis viagens de caça a índios. Mas também comiam feijão.
Feijão-preto.
O feijoeiro, em todas as suas
variedades, também facilitou a fixação das populações no território
luso-americano. Era uma cultura essencialmente doméstica, a cargo da mulher e
das filhas, enquanto o homem se ocupava com as outras plantações e com o gado.
A facilidade do manejo e seus custos relativamente baixos fizeram com que a
cultura do feijão se alastrasse no século XVIII entre os colonos. Segundo
Cascudo, tornou-se lugar-comum nas residências humildes do interior do país a
existência do "roçadinho", no qual era atributo quase que exclusivo
das mulheres o "apanhar" ou "arrancar" feijões. A dispersão
populacional dos séculos XVIII e XIX, seja por conta dos currais do Nordeste,
dos tesouros do Centro-Oeste ou das questões de fronteira no Sul, foi
extremamente facilitada pelo prestigiado vegetal. Atrás dos colonos, foi o
feijão. Ao lado da mandioca, ele fixava o homem no território e fazia, com a
farinha, parte do binômio que
"governava
o cardápio do Brasil antigo".
No início do século XIX,
absolutamente todos os viajantes que por aqui passaram e descreveram os hábitos
dos brasileiros de então mencionaram a importância central do feijão como
alimento nacional. O francês Saint-Hilaire sentenciava, nas Minas Gerais de
1817: "O feijão-preto forma prato indispensável na mesa do rico, e esse
legume constitui quase que a única iguaria do pobre." Carl Seidler, militar
alemão, narrando o Rio de Janeiro de 1826, descrevia a forma como era servido:
"acompanhado de um pedaço de carne de rês (boi) seca ao sol e de toucinho
à vontade", reproduzindo em seguida uma máxima que atravessaria aquele
século e o seguinte: “não há refeição sem feijão, só o feijão mata a
fome". Mas opinava: "o gosto é áspero, desagradável". Segundo
ele, só depois de muito tempo o paladar europeu poderia acostumar-se ao prato.
O americano Thomas Ewbank, em 1845, escreveu que "feijão com toucinho é o
prato nacional do Brasil".
Porém, o retrato mais vivo do
preparo comum do feijão - não é ainda a feijoada - foi feito pelo francês
Jean-Baptiste Debret. Descrevendo o jantar da família de um humilde
comerciante carioca nos tempos de d. João VI, afirmou que "se compõe
apenas de um miserável pedaço de carne-seca, de três a quatro polegadas
quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no a grande água com um
punhado de feijões-pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a
vantagem de não fermentar no estômago".
Porém, nem só de feijão viviam
os homens. Os indígenas tinham uma dieta variada, e o feijão nem mesmo era o
seu alimento preferido. Os escravos também comiam mandioca e frutas, apesar da
base do feijão. Mas há o problema da combinação de alimentos, também levantado
por Câmara Cascudo na sua belíssima História da alimentação no Brasil. Havia,
na Época Moderna, entre os habitantes da colônia, tabus alimentares que não
permitiam uma mistura completa do feijão e das carnes com os outros legumes.
Como poderiam fazer nossa conhecida feijoada?
Na Europa, sobretudo na Europa
de herança latina, mediterrânica, havia - e há - um prato tradicional que
remonta pelo menos aos tempos do Império Romano. Consiste basicamente em uma
mistura de vários tipos de carnes, legumes e verduras. Há variações de um
lugar para o outro, porém é um prato bastante popular, tradicional. Em
Portugal, o cozido; na Itália, a casoeula; na França, o cassoulet;
na Espanha, a paella, esta feita à base de arroz. Esta tradição vem
para o Brasil, sobretudo com os portugueses, surgindo com o tempo - na medida
em que se acostumavam ao paladar, sobretudo os nascidos por aqui - a ideia de
prepará-lo com o feijão-preto, inaceitável para os padrões europeus. Nasce,
assim, a feijoada.
Segundo Câmara Cascudo, "o
feijão com carne, água e sal, é apenas feijão. Feijão ralo, de pobre. Feijão
todo-dia. Há distância entre feijoada e feijão. Aquela subentende o cortejo das
carnes, legumes, hortaliças". Esta combinação só ocorre no século XIX, e
bem longe das senzalas. O padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como
"Padre Carapuceiro", publicou no jornal O Carapuceiro, de
Pernambuco, em 3 de março de 1840, um artigo no qual condenava a "feijoada
assassina", escandalizado pelo fato de que era muito apreciada por homens
sedentários e senhoras delicadas da cidade.
Vale lembrar que as partes
salgadas do porco, como orelha, pés, e rabo, nunca foram restos. Eram
apreciados na Europa enquanto o alimento básico nas senzalas era uma mistura de
feijão com farinha.
Uma das referências mais antigas
que se conhece à feijoada em restaurantes está no Diário de Pernambuco de
7 de agosto de 1833, no qual o Hotel Théâtre, do Recife, informa que às quintas-feiras
seriam servidas "feijoada à brasileira". No Rio de Janeiro a menção a
feijoada servida em restaurante aparece pela primeira vez no Jornal do
Commercio de 5 de janeiro de 1849. Nas memórias escritas por Isabel Burton,
esposa do viajante, escritor e diplomata inglês Richard Burton, em 1893,
remetendo-se ao período em que esteve no Brasil, entre 1865 e 1868, aparece um
interessante relato sobre a iguaria. Falando
sobre a vida no Brasil, ela diz que o alimento principal do povo do país -
segundo ela equivalente à batata para os irlandeses - é um saboroso prato de
"feijão" (ela usa a palavra em português) acompanhado de uma
"farinha" muito grossa (também usa a expressão farinha), usualmente
polvilhada sobre o prato. O julgamento da inglesa, após ter provado por três
anos aquilo a que já se refere como "feijoada", e lamentando estar há
mais de 20 sem sentir seu aroma, é bastante positivo: "É deliciosa, e eu
me contentaria, e quase sempre me contentei, de jantá-la."
Hoje em dia não há apenas uma
receita de feijoada. Pelo contrário, parece ser ainda um prato em construção,
como afirmou nosso folclorista maior no final dos anos 1960. Há variações aqui e
acolá, adaptações aos climas e produções locais. Para Câmara Cascudo, a
feijoada não é um simples prato, mas sim um cardápio inteiro. No Rio Grande do
Sul, como nos lembra o historiador Carlos Augusto Ditadi, ela é servida como
prato de inverno. No Rio de Janeiro, vai à mesa de verão a verão, dos botecos
mais baratos aos restaurantes mais sofisticados. O que vale mesmo é a ocasião.
Uma comemoração, uma confraternização, ou até mesmo uma simples reunião de
amigos. Um cronista brasileiro da segunda metade do século XIX, França Júnior,
chegou a dizer mesmo que a feijoada não era o prato em si, mas o festim, a
"patuscada", na qual comiam todo aquele feijão. Como na Feijoada completa de Chico Buarque: "Mulher
/ Você vai gostar / Tô levando uns amigos pra conversar." O sabor e a
ocasião, portanto, é que garantem o sucesso da feijoada. Além, é claro, de uma
certa dose de predisposição histórica para entendê-la e apreciá-la, como vêm fazendo
os brasileiros ao longo dos séculos.
Rodrigo Elias é historiador e professor das Faculdades Integradas Simonsen.
Fonte:
Revista Nossa História - Ano I nº 4 - Fev. 2004
Nenhum comentário:
Postar um comentário