Durante os 24 anos de domínio holandês no Nordeste, católicos,
cristãos-novos e judeus puderam exercer seus cultos livres de perseguições
religiosas.
Fernanda Mayer Lustosa
Isso, depois de um período marcado por
lutas dinásticas e guerras religiosas na Europa, em que a Igreja e a Inquisição
tiveram papel crucial no desenrolar dos acontecimentos. A Inquisição,
instituída na Espanha e em Portugal sob o pretexto de defender a ortodoxia do
Catolicismo, perseguiu cristãos-novos, acusados de praticar o judaísmo,
feiticeiros, homossexuais, blasfemos, protestantes, muçulmanos e hereges.
Entre 1580 e 1640 Portugal encontrava-se
submetido ao domínio de Espanha, por conta dos problemas de sucessão da Coroa.
A Espanha, por sua vez, estava em guerra com a Holanda (que lutava por sua
independência). Em 1609 foi assinada uma trégua de 12 anos entre as duas
nações, mas que se referia somente à Europa, não incluindo as terras da América
ou outras possessões espanholas. Antigo aliado dos holandeses, Portugal teve
então suas colônias ameaçadas nesse período.
Para o comerciante holandês Jan Andries
Moerbeck, de Amsterdã, que defendeu a invasão em 1623 com o relatório Motivos
por que a Companhia das índias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei da Espanha a
terra do Brasil, o ataque ao Brasil naquele momento seria facilitado pela
inexperiência militar dos portugueses e brasileiros, aliada à inimizade destes
com os espanhóis, visto que "aquelas pessoas (...) serão em troca,
libertados da tirania e da inquisição espanholas". O autor argumentava que
as despesas da conquista seriam cobertas com as riquezas que o Brasil oferecia e
pelos impostos que podiam cobrar do povo. Ainda de acordo com a proposta de
Moerbeck, a tolerância religiosa seria uma forma de facilitar o domínio:
"é absolutamente necessário que a Companhia se mostre muito amigável e
cortês (...) deixando a cada um liberdade de religião, fazendo aí boas leis
(...)".
Em 1624, os holandeses atacam a Bahia,
mas são expulsos. Em 1630 invadem Pernambuco, ampliando, nos anos seguintes, a
conquista até Ceará e Maranhão. Antes da invasão, em 1629, o Conselho dos
Dezenove, órgão executivo da Companhia das índias Ocidentais, com sede em
Amsterdã, oficializava a liberdade de religião, através do artigo 10° do
"Regimento de Governo das Praças Conquistadas ou que Forem Conquistadas
nas índias Ocidentais": "Será respeitada a liberdade dos espanhóis,
portugueses e naturais da terra, quer sejam católicos romanos quer judeus, não
podendo ser molestados ou sujeitos a indagações em suas consciências ou em suas
casas e ninguém se atreverá a inquietá-los, perturbá-los ou causar-lhes
estorvo, sob penas arbitrárias, ou conforme as circunstâncias, exemplar e
rigoroso castigo".
Já as "Instruções Secretas ao
General Lonck", de 18 de agosto de 1629, determinavam que "todos os
jesuítas, padres e frades e outros religiosos devem ser embarcados com suas
bagagens", pois os jesuítas em geral eram vistos como aliados dos
espanhóis.
Aqui, a administração holandesa oferecia
vantagens e subsídios para quem aceitasse colonizar a região ocupada, pois
havia grande necessidade de lavradores, não só para trabalhar nas terras que
ainda não haviam sido cultivadas, como na recuperação dos engenhos destruídos
durante a invasão. A tolerância religiosa era um desses atrativos. Com dupla função,
já que, ao concedê-la, os holandeses também buscavam manter a harmonia social
nos limites conquistados.
Segundo Gaspar Barléus, ao comentar o
governo de Maurício de Nassau (1637-1644), na obra História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil,
publicada em Amsterdã no ano de 1647, a política de tolerância em relação aos
judeus estava limitada por sete restrições, dentre elas que: "Não
edificarão eles novas sinagogas"; "A nenhum judeu será permitido
casar com cristã ou ter concubina cristã"; "Comerciando, não fraudem
a ninguém"; "Os filhos nascidos de judeu e de cristão, morrendo os
pais, serão entregues para serem educados aos parentes cristãos. Os que não
tiverem estes serão educados em orfanatos, se forem pobres, ou ficarão sob os
cuidados do Conselho Secreto, se forem ricos".
Da mesma forma, os católicos deveriam se
subordinar a alguns limites: "Ninguém reconhecerá no Brasil holandês a
autoridade de nenhum vigário, bispo ou sufragâneo, não deverá obediência a
nenhum dos de fora, não poderá combinar planos com eles ou ministrar-lhes
dinheiro sub-repticiamente. Todos os presbíteros que desejarem viver sob o
domínio dos holandeses terão de obrigar-se por juramento de fidelidade ao Conde
e ao Conselho Supremo, e não esperarão o governo do bispo da Bahia. Os que
entrarem no nosso território sem salvo-conduto serão detidos como prisioneiros.
Ninguém poderá casar, sendo celebrante do ato um presbítero, sob pena de exílio
e multa de trezentos florins, e os filhos não adirão a herança. Os católicos
romanos realizarão as cerimônias de sua religião no recinto das igrejas e não
fora, pelas ruas e estradas. Pertencerão à Companhia as rendas eclesiásticas,
que serão convertidas nos usos pios, escolas, templos e hospitais. Ser-lhe-á
livre pensarem o que quiserem e dizerem sem ofensa o que pensarem".
Apesar dessas restrições e das
recomendações do bispo da Bahia, dom Pedro da Silva, para que o clero católico
desamparasse a região, muitos padres optaram por permanecer junto aos
holandeses. Dom Pedro da Silva era membro do Conselho-Geral do Santo Ofício e,
depois da invasão, o bispo viu surgir uma oportunidade para exercer a sua
autoridade e realizou, entre 1635 e 1637, uma Devassa para averiguar os nomes
dos católicos que permaneceram nas regiões.
Embora houvesse uma conduta de
tolerância, a convivência entre as diferentes religiões era ocasionalmente
abalada por atritos. Em janeiro de 1638, a Assembleia Classical do Brasil - que
reunia classes, isto é, ordens que congregavam líderes calvinistas - criticava,
por exemplo, os papistas, seguidores do Catolicismo: "pregam sem
impedimentos em igrejas públicas, os frades habitam em conventos e gozam de
suas rendas, fazem procissões nas vias públicas, edificam templos sem o
conhecimento da autoridade, casam mesmo a Neerlandeses sem proclamas (...) e
ouvem em confissão os condenados à morte". Ao mesmo tempo, surgiam
reclamações "sobre a grande liberdade que gozam os judeus no seu culto
divino (...). Tudo isso contraria a propagação da verdade escandalizando os
crentes e os portugueses (...) em prejuízo da Igreja Reformada (...)".
Diante disso, a atitude das autoridades
holandesas teve que sofrer, ao longo do período, algumas transformações,
inclusive implantando restrições a certas manifestações exteriores de culto,
como a realização de procissões, que foram proibidas, mas não totalmente coibidas,
a partir de 1638.
A complexidade do panorama religioso
nessa época pode ser percebida pelo caso do cristão-novo Manoel da Costa,
nomeado em 1639, na Paraíba, capitão da companhia dos burgueses, formada para
combater a esquadra do conde da Torre. Segundo o testemunho de Pedro de Almeida
perante o Santo Ofício em 1649, Manoel da Costa era "francês (...), mas
filho de português (...), em Holanda feito judeu público (...) e assim o diz
quando fala com os Judeus, e quando fala com os Cristãos diz que é Cristão e
quando fala com os holandeses dizia ser da sua religião e lia pelos seus livros
e ia à igreja dos holandeses com eles na Paraíba (...) e se ausentou da Paraíba
para as partes de Holanda e agora haverá dois anos (...) se meteu com a gente
portuguesa (...)".
Em 1654, enfraquecidos na Europa após se
envolverem em uma guerra contra a Inglaterra (1652-1654), os holandeses foram
expulsos do Brasil pelas forças luso-brasileiras, descontentes com o
endurecimento da política mercantilista implantada pela Companhia das índias
Ocidentais, uma política econômica adotada pela maior parte das metrópoles em
relação a suas colônias, e cujos objetivos principais eram o predomínio do
comércio exterior, a ação do Estado em favor da expansão das exportações e de
seu monopólio por companhias de comércio, e a restrição às importações,
promovendo uma balança comercial favorável aos cofres da metrópole.
Embora relativamente breve, a experiência
holandesa no Nordeste marcou profundamente a história da colonização, e até
hoje desperta muito interesse e curiosidade, seja por sua importância
econômica, política, arquitetônica e artística, seja pela tolerância promovida
no campo religioso. Por fim, além de ressaltar os limites entre tolerância e
liberdade religiosas, é necessário observar que, embora a religião tenha sido
mais um instrumento para legitimar a conquista colonial, a ausência de
perseguições já representava um certo progresso nas relações sociais daquela
época.
Fernanda Mayer Lustosa é
mestre em História Social pela FFLCH-USP, onde desenvolveu sua pesquisa sobre a
Inquisição e os cristãos-novos na Paraíba no período colonial, e atualmente
trabalha no centro de documentação e pesquisa do jornal Folha de S. Paulo.
Fonte – Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006
Saiba Mais – Bibliografia
BARLÉUS,
Caspar. História dos feitos recentemente
praticados durante oito anos no Brasil (1647). Prefácio e notas de Mário C.
Ferri. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974.
MELLO,
José Antonio Consalves de. Tempo dos
flamengos. Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do
Brasil. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1979.
NEME,
Mário. O Brasil holandês no tempo de
Nassau. São Paulo: Anais do Museu Paulista, tomo XXXII, 1983.
NOVINSKY,
Anita. Uma devassa do bispo dom Pedro da
Silva. São Paulo: Anais do Museu Paulista, tomo XXII, 1968.
WIZNITZER,
Arnold. Os judeus no Brasil colonial.
São Paulo: Pioneira, 1966.
Saiba Mais – Links
Saiba Mais – Documentário
A Estrela Oculta do Sertão
Durante a invasão holandesa ao Brasil, no século XVII, a
Coroa holandesa que atuava na vanguarda do movimento de reforma do catolicismo,
adota a política de acolher perseguidos religiosos de várias partes da Europa. A
maioria dos judeus emigrantes que se estabelece no país vive na penúria. Com a
tomada do Recife pela Holanda, esses grupos são atraídos pela oportunidade de
progredir na mais rica capitania portuguesa da época, e navios fretados por
judeus passam a chegar quase todo mês no Recife, evadindo-se posteriormente
para o interior, após a retomada dos portugueses.
O documentário conta com consultoria e depoimentos da
historiadora da USP Anita Novinsky, uma das maiores autoridades em inquisição
no Brasil, o genealogista Paulo Valadares, e o antropólogo do Collège de
France, Nathan Wachtel.
Direção: Elaine Eiger e Luize Valente
Ano: 2005
Duração: 84minutos
Parabens ao prof. Tonhao, por ter postado e PARABENS À ELAINE EIGER E LUISE VALENTE, POR TEREM DIRIGIDO ESTA PESQUISA. SRA. FERNANDA MAYER LUSTOSA, PARABENS E MUITO OBRIGADO POR ESTE TEXTO. EXCELENTE TRABALHO.
ResponderExcluirOSVALDO L.S. MOERBECK
PROF DE GEOGRAFIA
EX-BANCÁRIO
AFOGADOS DA INGAEIRA, PE,
RECIFE, PE